#CADÊ MEU CHINELO?

quinta-feira, 11 de junho de 2009

NOTAS INÉDITAS SOBRE COPYRIGHT E COPYLEFT




# agência pirata #

Copyright x Copyleft

txt: Wu Ming
trdç: Reuben da Cunha Rocha


1. Os dois lados do falso dilema

Começando pelo fim: o copyleft surge da necessidade de unir duas demandas básicas; podemos dizer duas condições indispensáveis à convivência civil. Se deixássemos de lutar por essas duas necessidades, deixaríamos de sonhar com um mundo melhor.

Não há dúvida de que a cultura e o conhecimento devem circular o mais livremente possível, e de que o acesso às idéias deve ser direto, equânime e livre de discriminações de classe, censura ou nacionalidade. Obras intelectuais não são apenas produtos do intelecto, é preciso que elas também produzam intelecto, disseminem conceitos e idéias, fertilizem mentes de modo que novas formas de pensar e imaginar sejam passadas adiante. Esta é a primeira necessidade. A segunda é que o trabalho seja remunerado, o que inclui o esforço de artistas e narradores. Quem quer que produza arte ou narrativas tem o direito de sobreviver do seu trabalho, de modo não ofensivo à sua própria dignidade. Obviamente, esta é só a melhor das hipóteses.

É conservador acreditar que tais necessidades sejam como dois lados irreconciliáveis de um dilema. “Não dá pra fazer as duas coisas”, dizem os defensores do copyright como se fosse óbvio. Para eles, copiar livremente significa apenas ‘pirataria’, ‘roubo’, ‘plágio’ – e esqueça a remuneração do autor. Se o trabalho circula gratuitamente, menos cópias são vendidas e menos dinheiro ganha o autor. Um silogismo bizarro quando visto de perto. A lógica deveria ser outra: se o trabalho circula gratuitamente, as pessoas gostam e o divulgam, a reputação do autor se beneficia disso e sua influência na indústria cultural (e não apenas nela) cresce. É um ciclo de benefícios. Um autor respeitado é constantemente convidado a fazer apresentações (despesas reembolsadas) e conferências (pagas); ele é entrevistado pela mídia (sendo promovido); cargos acadêmicos (remunerados) são oferecidos; assessorias (remuneradas), cursos de escrita criativa (remunerados); ao autor se torna possível negociar condições mais vantajosas com editores. Como estas coisas poderiam prejudicar a venda de livros?

Vamos falar de música. Ela circula gratuitamente, ela chama a atenção das pessoas; quem quer que a tenha feito passa a ser conhecido, e se o autor souber explorar isto passa então a ter a oportunidade de se apresentar (remunerado) com maior frequência e em mais lugares, conhece mais pessoas e consequentemente tem mais apoio, se ‘construir um nome’ passará a ser convidado para compor trilhas sonoras (remuneradas), fazer festas como DJ (remunerado), trabalhos de design sonoro para eventos – pode até acabar dirigindo festivais (remunerados) etc. Se pensarmos nos artistas pop, podemos incluir o que se ganha com camisetas, vendas on-line etc.

Assim se resolve o ‘dilema’: as necessidades dos consumidores são respeitadas (eles têm acesso à obra), como o são as dos artistas (beneficiados artística e financeiramente) e as da indústria (editores, produtores etc.). O que aconteceu? Por que o velho raciocínio é tão facilmente desmascarado por estes exemplos? Por não levar em consideração a complexidade e a riqueza das redes, das trocas, do incessante boca a boca de um meio para outro, as oportunidades de diversificar a oferta, o fato de que o ‘retorno econômico’ do autor possui diversos níveis, inclusive alguns (aparentemente) tortuosos.

É graças a uma inabilidade para compreender tal complexidade que o setor cultural (especialmente a indústria da música) perdeu anos e anos de inovações. Novas oportunidades que foram encaradas como ameaças ao invés de desafios, e reações histéricas que foram dirigidas ao Napster e a tudo o que se seguiu. Isto começou a mudar quando Steve Jobs mostrou que era possível, mas nesse meio tempo uma guerra foi travada contra exércitos de clientes em potencial, cuja confiança foi perdida para sempre.

Anti-marketing.


Qual a última coisa que alguém que faz e vende música deveria fazer? Certamente criminalizar o público, processando quem os ama. Valeu a pena? Em nossa opinião, não. ‘Direitos do autor’ (cuidado para não levar esta frase semifraudulenta a sério) tais como os conhecemos são um grande freio para o mercado.

Por outro lado, o copyleft (que não é um movimento ou ideologia, mas um termo que abriga uma série de práticas, cenários e licenças comerciais) encarna o que se precisa para reformar e adaptar as leis autorais ao ‘desenvolvimento sustentável’. A ‘pirataria’ é endêmica, inevitável, uma maré que sobe empurrada pelo vento da inovação tecnológica. Obviamente, os poderosos da indústria do entretenimento podem continuar fingindo que nada está acontecendo, como a Casa Branca negando o Greenhouse Effect, o aquecimento global e as mudanças climáticas. Nos dois casos, os que negarem a realidade só podem ser varridos para longe. Se você está determinado a não ratificar o Protocolo de Kyoto, determinado a não investir na renovação das fontes de energia, determinado a não resolver os problemas ambientais, cedo ou tarde um furacão Katrina vai bater à sua porta.





2. Censura e o nascimento do copyright: contra o liberal “mito das origens”


Agora, de volta ao início. Vamos listar os muito conhecidos e normalmente mencionados fatos. A história do copyright começa na Inglaterra do século 16. A difusão da imprensa, a possibilidade de distribuir muitas cópias do mesmo texto é excitante para quem quer que tenha algo a dizer, especialmente algo político. Há uma explosão de jornais e panfletos. A Coroa teme a difusão de idéias subversivas e passa a exercer controle sobre o que se imprime.

Em 1556 surge a Stationers’ Company ["Companhia dos Editores"], um grupo de profissionais que passa a deter com exclusividade o direito de copiar. A companhia possui o monopólio das tecnologias de impressão. Alguém que queira imprimir algo passa necessariamente por ela. Diferente do que ocorria até então, quando qualquer um podia imprimir para si cópias de livros ou peças sem que os autores se importassem, já que eles não detinham os direitos (eles não existiam). Importante era que as obras circulassem e sua fama crescesse, já que assim os autores chamariam a atenção de possíveis protetores (mecenas, corporações culturais etc.). A partir desse ponto só se imprimem obras que possuam autorização (na prática, o selo do censor do estado) e que estejam listadas no registro oficial – note o detalhe! – em nome de um editor. O editor se torna o dono da obra, com a conivência do estado.

A mitologia ‘liberal’ do copyright como um direito natural, nascido espontaneamente com o desenvolvimento e o dinamismo do mercado é…puro conto de fadas! As origens remotas do copyright se encontram na censura preventiva e na necessidade de restringir o acesso aos meios de produção cultural (restringir, portanto, a circulação de idéias). Um século e meio depois e a Coroa sofre ataques nunca vistos: a rebelião escocesa de 1638, a “Grande Representação” parlamentar de 1641, a deflagração da Guerra Civil um ano depois, a revolução de Cromwell e a decapitação do rei. No fim da década de 1650 o país retorna à monarquia, mas a situação permanece instável e finalmente o parlamento impõe à Coroa uma declaração de direitos. A partir disso a monarquia inglesa se torna constitucional.

É preciso listar tais eventos para que se entenda como as coisas dentro da monarquia sofreram mudanças ao longo de um século e meio, e como isto afetou o que se pensava sobre a censura preventiva e os próprios editores. Um grande ressentimento passou a ser direcionado a este grupo, tanto que afinal se decidiu pelo fim do monopólio de impressão.

Os editores são atingidos onde mais dói – o bolso – e reagem de acordo. Eles iniciam uma campanha para assegurar que a nova lei reconheça a legitimidade dos seus interesses e trabalhe em seu favor. Seu argumento é: o copyright pertence ao autor; o autor, no entanto, não possui máquinas de impressão; as máquinas pertencem aos editores; assim o autor necessita do editor. Como regular essa necessidade? Simples: o autor, interessado em que a obra seja publicada, cede os direitos ao editor por um determinado período. Na raiz, a situação permanece mais ou menos a mesma. Só muda a justificativa legal. A justificativa ideológica não se baseia mais em censura, mas na necessidade do mercado. Todos os mitos que daí derivam acerca dos direitos do autor se baseiam no lobby dos editores: autores são forçados a cederem seus direitos…mas isso é pro seu próprio bem. As consequências psicológicas são devastadoras, uma variação da ‘Síndrome de Estocolmo’ (quando o sequestrado se apaixona pelo sequestrador). De agora em diante, autores se mobilizarão em defesa de um status quo que consiste neles próprios esperarem ao pé da mesa pelas migalhas e por um tapinha na cabeça. Pá, pá! Au!

A lei é o famoso Estatuto de Anne, que passa a ter efeito a partir de 1710. Ela antecede todas as leis e acordos internacionais sobre copyright, desde a Convenção de Berna em 1971 até o Digital Millennium Copyright Act e o Decreto Urbani. É a primeira definição legal de copyright tal qual ainda o conhecemos hoje, ou o conhecíamos ontem. Porque hoje mesmo algumas pessoas começaram a ter dúvidas. Dúvidas que nascem do fato de que copiar algo está ao alcance de muito mais pessoas agora, talvez de todos. Um bom punhado de nós tem em casa aquela tecnologia que os editores um dia monopolizaram. Para copiar uma obra não é mais necessário dirigir-se a uma companhia profissional. O espólio dos editores tem sido minado pela revolução micro-eletrônica iniciada nos anos 70 com o advento da tecnologia digital, a ‘democratização’ do acesso à computação. Primeiro a fotocópia e a fita K7, depois o VHS e o sampler, então a gravadora de CD e o P2P, e finalmente os dispositivos de memória portáteis como o iPod…como alguém pode acreditar que a justificativa ideológica do copyright – aquela que inspirou o Estatuto de Anne – ainda é válida?

Está claro que as coisas precisam ser revistas; este processo mudou todo o modo de produção da indústria cultural! Novas definições dos direitos de quem cria, produz e distribui são necessárias. Se uma ‘obra intelectual’ pode chegar ao público sem a mediação de um editor, de uma gravadora, da televisão ou de um produtor, então estas pessoas precisam se perguntar o que fazer agora, chegar a uma solução, redefinir o papel social do seu trabalho. Lutar para manter um monopólio que não se sustenta mais com ameaças de prisão acaba levando a um beco sem saída. É como se comporta o Antigo Regime, é a autocracia czarista. Felizmente, algumas pessoas começaram a perceber isso.




3. Google Print e similares: a web, o gratuito e o ato de reconstruir


Numa biblioteca você tem acesso gratuito a um livro e numa livraria você o compra, mas não há conflito entre as duas opções: os países onde se vendem mais livros são também aqueles com mais pessoas nas bibliotecas. É natural: quanto mais um livro circula, mais ele é lido, maior seu impacto na literatura.

A palavra-chave é ‘biblioteca’. Ela representa uma longa história de liberdade de acesso, posta em questão apenas muito recentemente (uma batalha ainda em curso). Tanto faz falar em bibliotecas feitas de tijolos ou bits, são igualmente bibliotecas. Se, ao contrário, o download for pago, estamos falando de livrarias, simples assim. Dito isto: Seth Godin, um dos maiores pensadores do mercado, diz que se x pessoas compram um e-book, o mesmo livro disponível gratuitamente será baixado por quarenta vezes x pessoas. Inverter a equação pode ser muito útil: a cada quarenta pessoas que baixam um livro de graça há uma que o irá comprar. A soma destes ‘um a cada quarenta’ leitores é garantida. São eles que compram o livro primeiro, e que primeiro falam dele. Eles são as conexões, os ‘evangelistas’, as ‘matracas’. Cada passo deve ser dado com estas pessoas em mente. Esta é a tática de Godin: novas obras (eletrônicas ou de papel) são postas à venda. Mas antes de divulgar o release de uma nova obra, ele disponibiliza a obra anterior para download. É uma estratégia de lançamento formidável.

O download gratuito de um texto e sua visibilidade nas ferramentas de busca têm um fim comum, e confluem para o mesmo objetivo: restituir o acesso on-line de produtos culturais ao público, o que pode encorajar a venda de livros.

Editoras que se opõe ao Google Print são como aqueles estúdios de cinema que, vinte anos atrás, denunciaram os fabricantes de videocassetes e fitas K7 alegando que a cópia doméstica violava o copyright. O famoso caso “Universal x Betamax”. A Universal acabou perdendo na Suprema Corte norte-americana…para sorte dela. Nos anos seguintes, a indústria cinematográfica creditou seu lucro não às salas de cinema, mas ao home video. Sobreviveu a crises graças ao VHS primeiro, e depois ao DVD. A Universal teria fechado caso houvesse ganho aquele processo. Ela perdeu, e terminou salva.

Poderíamos mencionar também a batalha absurda das gravadoras contra a introdução das fitas K7 nos anos 70, um prelúdio da guerra contra o download, travada apesar do fato de que (como mostra o iTunes) a verdadeira questão é oferecer ao público um modo legal de acesso à fonte.

A presente batalha custeada pelas editoras é ela também uma missão suicida contra inovações potencialmente vantajosas. Para o seu próprio bem, elas devem perder. Caso ganhem, as editoras terão encontrado um péssimo jeito de entrar para a história.

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