#CADÊ MEU CHINELO?

quarta-feira, 3 de junho de 2009

LICENÇAS LIVRES parte 3




# noéspecial #

Licenças livres e a multiplicação do conhecimento - parte três

txt Tiago Jucá Oliveira

Capítulo 4 - Alguns Direitos Reservados (Creative Commons)


Lógica colaborativista, a inversão

A escuridão deixada pelo copyright colaborou para quase apagar a criatividade e do conhecimento, não fosse uma luz a brilhar no fim do túnel. Faltava algo a mais que uma mera desobediência civil. Isto é, agir por rebeldia ou inocência contra uma lei injusta e atrasada podia ser a solução para o público, porém deixava o autor em meio ao fogo cruzado, pois não via sua obra ser difundida e nem ganhava dinheiro com isso. Uma alternativa era necessário para o criador disponibilizar sua criação, com usos mais flexíveis para a reprodução e a adaptação. No lugar do direito de cópia exclusivo do autor, a cópia permirtida, segundo as permissões do mesmo. O inverso do copyright, assim dizendo. O conceito Copyleft, um trocadilho que brinca com as expressões "permitido copiar" e "esquerdo autoral", surgiu através de Richard Stalmann, no qual afirmava pelo avesso a lógica do copyright: "todos direitos invertidos".

Nos primórdios da computação era comum os desenvolvedores disponibilizarem os códigos junto com os programas visando facilitar o suporte aos usuários. Em 1952 foi lançado o primeiro computador científico comercializado pela IBM. Dentre os usuários surgiu uma comunidade chamada SHARE (Sigla que no inglês significa compartilhar) formada por voluntários que trocavam informações sobre defeitos e versões aprimoradas do sistema desenvolvidas pelos usuários utilizando o código fonte que originalmente vinha junto ao sistema da máquina. Durante as primeiras décadas software era desenvolvido basicamente por pesquisadores acadêmicos ou de empresas em colaboração nunca sendo realmente enxergado como um bem de valor.

No final da década de 70 quando as empresas começaram a impor restrições aos programadores através de leis de direito autoral. Essa mudança visava impedir o acesso da concorrência ao que estava sendo desenvolvido. Um divisor de águas nessa história foi a carta escrita em 1976 por Bill Gates dirigida aos primeiros usuários de PC onde denunciava o uso de softwares não autorizados que estavam sendo copiados irregularmente. Segundo Gates a consolidação desta prática iria desencorajar os programadores a investir tempo e dinheiro para criar software de qualidade. Para muitos estudiosos esta carta foi um marco tanto para a expansão do software proprietário quanto para o surgimento do movimento pelo software livre.

A luta pela popularização do software livre teve início em 1983 com a fundação da Free Software Foundation (FSF) liderada por Richard Stallman hacker do laboratório de Inteligência Artificial do MIT (Massachusetts Institute of Technology). A maioria dos pesquisadores estava ligado a projetos comerciais utilizando software proprietário, assim Stallman se via sem saída pois ou assinava um termo de confidencialidade e utilizava os novos computadores mas não poderia mais compartilhar seus desenvolvimentos ou desistia de trabalhar com informática.

A solução que encontrou foi desenvolver um sistema operacional com código aberto que permitisse o uso das máquinas sem precisar utilizar nenhum software proprietário. Stallman batizou o novo sistema de GNU. Para evitar que o sistema operacional se tornasse proprietário, Richard desenvolveu a GNU Public License (GPL) uma licença jurídica que permite a cópia, alteração e redistribuição do software licenciado. A GPL se tornou a licença de copyleft mais utilizada em todo o mundo. Em 1992, um finlandês chamado Linus Towards desenvolveu durante meses dos monótonos invernos do seu país um núcleo de sistema operacional batizado de Linux. Esse coração foi incorporado aos desenvolvimentos do projeto GNU e licenciado também em GPL tornando o GNU/Linux um sistema operacional livre funcionando corretamente. Através da internet esse conhecimento se espalhou pelo mundo criando novas ferramentas como o Kurumin no Brasil e o projeto Ubuntu na África do Sul.

"Em vez de simplesmente abrir mão dos direitos autorais, o que permitiria que empresas se apropriassem de um programa livre, modificando-o e redistribuindo-o de forma não livre, Stallman pensou num mecanismo de constrangimento que assegurasse a manutenção da liberdade que o programador havia dado ao programa", diz Pablo Ortellado. "O mecanismo pensado era reafirmar os direitos autorais abrindo mão da exclusividade de distribuição e alteração desde que o uso subsequente não restringisse aquelas liberdades. Em outras palavras, a pessoa que recebia um programa livre, recebia esse programa com a condição de que se o copiasse ou o aprimorasse, mantivesse as características livres que tinha recebido: o direito de rodar livremente, de modificar livremente e de copiar livremente. Com isso, os programas livres, frutos de esforços coletivos voluntários, ganhavam uma licença que garantia que mesmo que as empresas quisessem usá-los e distribui-los, o fizessem de forma a manter suas liberdades iniciais". Era o princípio do software livre.

Filho do o Copyleft, o Creative Commons também permite a livre reprodução e cópia. Porém a invenção de Lawrence Lessig, um dos mais ferozes críticos do copyright, tem uma combinação de direitos permitidos pelo autor que flexibilizam o uso de suas obras. Ao disponibilizar o conteúdo para cópia e reprodução, ele decide se pode ser usada para fins comerciais ou não, se pode ou não fazer uma obra derivada da original, assim como se esta só seja possível ser feita desde que utilize uma licença idêntica ou não, e lógico, tudo isso com o devido crédito ao autor original. A partir da combinação dessas escolhas - ou "alguns direitos reservados", o Creative Commons gera algumas possibilidades de comunicar a licença aplicada. Uma se faz por um código de sinais que driblam as barreiras lingüísticas entre os povos; outra traz uma breve explicação em diversas línguas do que pode e do que não se fazer com a obra; e uma outra, mais completa, com os detalhes jurídicos da licença. Essas formas de comunicar a vontade do autor eliminam a difícil, lenta e urocrática procura pelos direitos da obra, pois ela já está previamente autorizada pelo próprio autor. A pergunta que fica, e que a partir de agora definitivamente procuramos exemplificar casos, dentro do propósito desta reportagem desde a primeira parte, como as licenças livres como Creative Commons e Copyleft são importantes para a prática de um comércio justo?

Salve



Com o avanço tecnológico que facilita a cópia e reprodução, e com as obsoletas leis de direitos autorais, muitos artistas optaram por disponibilizar suas obras com alguma licença livre. Entre eles o coletivo italiano Wu Ming, espécie de porta voz do Copyleft. Um de seus romances, 54, mesmo disponível para download na internet, é um sucesso de vendas na Europa no velho formato impresso, traduzido para várias línguas, inclusive para o português. Q. O Caçador de Hereges, outro livro do coletivo, vendeu mais de 200 mil exemplares na Itália e a tradução inglesa atingiu o topo dos best-sellers do Reino Unido, mesmo estando de forma gratuita para ser baixado. No Brasil, os pernambucanos entenderam rápido e claramente o recado da antena fincada no mangue. Em poucos anos, músicos, comunicadores, iniciativa pública e coletivos secretos perceberam que o poder da internet é infinito. CDs de bandas como Eta Carinae e Mula Manca e a Fabulosa Figura e de compositores como China e Marcelo Campello vão as lojas e para a internet ao mesmo tempo, por vontade própria. Sites de jornalismo cultural tem todo conteúdo previamente liberados para ser reproduzido. Uma pasta zipada com os vocais e as bases, todas separadas umas das outras, depois de baixadas são incentivadas pelos próprios autores para um remix caseiro. Um coletivo que produz música para os outros ganharem dinheiro. A cidade de Olinda pode ter em breve o maior arquivo de cultura popular registrada em Creative Commons, a um clique de distância de qualquer pessoa conectada num computador.

O caso do Mombojó é o mais curioso. A banda recifense lançou seu primeiro CD - Nadadenovo - e ao mesmo tempo o deixou liberado para download no site do grupo. Os resultados são incríveis para uma banda que recém estreiava, sem tocar na programação das rádios nem se apresentar nos mais populares programas de televisão. Nadadenovo teve 20 mil exemplares encartados na revista Outracoisa, quase todos eles vendidos nas principais bancas do país. Shows nas maiores cidades brasileiras, participações em festivais e eventos importantes, contrato com a gravadora Trama e comunidade no orkut com mais de 17 mil membros são outras conseqüências positivas. Marcelo Machado, guitarrista do Mombojó, lembra que "nos shows todo mundo dizia 'eu tenho as músicas no computador, mas eu tenho o CD também'. E a gente chegou a tocar em alguns lugares porque os contratantes desses lugares ouviram a gente pela internet. Então se o cara de Florianópolis não tivesse ouvido a gente na internet, não teríamos ido tocar em Florianópolis na nossa primeira turnê. E lá vendemos alguns discos". De acordo com Machado, colocar as músicas na internet "ajudou a aumentar as pessoas que vão aos shows e que cantam as músicas. E quem vai aos shows e gosta, compra o CD. E a gente vendo o CD nos shows mais barato do que está nas lojas. Aí uma coisa acaba trazendo outra, e isso vai aumentando, pois na internet se propaga muito fácil. O segundo álbum da banda seguiu o mesmo caminho do anterior, e além de estar a venda nas lojas de músicas, tem o download liberado para quem quiser ouvir. Outro integrante do Mombojó, Marcelo Campello, não teve dúvidas ao licenciar em Creative Commons seu disco de carreira solo, pois tem certeza de que o disco cairia na internet "independente de minha vontade, prefiro então canalizar essa energia para a minha página - dessa forma tenho acesso às estatísticas e estabeleço um contato mais direto com as pessoas", define o músico.

As obras com licença aberta para modificações tem sido de grande serventia a demais artistas. Com essa possibilidade previamente autorizada, livros são traduzidos para outras línguas, contos literários viram filmes, poesias são musicadas, músicas ganham remix, fotos são editadas. Convidado para fazer a trilha sonora do filme Narradores de Javé, DJ Dolores, um dos pioneiros do Creative Commons no Brasil, preferiu apenas compor e deixou para outros músicos a missão de remixar a trilha inteira. "Eles fizeram o que quiseram, nego cortou coisa, acrescentou e tal. As pessoas mudaram o caminho inicial da música e viraram co-autores. O que acontece é que na prática eu fiz uma música e de repente me vi co-autor de três, a mesma música com três versões diferentes e eu dividindo as autorias. Muita gente vai preferir uma dessas três do que a minha original. É um jeito inteligente de você tratar isso". De acordo com Dolores, "se a gente for pensar ninguém é autor de porra nenhuma, todo mundo copia de todo mundo. Música é uma criação coletiva pela sua própria natureza". "Sanidade", faixa aberta de Dolores, participou de um concurso de remix da Crammed Discs, e ganhou dezenas de versões remixadas por DJs de diversas nacionalidades, muitos dos quais nem o conhecem pessoalmente. Dolores acredita que "quando você usa o CC e permite que as pessoas mexam na sua música, mais ou menos a sua revelia, isso dá possibilidade de sua música ser multiplicada várias vezes. Quem sabe se alguém que mexa na sua música não faça algo melhor que você fez e aquilo estoure e aconteça alguma coisa". Apesar de não ser um sucesso musical no Brasil, DJ Dolores já fez turnês de shows pela Europa, onde chegou livremente em formato mp3 para o público estrangeiro.

Comércio Justo

Um comércio paralelo, porém legal, começa a tomar forma. A permissão de uso da obra original e/ou recriada para fins comerciais é o grande gerador de matéria-prima para a construção de novas relações economômicas. Aquele camelô urbano que vende produtos piratas agora da vez para o vendedor legal perante a lei. Assim pensa Caio Mariano, membro do Coletivo Re:Combo. As criações artísticas do grupo chamaram a atenção de uma distribuidora de discos de São Paulo, que quis saber o que precisava para lançar um disco. Mariano esclareceu: "as músicas estão lá no site, estão todas autorizadas. Você chega lá, baixa, pega a licença, imprime e vai numa prensa de disco, manda prensar e vende". E se alguém lançar uma versão pirata do disco, não há problema. Inclusive está salvo de cometer qualquer crime.

O jornalismo é um dos setores que tem muito a progredir com as licenças livres. Revistas, sites, blogs e portais com conteúdo liberado são cada vez mais comuns. A princípio pensa-se que o veículo de comunicação apenas faz fluir suas reportagens para mais pessoas acessarem. Mas ao exigir, por exemplo, o compartilhamento da reprodução com base numa licença idêntica, somente reutiliza aqueles que também são livres. Assim, o conteúdo não corre o risco de ficar restrito mais adiante. O incentivo e estímulo à aplicação das licenças livres faz surgir um elemento antes inviável aos pequenos meios de comunicação: a cobertura a distância de fatos e eventos sem ser preciso enviar um correspondente. Cada meio torna-se uma potente sucursal de outros, e vice-versa, em rede. Para cobrir um festival de música como o Abril Pro Rock para o seu blog pessoal, sem sair de casa ou duma sala de redação, você pode contar com vídeos feitos e exibidos pelo site Recife Rock, a mais completa experiência de mapeamento musical com arquivos de áudio e vídeo de uma única cidade aqui no Brasil, e incrementar a reportagem com as fotografias e os programas sonoros produzidos pelo site CircuitoPE. Sem pedir autorização ou favor a ninguém, desde que respeite a prévia licença.

O DILÚVIO, através desta reportagem, conheceu mais do que o previsto no planejamento inicial. Diversas experiências em formato colaborativo brotam de norte a sul do país. Esta matéria se encerra aqui, mas o aprimoramento e maior alcance das licenças livres recém estão começando. Os casos que conhecemos mais de perto e detalhadamente poderiam ser, cada um deles, uma nova reportagem a ser publicada. Nos falta espaço porém nos sobra vontade de trazer a prática mais perto de você. As possibilidades são múltiplas no campo da ação. O fortalecimento de economias solidárias e conhecimento compartilhado a cada dia são mais objetivos fundamentais que vamos perseguir em busca do comércio justo entre as pessoas.

>>> Parte 1 <<<
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