#CADÊ MEU CHINELO?

quarta-feira, 27 de maio de 2009

LICENÇAS LIVRES parte 2

# noéspecial #
Licenças Livres e a multiplicação do conhecimento

txt: Tiago Jucá Oliveira

Capítulo 3 – Todos Direitos Invertidos (copyleft)



Desobedientes

“Deve o cidadão, sequer por um momento, ou minimamente, renunciar à sua consciência em favor do legislador? Então por que todo homem tem uma consciência?”, pergunta Henry Thoreau. O próprio escritor responde: “penso que devemos ser homens, em primeiro lugar, e depois súditos. Não é desejável cultivar pela lei o mesmo respeito que cultivamos pelo direito. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer a qualquer tempo aquilo que considero direito”. A essa desobediência ele justifica ao inverter a lógica da legislação: “a lei jamais tornou os homens mais justos, e, por meio de seu respeito por ela, mesmo os mais bem−intencionados transformam−se diariamente em agentes da injustiça”.

Hoje em dia é difícil encontrar quem nunca transgrediu alguma lei de direitos autorais. Jean-Jacques Rousseau, escritor suíço do século XVIII, sabia que “quando o vínculo social começa a afrouxar e o Estado a enfraquecer, quando os interesses particulares principiam a fazer-se sentir e as pequenas sociedades a influir sobre a grande, o interesse comum se altera e encontra opositores”. Esse interesse comum dos tempos modernos é responsável pela difusão e recombinação do conhecimento de uma maneira jamais vista. Se antes dos direitos autorais tínhamos uma cultura oral e livre, no entanto reproduzida somente no boca a boca, agora temos diversas opções de interação entre autor, obra e público, A tecnologia tem oferecido ao homem diversas formas de produzir, copiar, transmitir, reproduzir e transformar obras culturais: máquinas de fotografar e filmar, fitas e vídeos cassete, CDs e DVDs regraváveis, samplers, programas de computador, internet, p2p, mp3, blogs, etc.

Uma barreira legislaiva impede isso, ou tenta impedir. Wu Ming 1 alerta que “a cada noite e a cada dia milhões de pessoas, sozinhas ou coletivamente, cercam/violam/rechaçam o copyright. Desviam-se com astúcia de qualquer obstáculo técnico ou legislativo. Surpreendem no contrapé as multinacionais do entretenimento erodindo seus (até agora) excessivos ganhos”. De acordo com Pablo Ortellado, “desde que obras e patentes passaram a ser registradas, os direitos sobre elas passaram a ser violados”. A desobediência civil, nesse caso, para Ortellado, “é uma violação pública das leis motivada por seu caráter ilegítimo. A desobediência civil se faz abertamente e ela não reconhece que a lei que está sendo infringida seja justa”.



Piratas

Nem todos desobedecem por opções ideológicas. Muitos marginalizam-se às leis por motivos econômicos. Utilizam-se de tecnologias para reproduzir obras com qualidade inferior à original e revender por um preço mais barato. Em países pobres e em desenvolvimento, a pirataria encontrou o meio para melhor se desenvolver. Local onde, apesar das leis serem tão obsoletas e repressoras quanto às do primeiro mundo, não há a mesma eficiência no combate ao crime. Uma chance informal de ganhar dinheiro, para os desclassificados do concorrido e cada vez mais gabaritado mercado de trabalho, somada à oferta do preço da versão pirata, para o consumidor de menor poder aquisitivo e sem recursos para comprar obras originais, que são vendidas a preços irreais para o contexto social desses países.

Luciano complementa o orçamento de casa através da venda de CDs piratas. Fatura mais de 300 reais pra ajudar no sustento do lar onde mora com a esposa. As ruas centrais das grandes cidades brasileiras estão tomadas por camelôs que vendem tudo que produtos piratas: CDs, DVDs, softwares e games. Por elas circulam pessoas como Luís, apaixonadas por música, porém sem os 30 reais necessários pra comprar os CDs originais de seus ídolos, como Marcelo D2 e O Rappa, muito menos pra ter um computador e uma banda larga e baixa-los de graça na internet.

Copiando e colando...

A grande maioria das pessoas não sabem que estão infringindo a lei. Como já foi dito, a indústria do entretenimento inventa brinquedos que nos marginaliza perante a legislação. Tipo a fita cassete, que alegrava as viagens de carro que Gustavo costumava fazer no verão rumo à praia junto com os amigos. Ele escolhia dentre seus CDs aqueles que considerava os melhores e, através de seu aparelho 3 em 1, gravava várias fitas virgens pra poder ouvir no toca-fita do automóvel. Atualmente temos outras formas de copiar música. Existem dezenas de programas de computador que ripam CDs e o transformam em arquivos de música em formato mp3. Vendido a um real em qualquer supermercado, o CD-R permite o usuário gravar em torno de 150 músicas.

Márcio é torcedor fanático do Grêmio. A cada vitória tricolor ou derrota do rival colorado, ele procura no site de um jornal gaúcho a foto do atacante comemorando o gol triunfal, salva-a no seu computador e a usa como imagem no seu perfil pessoal do Orkut. Fã número um de Zeca Pagodinho e Snoop Doggy Dogg, Antônio Carlos pesquisa videoclipes de ambos no You Tube, peneira os mais interessantes, copia as URLs e cola no seu blog pessoal.

Uma comunidade do Orkut tem mais de 250 mil membros. Os tópicos de assuntos giram em torno de nomes de artistas do Brasil e do mundo, e de suas respectivas discografias, obviamente sob a tutela dos direitos autorais. Você pede um disco, a comunidade viabiliza seu pedido. Lá se encontram obras completas de Gilberto Gil a Rolling Stones. Noutra comunidade, a desta revista, em proporções menores e com outros objetivos, os membros estão antenados e organizados em postar links para downloads de lançamentos nacionais e internacionais – nenhuma novidade fica de fora. Mais de 100 discos lançados ano passado, no Brasil, foram compartilhados entre seus membros, o que viabilizou ao público leitor um apurado olhar comparativo para escolher os melhores de 2008 do Prêmio Uirapuru.

...e transformando a canção

Nossa cultura recombinante teve uma boa pincelada com o movimento hip hop. No começo dos anos 80, o Sugar Hill Gang pega a base de “Good Times”, sucesso do Chic, e transforma em “Rapper’s Delight”. Foi um dos primeiros e importantes passos do rap, mas não impediu que o Chic tentasse instalar um processo por plágio. No Brasil, a dupla Thaíde & DJ Hum, aproveita a base de “Mr. Big Stuff”, de Jean Knight, e nos presenteia com “Sr. Tempo Bom”, uma adaptação da periferia paulistana e que ajudou a popularizar o gênero em todo o país.



Do Japão surge o fenômeno dos doujinshi, quadrinhos que imitam outros quadrinhos, mas como lembra Lawrence Lessig, “um doujinshi não é apenas uma cópia: o artista deve contribuir com a arte que ele copia, transformando-a de modo sutil ou significativo”. Esse tipo de mangá tem um enorme mercado consumidor, e o que era para ser concorrência aos originais, acaba por populariza-los também.

Um universo anônimo de pessoas está em constante processo de recombinação. Ane não tinha dinheiro pra comprar um presente pro dia das mães, mas tinha cabeça e um pequeno aparato tecnológico. Pegou o telefone celular e tirou uma fotografia de sua mãe; com um scanner, copiou a capa de um livro e passou pro computador. Com um editor de fotografias, juntou as imagens e fez parecer que sua mãe era a personagem principal. Na internet, achou uma poesia bacana, colou alguns versos num programador de arte e imprimiu juntamente com a capa.

A serpente

A briga travada pela indústria cultural em nome dos direitos autorais talvez não existisse caso ela não tivesse inventados suas tecnologias. Por ironia do destino, “as mesmas corporações que vendem samplers, fotocopiadoras, scanners e masterizadores”, segundo Wu Ming 1, “controlam a indústria global do entretenimento, e se descobrem prejudicadas pelo uso de tais instrumentos”.

O surgimento do videocassete trouxe reações espantosas. Criado pela Sony, o Betamax permitia gravar e armazenar filmes. A Universal e a Disney se posicionaram contra essa nova tecnologia, pois as pessoas deixariam de ir ao cinema. Em 1888, George Eastman inventou uma maneira mais barata de tirar fotografias, através de filmes flexíveis, com objetivo de expandir o número de fotógrafos. “Os tribunais foram questionados sobre se o fotógrafo”, segundo Lessig, “precisaria de permissão antes de capturar e revelar qualquer imagem que quisesse”.

Quando o Príncipe Modupe, na África Ocidental, conheceu a biblioteca de um padre, transcreve Marshal McLuhan, ele compreendeu “que as marcas sobre as páginas eram palavras na armadilha. Qualquer um podia decifrar os símbolos e soltar as palavras aprisionadas, falando-as. A tinta de impressão enjaulava os pensamentos; eles não podiam fugir”. Assim hoje vemos uma imensidão de obras culturais presas pelo copyright. Filmes já sem mercado comercial enferrujando com o tempo e que não podem ser digitalizados. Livros apodrecendo nas estantes de bibliotecas sem poderem ser copiados ou traduzidos. Discos fora de catálogo sem permissão de chegar aos ouvidos.

Lessig retoma os ditos de Thomas Jefferson: “aquele que recebe uma idéia minha aprende sobre ela tanto quanto eu, sem diminuir o que eu já sei; assim como quem acende seu lampião no meu recebe luz sem me deixar no escuro”. De acordo com Lessig, “extremistas nesse debate adoram dizer 'você não entraria em uma livraria e pegaria um livro da prateleira sem pagar; por que seria diferente com música on-line?'”. Um bom exemplo serve para contrapor a questão: “A diferença é que quando você rouba um livro a livraria tem uma cópia a menos para vender. Quando você baixa uma mp3 em uma rede de computadores não há um CD a menos à venda. A mecânica da pirataria do intangível é diferente da mecânica da pirataria do tangível”, ilustra Lessig.

Aqueles que não ainda sabiam que eram contraventores da lei, esperamos que agora saibam que fazem parte de um universal processo de livre difusão do conhecimento. Para Wu Ming 1, “a conseqüente reação em cadeia de paradoxos e episódios grotescos nos permite compreender que terminou para sempre uma fase da cultura, e que leis mais duras não serão suficientes para deter uma dinâmica social já iniciada e envolvente. O que está se modificando é a relação entre produção e consumo da cultura”. A serpente, segundo Wu Ming 1, “morde sua cauda e logo instiga os deputados para que legislem contra a autofagia”. Nos deram a vela, mas o copyright insiste em manter a humanidade no escuro.

* caso não tenha lido a parte 1 desta reportagem, não perca tempo: leia >>>AQUI<<<

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