#CADÊ MEU CHINELO?

quarta-feira, 10 de junho de 2009

CARLOS AFFONSO




# noéntrevista #


Na zona cinza onde a criatividade floresce

A primeira vez que vimos Carlos Affonso foi durante uma mesa de debates com o funk-rapper BNegão, a jornalista e ex-vereadora paulistana Soninha, o sociólogo Sérgio Amadeu e o doutor em Filosofia Javier Bustamante, durante a sétima edição do Fórum Internacional de Software Livre (FISL), em abril de 2006, na capital gaúcha. Dono de um modo ímpar de se expressar em público, objetivo, claro e cômico, Carlos Affonso conquista adeptos facilmente através da palavra. O DILÚVIO então já utilizava o conceito de Copyleft em suas páginas internas, liberando nosso conteúdo para reprodução integral sem a necessidade de nos pedir autorização para tal. Mas naquele momento, ao receber as palavras de Carlos sobre Creative Commons, percebemos que era algo viável, pois seus aspectos jurídicos eram amplos e seguros, flexíveis e de caráter mais libertário.

Em 2007 ele retornou à edição número oito do FISL, e não medimos esforços para uma palavrinha exclusiva a O DILÚVIO. Mas não foi tão fácil assim, mesmo com o sinal positivo de Carlos para nos conceder a entrevista. O problema é o homem ser concorrido para todo tipo de mesa, debate, palestra, etc. Não poderia ser diferente, afinal seu currículo é de dar inveja a qualquer advogado. Carlos Affonso Pereira de Souza é coordenador adjunto do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas; professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu da Faculdade de Direito da FGV-RJ; professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da PUC-RJ, professor do curso de pós-graduação lato sensu em Direito do CEPED/UERJ. Além disso, é membro da Comissão de Direito do Autor e do Entretenimento da OAB-RJ e ainda doutorando e mestre em Direito Civil na UERJ. Co-autor dos livros “Comentários à Lei de Imprensa” (Forense/2004) e “Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República” (Renovar/ 2004), Carlos também integra a coordenação do Creative Commons do Brasil e organiza todo ano, paralelo ao FISL, o festival Criei, Tive Como, que trouxe a Porto Alegre, em suas outras edições, BNegão, DJ Dolores, Lúcio K, DJC, Media Sana, Mombojó e Totonho e Os Cabra.

Nesta entrevista, Carlos Affonso é abordado diretamente por nossa reportagem quanto à questão dos direitos autorais e propriedade intelectual, sobre o papel da Fundação Getúlio Vargas e de como e para que serve o Creative Commons. Ele ressalta suas vantagens e relata alguns exemplos de iniciativas que viabilizam um comércio justo entre artistas, intermediários e público consumidor. No final, Carlos agradeceu a oportunidade de falar conosco: “adorei a revista, sinceramente. Vocês estão super antenados, é incrível. Pra gente que trabalha no projeto é a coisa mais gratificante encontrar iniciativas como a d’O DILÚVIO”. E para nós também foi uma honra ter em nossas páginas uma pessoa que é referência em cultura livre no Brasil, além de, no desligar dos gravadores, receber um elogio desses.

A Fundação Getúlio Vargas trabalhava com a questão dos direitos autorais antes do Creative Commons?

O CC foi incorporado à FGV a partir de 2003, com a criação da Escola de Direito, no Rio de Janeiro. Mas havia uma escolha a ser feita: por que abrir, quando já existia uma variedade imensa de outras faculdades no Brasil? Logo, a opção por um novo curso de Direito foi pautada por caracterizar uma escola que pudesse oferecer educação diferenciada. Por conta disso, a Escola de Direito do Rio optou por criar linhas temáticas características. Nesse ponto destacamos o trabalho sobre reforma do Poder Judiciário, as implicações econômicas do Direito e, o que nos interessa, a propriedade intelectual. Desde o início, a propriedade intelectual foi um dos temas que a Escola de Direito tomou pra si, para trabalhar. Isso antes mesmo de ter esse movimento de CC, que concomitantemente em 2003 começou a surgir no seminário I-Low (Internet Law Program), onde trouxemos para o Brasil o Lawrence Lessig, o William Fisher, professores então de Harvard. E consolidou essa parceria da FGV, da Escola de Direito, com o CC, para que no ano seguinte já pudéssemos pensar no lançamento oficial no Brasil. Isso foi feito na quinta edição do FISL, quando trouxemos, além dos professores de Havard, também o (então) ministro Gilberto Gil. Então numa mesa tivemos o professor Ronaldo Lemos, da FGV, o próprio Gil, Lessig, Fisher e o nosso diretor Joaquim Falcão, fazendo oficialmente o lançamento desse projeto no Brasil. Nós fomos o terceiro país no mundo, atrás apenas do Japão e da Finlândia, a lançar um CC local, ter um representante oficial do CC originalmente norte-americano.

Por que a FGV adotou o CC como uma causa tão prioritária a defender e difundir?

A FGV tinha o compromisso de trabalhar com o direito autoral, mas era preciso escolher qual vertente ou forma de análise seria desenvolvida. E escolhemos a que nos parecia a mais apropriada: defender a matéria da propriedade intelectual como interesse público. Esse é o núcleo essencial do trabalho do CC. Pensar propriedade intelectual não é apenas mais uma forma de propriedade, na qual os titulares dos direitos se encastelam e trabalham da forma que bem entenderem. É importante perceber que, além dos usos privados e particulares, a propriedade atende em algumas medidas com função social, e existe um trabalho de função social dela que precisa ser desenvolvido. Então o CC nos pareceu um bom veículo para trazer essa novidade ao Brasil, porque o direito autoral não é apenas uma atividade ou ramo do Direito exclusivo de artistas, intérpretes, autores e apenas a essas pessoas ele interessa. Sem dúvida, esses são grupos mais importantes na sua defesa, ma existe uma série de outras pessoas e terceiros indeterminados, a sociedade como um todo, que também usufrui da obra autoral. É preciso ter meios de acesso mais claros a determinadas obras, trazendo para a prática uma forma mais simples de trabalhar com o direito autoral previsto na lei.

Há opções de licenças em CC que impedem a produção de obras derivadas. Isso constrange o direito de liberdade?

Não constrange o direito de liberdade porque, na verdade, esse tipo de restrição precisa ser escolhido pelo autor. Esse é um ponto, um nó, a ser desfeito em alguns discursos. Quando se diz que o CC não é tão livre quanto poderia ser, essa própria sentença, essa oração já tem um equívoco. Não é o CC, é o tipo de licença CC que o autor adotar. Existem licenças livres mais livres, outras menos. Logo, o CC é todo baseado num processo de escolha, opção de autonomia, base voluntária. Cabe ao autor decidir qual a melhor forma que ele, apenas ele, entende ser mais adequada para sua obra. Isso faz com que CC possa ser desde uma licença, como existe nos EUA, em que você doa diretamente doa, cede sua obra ao domínio público, a outras em que você tem certos níveis de restrição, como não poder utilizar para fins comerciais, ou criar obras derivadas. Isso depende do autor. Já que estamos falando de escolha, é importante dizer: se hoje há tantas licenças fazendo com que você possa conjugar a melhor forma do licenciamento da obra, nós atingimos o principal objetivo do CC, que é dar o maior número possível de alternativas, para que o autor possa facilmente licenciar na internet. Eu sempre gosto de dizer: “CC é um facilitador”. Costumamos utilizar essa expressão, que deixa clara a principal função do projeto no mundo inteiro e no Brasil, um país tão carente de descobrir suas formas artísticas. O CC é um dos instrumentos para ajudar nesse processo. Por quê? Porque tenho um acesso mais fácil a essas obras, e a dizer o que se pode fazer com elas. Colocar uma música num web site, simplesmente, não resolve o meu problema. É muito bacana, trabalha com vários conceitos de liberdade e estimula as pessoas a colocarem suas músicas na internet. Mas juridicamente, pensando na audiência que vai escutar e que pode querer trabalhar com elas, é importante saber quais foram os usos autorizados. É importante construir essa cultura de uma autorização, não burocrática, facilitada através da internet. E esse é o objetivo do CC.

Quais as aplicações práticas do CC? Existem processos jurídicos e ganhos de causa? Além de usar o site do CC pra licenciar a obra, existe um controle? Como ele é feito? Como uma pessoa lesada deve proceder?


Essas perguntas nos remetem a questões mais jurídicas, mas nem por isso complexas. O CC é uma licença, um contrato. A pessoa que licenciar sua obra em CC está tão grantida ou segura quanto quem faz um contrato por escrito, em papel, depois de inúmeras reuniões num escritório de advocacia, com seu empresário. Qual o nosso problema (ou nossa solução)? O CC gera, ao final do processo do site, uma licença, que pode ser lida em dois formatos: reduzido ou ampliado. Ampliado é tal qual teria sido produzida depois de um trabalho encomendado a um escritório de advocacia, por exemplo. Aí você pergunta: então qual a diferença do CC? É ela ser formada a partir de dados que você insere na internet. Então logo vem: qual a segurança? Se alguém infringir minha obra, se alguém utilizá-la pra fins não-autorizados, o que posso fazer? Nós temos pouquíssimos casos apresentados perante a justiça por infração de obras licenciadas em CC. Isso se deve basicamente a dois motivos: primeiro porque, quando a pessoa licencia em CC, ela tradicionalmente já garante um certo número de liberdades, muito maior que num licenciamento tradicional. E, segundo, nós tivemos já na Europa três casos de CC apresentados judicialmente, e o juiz determinou que a licença fosse cumprida. Ou seja, a pessoa utilizou a obra pra fins diversos daqueles da licença e o poder judiciário fez com que se tornasse efetiva. Isso se dá porque CC é igual a uma licença de papel. Nesse importante elemento ela é um contrato; vincula duas partes para cumprir suas disposições. Não é porque surgiu na internet que CC é mais fraco; não é porque foi gerado através de dados inseridos por você que é menos contrato. Até porque, vou falar francamente, todos contratos de adesão hoje, que nossos consumidores celebram, contratos de plano de saúde, de financiamento, praticamente não são lidos, e são vinculantes. Se deixar de pagar uma prestação, sabemos o que vai acontecer com seu nome no SPC e Serasa. Você vai dizer: “poxa, mas nem li o contrato inteiro”. Isso pouco importa. “Mas aquele contrato era muito grande, não entendi tudo”. O que o juiz vai declarar, em boa parte das vezes, é: “o contrato é válido e precisa ser cumprido”. Logo, pouco importa o meio pelo qual foi celebrado. Se atende os requisitos, tem as partes contratantes, um objeto especificado, garante e tem forma prevista na lei, como o formato eletrônico, escrito, não há problema algum. O mesmo se dá com a licença CC.

Quais iniciativas tem dado certo?

Existe uma série de bons exemplos, boas histórias pra contar de sucesso no Brasil. Além de várias negociações muito importantes em andamento, temos a Radiobrás, da Agência Brasil, um excelente exemplo com a mais aberta e livre das licenças, a que apenas pede atribuição, ou seja, mencionar que aquela informação utilizada veio da Radiobrás. Fora isso, mexa como quiser, faça o que quiser. Logo, esse é o licenciamento mais importante pra nós. Além de outras iniciativas, como o Domínio Público, e projetos que vamos desenvolvendo. Nós temos, além da parte empresarial, uma parte cultural muito forte, com vários grupos e artistas licenciados no formato CC, como o próprio Gil, o BNegão e outras bandas menos conhecidas, mas nem por isso piores. E aqui uma questão curiosa, pois muitos perguntam: “ah, mas olha só, tu ta me falando um monte de nome de banda que não conheço, tudo licenciada em CC; então CC é uma segunda categoria de música? Pois a música que eu conheço toca na rádio, é música cinco estrelas. A música que não conheço é quatro estrelas pra baixo. Mas pra esse pessoal é bom licenciar em CC, né, quem sabe um dia eles tocam na rádio?” É uma ideologia muito interessante, porque a gente precisa discutir um pouquinho. Se o CC gera essa autonomia de escolha, eu estou abrindo pra quem quiser. O CC está aberto para bandas que tocam muito bem e pra que tocam muito mal. Potenciais novos hits e bandas que vão continuar tocando a vida inteira dentro do seu segmento, sua região. É bom que seja assim. O CC pode ser uma excelente plataforma para bandas que depois vão alcançar um outro status dentro da grande mídia. Mas é importante a ferramenta ser tão aberta quanto possível, para permitir qualquer forma de manifestação cultural dentro de um processo CC. Com isso nós temos uma série de bandas que talvez não sejam do conhecimento de todas as pessoas, mas que começam a criar um certo reconhecimento, notoriedade. Promovemos o Festival Crei, Tive Como, que tradicionalmente fazemos no FISL, e já trouxemos o Totonho e Os Cabra, o Media Sana, o Mombojó, DJs como o Luio K e o DJC, a Bataclã FC, aqui de Porto Alegre. Talvez as pessoas não conheçam todas elas, mas o CC possibilita que conheçam. Então entre no site, procure a obra, pois o sistema do CC lhe dá acesso a essas possibilidades, todo esse conteúdo autoral.

Como se estabelece relações de comércio justo para quem licencia suas obras em CC?

A FGV parte de uma outra visão sobre pirataria. Ela pensa que não é apenas o camelô que vende o CD de 34 reais da gravadora por dois ou três reais. A visão da FGV é que dentro da propriedade intelectual existe uma questão de interesse público, a ser analisada. E se é importante, isso faz com que compreendamos a propriedade intelectual não apenas como reservada ou uma forma de exclusividade, de monopólio de uso por parte do autor. Ela pode ser formentadora de novos modelos de negócios, de trabalhar com a cultura. E alguns exemplos, embora não trabalhem diretamente com CC, são projetos irmãos, ou que seguem uma ideologia muito parecida, de liberdade das formas de propriedade intelectual. O caso do tecnobrega, no Pará, um grande exemplo de Open Business, é interessantíssimo. Os camelôs vendem os CDs a custos baratos. E esses CD não é pirata, é a oferta, o convite de um show dessa banda ou dessa aparelhagem. A pessoa paga barato pelo CD porque interessa ir ao show, onde o artista recebe. Nesse novo modelo de negócio, nessa nova cadeia que se forma, trabalhamos com propriedade intelectual e com que o camelô não seja pirata. Outro exemplo é o cinema nigeriano, onde você tem uma indústria florescente gerando uma quantidade enorme de filmes baseados no regionalismo da Nigéria e onde também o camelô não é um pirata. É importante perceber isso, que existem outras formas de trabalhar com propriedade intelectual para além do binômio, da dicotomia, da separação entre protegido-proibido, legal-ilegal. Eu não to querendo dizer que existe uma zona cinza tudo acontece. Eu quero dizer que existe uma zona cinza onde a criatividade floresce.

3 comentários:

Balaio The Gato disse...

Este blog está cada vez melhor.


Balaio

Tiago Jucá disse...

obrigado meu garoto!

Paulo Ricardo Suliani disse...

ODiluvio deveria ganhar o premio Pulitzer (queparió)!

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