#CADÊ MEU CHINELO?

terça-feira, 23 de novembro de 2010

[cc] TURISMO SOCIALISTA

::txt::Ale Lucchese::
::phts::Thais Brandão::



O helicóptero ianque decola na quebrada do rio Yuro em direção a La Higuiera. Em seu bojo, subjugado, sujo de sangue e de terra, está Ernesto Guevara. Voando entre as estrelas da noite sul-americana, sem mais poder lutar, Che adivinha que o fim da sua vida virá em poucas horas, ao romper o dia.

Ao seu lado, soldados norte-americanos sabiam o valor e o peso daquele moribundo troféu que carregavam. O que não poderiam adivinhar, no entanto, é que gerações e gerações de compatriotas, e talvez até mesmo seus netos e bisnetos, percorreriam aquelas densas matas e abissais caminhos para sentir ainda algum suspiro desse prisioneiro que para a morte estavam levando.



O roteiro turístico chamado de “Ruta del Che“, um dos atrativos de visitantes à Bolívia, não é inusitado “apenas” por demonstrar esse choque ideológico-geracional dos primeiro-mundistas, mas também por dois fatores anti-socialistas: messianismo e exploração capitalista.

O rosto do fotogênico Guevara pode ser encontrado em pousadas, bares e restaurantes a serviço da venda de diárias, refrigerantes e hambúrgueres. O revolucionário foi transformado em fetiche tal como Mickey Mouse. A única diferença é que quando você compra o relógio do Mickey Mouse você está comprando um bem-estar relacionado à sua extinta alegria infantil; e quando você escolhe o X-Che-Guevara no cardápio você está comprando uma bem estar relacionado a transformar o mundo e suas relações sociais.

Mas, bem no fundo, você sabe que o relógio do Mickey é tão vagabundo quanto qualquer outro relógio coreano e você não vai voltar e ser criança; e que o X-Che-Guevara é tão gorduroso quanto todos os outros do cardápio e você não vai transformar coisa nenhuma ao comê-lo, a não ser seu peso.



Em Vallegrande, onde começa a Ruta, pode-se tomar um táxi ou ir com um guia até La Higuiera. Por pouco mais de 60 km dirigindo entre precipícios, o taxista irá te cobrar um preço tabelado, pouco menos de 100 reais (um valor absurdamente alto para os padrões de preço do transporte boliviano). Também se pode contratar um guia ou táxi para ver o mausoléu onde foram encontrados os restos mortais do guerrilheiro.

Ao ver as fotos de La Higuiera, uma cruz estava postada ao lado do busto do Che. Cartazes de empresas turísticas também anunciam um roteiro de “luta, morte e ressurreição“. Aí está o outro fator paradoxal: o messianismo. Parecem ter esquecido que os socialistas eram (não sei se ainda são) ateus. O sorridente Guevara é transformado aqui num mero Jesus Cristo com fuzil.

Visitamos Vallegrande, e é de lá que são essas fotos. Lá se pode visitar gratuitamente a lavanderia do hospital onde Che Guevera foi exibido para a imprensa depois de morte. Também há um museu bem meia-boca, com um pouco de história, fotos e objetos. Estrangeiros precisam pagar dez bolivianos (cerca de R$ 3,00) para entrar. Velho Che, que pregava a igualdade, deve se revirar no túmulo ao pensar que estrangeiros interessados em sua história são tratados com diferença em relação aos nativos bolivianos, sendo obrigados a pagar para entrar no seu museu.


A famosa lavanderia, Vallegrande (BO)

Para mim, Che Guevara sempre foi uma entidade etéria, um ícone sem passado nem futuro, um rosto numa camiseta. Nunca senti necessidade de sanar minha ignorância e descobrir quem foi realmente aquele rosto. É como aquela foto do casal se beijando em Paris: não interessa quem eles são, interessa que a cena em si representa um amálgama entre amor e sensualidade. Pois os traços de Che contra o pano vermelho de uma camiseta por si só representavam um força obstinada e transformadora, não interessando se algum dia existiu mesmo um homem com aquele rosto sobre esse planeta.

Portanto, não fomos até Vallegrande para buscar a história desse homem. Para nós, o verdadeiro Guevara está vivo, pendurado nas araras de um camelô que vende camisetas na praça da Alfândega, em Porto Alegre ou em qualquer outra capital. O que fomos lá buscar foi essa bizarra cria entre indústria do turismo e socialismo. E é sobre isso que esse texto e essas fotos tratam.

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