#CADÊ MEU CHINELO?

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

[do além] OTAN TRISTE



::txt::Kaddafi::

Quando fui capturado, perguntei aos rebeldes: o que eu fiz a vocês? Me tomaram por ingênuo e demente. Não entenderam a real intenção do questionamento. Se os insurgentes tivessem começado a responder, eu certamente ainda estaria vivo.

Ao ser retirado da cloaca, me senti como no Google+: atônito, sem saber o que fazer, rodeado de pessoas gritando e me solicitando algo.

Você viu o que tinha de soldados fora de peso na minha guarda pessoal? Definitivamente esses homens não eram fiéis ao regime.

Meu erro foi querer levar o movimento Occupancy Wall Street para as tubulações de esgoto de Sirte.

Sei que bombou na internet, mas não gosto desses vídeos caseiros com câmera tremida. Essa linguagem já cansou. Ultimamente, tenho preferido os filmes de tribunais produzidos em Haia.

Foi tudo muito rápido. Única coisa que lamento é não ter tido tempo de dar um check-in no Foursquare. Kaddafi está em decomposição w/ 2 others.

As redes sociais tiveram grande participação na tal da Primavera Árabe. Mas vou te contar que os tiros offline ainda têm seu impacto.

Apesar dos longos 42 anos que fiquei no poder, o filme da minha vida passou muito rápido. Achei que seria parecido com o Poderoso Chefão, mas o personagem principal me lembrou mais o Transformers.

Fui enterrado num deserto, em local secreto, inimaginável, para evitar a peregrinação de adoradores. Mas eu conto onde fica o meu jazigo: no cenário do programa Código de Honra da TV Justiça, que vai ao ar todos os dias, às 5:30. Não perca.

Óbvio que não gostei de ter um funeral fora dos preceitos muçulmanos. Mas o que me deixou chateado mesmo foi o Berlusconi não comparecer à cerimônia. De minha parte, acabou a Conexão Bunga-Bunga.

Hillary Clinton pediu que as circunstâncias de minha morte sejam apuradas. O que ela quer? Que passem o vídeo em fast forward?

Osama foi lançado ao mar, eu fui enterrado no deserto. Não sou de fazer terrorismo, mas o presidente da Síria, Bashar al-Assad, que se cuide para não ser explodido no ar.

O que me matou mesmo foram essas piadas sobre a grafia correta do meu nome. Cadê o Rafinha Bastos numa hora dessas?

Quando os embates começaram há oito meses, eu já sabia o resultado. América e Avaí fatalmente seriam rebaixados.

Quero dizer que não estou pessimista em relação ao futuro da Líbia. O jeito que os rebeldes me trataram depois da captura me faz acreditar que o governo de transição dará continuidade ao meu legado.

sábado, 29 de outubro de 2011

[paladar] OITO CERVEJEIROS E UM SEGREDO FERMENTADO




::txt::Roberto Fonseca::

Dizem que quanto mais pessoas sabem de um segredo, menores são as chances de que ele dure muito tempo. O mistério guardado desde segunda-feira por oito cervejeiros reunidos em Curitiba, porém, tem data para acabar: meados de novembro.

Evento teve cerca de 100 rótulos naiconais e importados.

É quando a Way Double American Pale Ale, cerveja colaborativa que envolveu a participação de produtores e especialistas do Brasil, Estados Unidos, Escócia e Canadá, deve ficar pronta. Ela deve ser apelidada de 8S, cuja explicação, embora remeta à ideia de "oito homens e um segredo", os envolvidos fazem questão de deixar em aberto.

Segundo Alejandro Winocur, da Way, a ideia inicial era fazer uma cerveja comemorativa do primeiro ano de existência da marca. Até ele e o sócio, Alessandro Oliveira, saberem que a cervejaria escocesa Brewdog, conhecida pelo estilo radical de suas produções, mandaria ao Wikibier - evento cervejeiro que ocorreu em Curitiba no último fim de semana - o cervejeiro Stewart Bowman.

"Aí pensamos em fazer uma cerveja em parceria e começamos a trocar ideias sobre a receita, os maltes e lúpulos a serem usados."

Bowman não conseguiu vir ao Brasil, mas a Brewdog mandou Graeme Wallace. A parceria ganhou, então, a participação de outros convidados do evento, como Joseph Tucker, do site de avaliações cervejeiras Ratebeer.com; e o belga Jacques Bourdouxhe, cervejeiro caseiro há mais de 30 anos.

A eles se juntaram representantes de microcervejarias brasileiras, como Samuel Cavalcanti, da paranaense Bodebrown; José Felipe Carneiro, da mineira Wäls; e Rafael Rodrigues, da gaúcha Coruja.

"A partir daí, sentamos na fábrica e cada um deu seus ‘pitacos’ na receita até chegarmos à versão final", conta Winocur.

A cerveja, segundo ele, deve ficar mais próxima do estilo Imperial India Pale Ale. O nome Double American Pale Ale surgiu porque os produtores queriam fazer versão mais potente de sua American Pale Ale. "Por ora, a receita é segredo, mas vamos divulgá-la quando a cerveja for lançada."

Duas pistas


Ao menos um dos segredos, porém, já vazou: um dos lúpulos usados foi o Falconer’s Flight, seleção de variedades mais cítricas e florais, cujo nome é homenagem ao cervejeiro americano Glen Hay Falconer, morto em 2002.

Outra dica: a nova cerveja terá mais que o dobro do índice de amargor da American Pale Ale - que, por sua vez, tem três vezes e meia o amargor de uma lager industrial.
Não é a revelação do segredo, porém, que tornará a degustação desta cerveja fácil. Serão só 3 mil garrafas - e parte delas vai para os Estados Unidos e Escócia.

Boas receitas caseiras e de micros

O guia que os participantes do Wikibier recebiam logo na entrada já dava ideia da diversidade do evento que ocorreu no último sábado em Curitiba, no Paraná. Com o "mapa" de produtores e produções - uma boa ideia da organização -, era possível traçar um roteiro do que tomar e em qual ordem.

E as escolhas eram muitas: entre receitas caseiras, de microcervejarias e importadoras, havia, segundo organizadores, cerca de uma centena de rótulos, muitos dos quais ainda não aportaram no mercado paulistano.

O Wikibier ainda ofereceu um kit de harmonizações de cinco pratos com cervejas; no geral, elas funcionaram, mas em alguns casos as fermentadas ficaram mais fortes que a comida.

O evento ainda teve como ponto positivo a distribuição gratuita de água, providência saudável para degustadores - pena que ela acabou antes do fim. A música ao vivo também poderia estar mais baixa. Mas, no geral, foi uma boa experiência cervejeira.

Sacis e bruxas

Em todo dia 31 de outubro os fãs do Halloween, de inspiração estrangeira, e do Dia do Saci costumam se opor. Ao menos no mundo cervejeiro há opções para os dois públicos. A cervejaria Nacional, em Pinheiros, lança versão especial da stout Sa’Si, com maltes defumados e cerca de 5% de teor alcoólico. Ela alia notas de chocolate, suave mas de perceptível defumação e bom corpo. Custa R$ 8 (half pint) e R$ 12 (pint). Dos EUA, chega a Brooklyn Post Road Pumpkin Ale, que leva abóbora. Há ainda especiarias - são perceptíveis a canela e o cravo. Com 5%, tem notas de abóbora em bom balanço com os demais ingredientes. Da Beer Maniacs, deve custar a partir de R$ 15.
top 10 paladar

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

[águas passadas] CARTA PARA ZEZÉ DI CAMARGO



::txt::China::
::ilstrç::Kika Novaes::

Zezé, você não me conhece e nem faz ideia de quem eu sou, mas pode ficar sossegado comigo. Eu não quero te conhecer e nem quero ser teu amigo, mas resolvi te escrever esta carta pra te dar um toque, velho. Porra, Zezé, desiste de ser ícone da MPB, para de querer ser aceito por Caetano, Gil e Chico Buarque... esses caras não passaram pela metade do que você passou pra se tornar um artista cheio da grana. Você vende mais disco que os três juntos, faz mais shows e com certeza deve comer mais mulher do que os caras. Se liga man.

Assisti o filme sobre a sua vida e confesso que me emocionei com o que vi. Que vida dura, cara... tu se fudeu pra caralho pra conseguir crescer na carreira. Admiro isso e te respeito como artista exatamente por causa de todas essas dificuldades que tu passou sem nunca desistir do sonho (que frase blasé). Zezé, porra...TU COMEU OVO CRU!!!

Duvido que Chico, Gil ou Caetano tenham comido ovo cru pra ficar com a voz potente. Esses caras tomavam era suquinho com biscoitos e vestiam casaco de lã pra não gripar. Tu quer mesmo ser amigo dessa turma? Só menino criado em berço de ouro... todos mimadinhos e cheios de vontades. Não, Zezé, tu é melhor que isso.

Você já é um ícone da música brasileira, nem se preocupe. Todo mundo te conhece, canta tuas músicas, vai nos shows, assite teu filme... tu queres mais o que? Depois do Roberto Carlos, só dá tu na arrecadação do ECAD, toca no rádio o dia inteiro e teve uma das maiores bilheterias do cinema nacional. Você precisa mesmo do respeito de um pequeno grupo pseudo intelectual? Sei não, Zezé, acho que tu vacila quando tenta colar nessa turma. Você já provou o seu talento brilhante, não precisa se rastejar. Acabo esta carta deixando claro que não quero ser seu amigo. Escrevi estas linhas porque não podia deixar passar a oportunidade de te dizer algumas verdades. Respeito sua vida, seu trabalho e o exemplo de que não devemos desistir jamais, porém não posso compactuar com essa safadeza que você está fazendo com a sua carreira.

PORRA, ZEZÉ...TU COMEU OVO CRU!!!


*texto originalmente escrito pra um edição antiga da revista O DILÚVIO, lá por meados de 2007.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

[agência pirata] ALICE NO REINO DO iPAD



::txt::Zuenir Ventura::

Terminei a última coluna perguntando: onde estão os novos Freud, Proust, Kafka e tantos outros que brilharam na Europa do século XX? A resposta, eu antecipava, é discutível. Eles estariam agora nos EUA e se chamariam Steve Jobs, Larry Page, Sergey Brin, Mark Zuckerberg ou Bill Gates. Mas, ainda que portadores de mentes brilhantes, será que eles, passada a emoção pela perda de Jobs, resistem à comparação? Considerando que não é a glorificação imediata, mas o tempo de decantação o que consagra um gênio, terá sido merecida a insistência com que a mídia exaltou o mais conspícuo deles por ocasião de sua morte? A verdade é que não se fazem mais gênios como antigamente e talvez as condições exigidas hoje não sejam as mesmas da época de um Leonardo Da Vinci ou de um Thomas Edison.

Nada contra os gênios tecnológicos. Se eu não tivesse outras razões para admirá-los, teria a de que minha neta Alice, que acaba de completar 2 anos, é quem está me ensinando a lidar com o iPad de seu pai, que ela usa sozinha. Não é exagero de avô, não. Estou de fato aprendendo com ela. "Alice, bota o circo." Ela vai no aplicativo e exibe um vídeo com o palhaço, o trapezista, o equilibrista. "Agora, põe o YouTube que tem os meninos discutindo." Ela move a tela com o dedinho e atende ao meu pedido. É assim, aos poucos, que estou me familiarizando com a invenção do Steve Jobs. Só por isso já teria que agradecer a ele e chamá-lo de gênio, mas aí me dou conta de que gênio mesmo é Alice (a mídia é que ainda não descobriu).

Fico me perguntando se, com todos esses apelos audiovisuais, se com todo esse deslumbramento acrítico pelas novas mídias, com esse fascínio atual de índio por espelho, a geração de Alice ainda vai se interessar por livro e pelo que a leitura de um texto propicia: reflexão, conhecimento e senso crítico. Para tranquilizar, me dizem que, em vez de inibir a leitura, essas várias descobertas tecnológicas vão estimulá-la e que nunca se leu e escreveu tanto como agora. É verdade. Mas em geral é uma leitura efêmera e descartável para obter informação instantânea, não entendimento, num processo que desenvolve mais o reflexo do que a reflexão.

Não quero repetir o erro de muitos intelectuais de minha época, que rejeitavam a televisão por não haver ali, como se alegava, vida inteligente, era uma "máquina de fazer doido". Também não proponho o livro como fetiche. Mas a cultura artística e literária é indispensável para fazer avançar a Humanidade. Quase quatro séculos depois, pode-se afirmar, por exemplo, que uma obra como a de Shakespeare "alterou a própria natureza humana", como escreveu Harold Bloom no seu livro "Gênio". Haverá no Vale do Silício alguém capaz disso? Só o amanhã dirá.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

[noé ae?!] METAMORFOSES

[conteúdo livre] TRANQUILA E INFALÍVEL COMO BRUCE LEE



::txt::Luiz Eduardo Soares::

Enquanto a taxa nacional média de esclarecimento de homicídios dolosos é de 8%, o país entope penitenciárias de jovens pobres, não violentos

Os primeiros nove meses do governo Dilma, na segurança pública, foram decepcionantes.
A decepção decorre do contraste entre as expectativas suscitadas pelos excelentes nomes escalados para enfrentar o desafio e a postura da presidente, que prefiro descrever a qualificar, por respeito ao cargo e à sua biografia.

O começo foi alvissareiro, com a nomeação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que encheu de esperança até os céticos.

O primeiro ato do novo ministro justificou o otimismo. Foram convidados Regina Mikki e Pedro Abramovay para as secretarias de segurança e de políticas para as drogas.

Escolhas irretocáveis, cujos significados prenunciavam avanços. Some-se a isso uma vitória do ministro ao obter o deslocamento da secretaria responsável pela política sobre drogas para o Ministério da Justiça. Ainda que o ideal fosse inseri-la no Ministério da Saúde, tratava-se de um passo positivo da maior importância.

Na sequência, mais um alento: em entrevista ao "O Globo", Pedro mostrava quão perversa vinha sendo a escalada do encarceramento no Brasil, cujas taxas de crescimento já eram campeãs mundiais: desde 2006, o tipo penal que concentrava o foco das ações repressivas correspondia à prática da comercialização de drogas ilícitas sem armas, sem violência, sem envolvimento com organizações criminosas.

De meados dos anos 90 até hoje, passamos de 140 mil a mais de 500 mil presos. Em termos absolutos, só perdemos para a China e para os Estados Unidos. Era preciso mudar a abordagem do problema.

Por aí ficou Pedro, mas já era suficiente para disseminar o entusiasmo em tantos de nós.

Enquanto a taxa média nacional de esclarecimento de homicídios dolosos é de 8% (92% dos homicidas permanecem impunes, nem sequer são identificados nas investigações policiais), o país entope penitenciárias de jovens pobres, com baixa escolaridade, não violentos, que negociavam drogas no varejo.

Ao condená-los à privação de liberdade em convívio com grupos profissionais e organizados, que futuro estamos preparando para eles e para a sociedade?

Não há uso mais inteligente para os R$ 1.500 mensais gastos com cada jovem preso que não cometeu violência? É preciso impor limites, mas também ampará-los na construção de alternativas.

Veio a primeira frustração: a presidente ordenou ao ministro que desconvidasse Pedro Abramovay. A ordem presidencial caiu como um raio, fulminando a confiança que se consolidava e expandia.

Enquanto isso, o Brasil continua sendo o segundo país do mundo em números absolutos de homicídios dolosos -em torno de 50 mil por ano-, atrás apenas da Rússia.

Para reverter essa realidade dramática, uma equipe qualificada do ministério trabalhou todo o primeiro semestre na elaboração de um plano de articulação nacional para a redução dos homicídios dolosos, valorizando a prevenção mas com ênfase no aprimoramento das investigações.

Um plano consistente e promissor, que não transferia responsabilidades à União, mas a levava a compartilhar responsabilidades práticas. Em meados de julho, chegou a data tão esperada: o encontro com a presidente. O ministro passou-lhe o documento, enquanto o técnico preparava-se para expô-lo.

Rápida e eficaz, tranquila e infalível como Bruce Lee, a presidente antecipou-se: homicídios? Isso é com os Estados. Pôs de lado o documento e ordenou que se passasse ao próximo ponto da pauta.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

[a vida como ela noé] PERDIDO NA COLÔNIA 20



::txt::Monsenhor Jucá::

Começo dos anos 90, auge de minha adolescência. Minha família recém havíamos nos mudado de um bairro pra outro de Tibiquari; saímos não lembro de onde, e fomos pra Colônia 20, um local um pouco afastado do centro da cidade.

Ir e voltar da aula não era difícil. Montava na magrela e pedalava legal. O chato era voltar da night. Enquanto alguns voltavam de carro e bem acompanhados, eu voltava a pé e sozinho. As vezes eu tinha a companhia do saudoso Teio até metade do caminho, e seguia o restante em plena solidão.

Certa noite eu tinha bebido bastante e, como ainda não estava adaptado às ruas do novo bairro, em determinada altura eu achei que estava perdido em meu retorno pra casa. E nenhum vivente a madrugar pela rua pra eu pedir informação.

Minha sorte mudou quando um xiru cruzou a calçada. Sabe, né, cidade pequena, do interior, todo mundo conhece todo mundo, fui direto na questão que me incomodava:

- Boa noite, cara, tu sabe onde fica a casa do seu Hélio?

O desgraçado dava risada da minha cara. Eu sem entender o motivo da piada, perguntei qual era a graça. Ele respondeu:

- Cara, o seu Hélio é o teu pai!
- Tchê, eu sei que ele é meu pai. Eu só não sei onde ele mora!

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

[noé ae?!] ZÉ MCGILL

[do além] DA VINCI A ZERO



::txt::Leonardo da Vinci::

Se você não aguenta mais ouvir falar de Steve Jobs, imagina eu que, de uma hora para outra, quase perdi o posto de maior gênio da humanidade. As comparações entre os nossos feitos não cessam na imprensa e nas redes sociais. Não sou só eu que estou indignado. Jesus também não está gostando nada de ter o seu Sermão da Montanha irmanado ao discurso aos formandosda Universidade Stanford, proferido pelo pai da Apple, aquele que faz sucesso no YouTube.

Entendo que todo morto célebre tem tendência a virar santo. Mas nem estão dando tempo de apurar os milagres de Jobs e já o estão canonizando. Enquanto devotos deixavam velas, flores e condolências nas Apple Stores, outros, a metros dali, ocupavam Wall Street e protestavam contra o sistema financeiro. O próprio Jobs alertava, em seu já referido discurso, sobre a importância de ligar os pontos. Mas parece que as pessoas não associaram um evento ao outro. Talvez a realidade rode em Flash.

Notem, não quero diminuir o valor de Jobs. Sua contribuição é notável, especialmente quando a bateria ainda não se foi. Apenas é preciso colocar as coisas nos seus devidos lugares. Passei séculos sendo considerado um dos maiores pintores de todos os tempos e como possivelmente a pessoa mais dotada de diversos talentos a ter vivido. Não é justo que alguém, em menos de uma semana, passe a ser tratado como exemplo de homem renascentista.

Por isso, decidi comparar nossas obras mais conhecidas. Sei que é uma coisa estúpida fazer um paralelo entre máquinas e obras de arte. Mas todo gênio tem muito de idiota.

Homem Vitruviano X iPod

Meu famoso desenho é o símbolo da simetria básica do corpo humano, cujo funcionamento é uma analogia para o funcionamento do Universo. Ou seja, com meu esboço anatômico fiz uma cosmografia do microcosmo.

O tocador de música da Apple destruiu a indústria fonográfica e gerou milhares de músicos de churrascaria. Além de nos criar o hábito de acumular músicas que jamais vamos ouvir.



Mona Lisa x iPad

A fila para ver a Mona Lisa é permanente. E há um bom tempo.

A fila para comprar o iPad é grande. Mas só nos períodos de lançamento.



A Última Ceia x iPhone

Fiz a Última Ceia para a iGreja de meu protetor, o Duque Lodovico Sforza.

É um dos quadros mais famosos do mundo. Baseia-se em João 13:21, no qual Jesus anuncia aos 12 apóstolos que alguém, entre eles, o trairia. Sua reprodução está nas casas de metade do planeta e nunca precisou ser atualizada.

Já o iPhone acabou com todas as ceias coletivas. Hoje, cada um fica curvado esfregando os dedos na telinha. Jobs nunca avisou quando ia trair seus fiéis compradores. Lançou novas versões do seu smartphone a todo momento. O que tornava obsoletos os modelos recém-adquiridos.

domingo, 23 de outubro de 2011

[paladar] UM GENOVÊS BEM NAPOLITANO



::txt::Dias Lopes::

Quando imigraram para São Paulo nos séculos 19 e 20, primeiro para trabalhar nas lavouras de café do interior do Estado, depois na indústria e comércio da capital, os italianos de Nápoles e arredores trouxeram uma cozinha rica e apetitosa. Várias das suas receitas tradicionais se integraram ao cardápio da nova terra.

Um desses imigrantes fundou no bairro paulistano do Brás, em 1910, a pizzaria número um do Brasil. Outros abriram cantinas barulhentas com toalhas xadrez e garrafas dependuradas no teto, cujos donos falantes empunhavam os pratos que devíamos comer. A clientela saboreava spaghetti aglio e oglio ou alle vongole, brasciola, scaloppina, ragù alla napoletana, filé alla pizzaiola, torta di ricotta, etc.

Mas algumas receitas se extraviaram e uma pela qual suspiram os descendentes daqueles imigrantes é a veterana salsa alla genovese (molho à genovesa). "Até hoje fico com água na boca ao lembrar da que fazia a mamma napolitana do quartieri de Vomero", confessa o restaurateur Toninho Buonerba, dono da Cantina e Pizzaria Jardim de Napoli, no bairro de Higienópolis. "Nunca a preparei, mas ainda farei isso." Apesar do nome, a receita não foi inventada em Gênova, na Ligúria, berço do pesto, da focaccia e da torta pasqualina, mas em Nápoles, a mais de 700 km dali.

Faz-se o molho à genovesa cozinhando pedaços de carne bovina com cebola picada, pancetta, aipo, cenoura, salsinha, azeite, vinho e sal, até obter um creme amarronzado de sabor surpreendente. A preparação deve pippiare (borbulhar) por horas a fio em fogo baixo. A carne recomendada é o girello (lagarto), chamado lacerto em Nápoles. Na falta, usa-se a punta di scamone (ponta da alcatra). Retira-se do molho no final do cozimento. A carne é servida como segundo prato. O molho se harmoniza com massas em formato de tubo, como perciatelli, ziti, penne e paccheri.

A novidade é que "la salsa regina della gastronomia napoletana", como se proclama no sul da Itália - o rei é certamente o ragù - está de volta a São Paulo, por iniciativa do BottaGallo, no bairro do Itaim. Outra mamma se envolveu na história. "Introduzimos o molho há oito meses por sugestão do napolitano Aurelio Cinque, dono do Cinque Frigorífico, de Cotia, que nos fornece seus excelentes embutidos", conta André Lima, o Deco, sócio do BottaGallo. "Ele nos ensinou a receita da mãe. Só mudamos a massa. Escolhemos o pappardelle, em vez do penne que nos aconselhou."

Os napolitanos não sabem por que deram a um molho porta-bandeira da sua culinária o nome de uma cidade da Ligúria. Lejla Mancusi Sorrentino, no livro I Dodici Capolavori della Cucina Napoletana ("As 12 obras-primas da cozinha napolitana", Edizioni Intra Moenia, Napoli, 2003), comenta a hipótese de a receita ter sido criada no século 16, 17 ou 18, nas casas dos mercadores e banqueiros genoveses que viviam na cidade, ou em alguma tratoria aberta para satisfazer-lhes os hábitos alimentares.

A presença da cebola seria uma prova. Ainda hoje os genoveses adoram esse bulbo carnoso e aromático. A focaccia com cebola, por exemplo, é bastante difundida em sua terra, especialmente nos bairros populares e entre os estivadores do porto local. Para completar, os napolitanos brincam que as mulheres genovesas são as que menos choram ao cortar cebola... Outra hipótese é o molho ter sido criado por um cozinheiro de sobrenome Genovese, bastante difundido na região.

Em Nápoles, desfruta de merecida fama o penne alla genovese da centenária Osteria da Tonino, na Via S. Teresa a Chiaia 45. Ali, saboreia-se o prato, mais um segundo de carne e vinho regional, ao preço médio de 20 por pessoa. Tonino Canfora, atual proprietário, orgulha-se de sua casa ter sido frequentada por Enrico Caruso (1873-1921), "o maior tenor de todos os tempos". Só não sabe dizer se ele pedia o penne ou outra massa alla genovese. Mas, como era napolitano genuíno, o genial intérprete de Radamés, da ópera Aida, de Giuseppe Verdi, certamente apreciava o molho.

MOLHO ALLA GENOVESE

Ingredientes

1kg de carne de boi (prefira lagarto) cortada em pedaços grandes
50g de pancetta defumada cortada em pequenos cubos
1,5kg de cebola bem picada
1 talo de aipo bem picado
2 cenouras bem picadas
2 a 3 talos de folhas de salsinha picadas
100 ml de azeite
250 ml de vinho branco seco
Queijo parmesão ralado a gosto (opcional)
Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

Preparo

Em uma panela, de preferência de barro, coloque junto a carne, a pancetta, a cebola, o aipo, a cenoura, a salsinha, o azeite, o sal e a pimenta.
Cubra a panela e cozinhe em fogo muito baixo, mexendo de vez em quando. Após uma hora de cozimento, levante um pouco a chama, para os ingredientes pegarem cor.
Incorpore o vinho e misture bem. Diminua o fogo e prossiga o cozimento por cerca de três horas, até a carne ficar bem cozida e tenra. Mexa de vez em quando e, se necessário, pingue um pouco de água durante o cozimento.
O molho deve ficar denso e com uma bonita cor marrom.
Sirva o molho de preferência com massas curtas em formato de tubinho, tipo zite e penne lisce (sem estrias na superfície). Se gostar, pulverize por cima do prato um pouco de parmesão.
Reserve a carne para um segundo prato ou para alguma outra preparação.

Rendimento: 6 porções

sábado, 22 de outubro de 2011

[agência pirata] ALÉM DA TAPIOCA



::txt::Ricardo Melo::

Quando esta coluna chegar até você, leitor, não imagino por onde andará o ministro Orlando Silva. Se ainda estará no cargo ou se já terá virado mais um dos defenestrados do governo Dilma.

Tampouco sei se Orlando Silva levou dinheiro para casa ou apenas fez os desvios costumeiros em "nome do partido". É fato, no entanto, que se tornou comum na administração petista utilizar ONGs como fachada para descalabros. O expediente, retratado à exaustão pela imprensa, serviu e serve a ministros das mais diversas origens e tintas ideológicas.

O Partido Comunista do Brasil segue a regra. Por trás do rótulo de esquerda, o PC do B, vamos combinar, nunca quis mudar coisa nenhuma. Dissidência do velho PC stalinista, manteve a mesma essência da matriz, qual seja: usar um discurso "popular" para reforçar a barganha do aparelho partidário na negociação com o poder estabelecido.

O grupo fez isso ao longo da história; fez e faz isso na UNE; não é de estranhar o que faz no ministério. Olhando para além do imediato, o grande prejuízo de toda essa história não é propriamente financeiro -embora os malfeitos, para usar a palavra da moda, com dinheiro público sejam indesculpáveis, independentemente do montante. Tanto faz se o numerário alheio custeou uma tapioca, uma uma suíte de hotel ou se encheu o bolso da burocracia partidária.

O mal maior é político e ideológico. Toda vez que uma legenda supostamente popular é pilhada com a mão no Tesouro, esparrama-se uma nova leva de desencanto. Queira-se ou não, ainda há muita gente iludida com a conversa dessas organizações. O custo disso não se mede em reais.

Siglas como o PCB, PC do B, MR8 e seus semelhantes nacionais e internacionais sempre terão sua parcela de culpa na onda de desesperança generalizada. A culpa de falar em nome do povo, mas agir contra ele. E o PT, no qual se viam chances de oxigenar esse cenário, só faz provar sua acomodação ao papel de conivente.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

[noé ae?!] ROMULO FRÓES e RODRIGO CAMPOS

[conteúdo livre] A INTERNET NÃO É MEIO DE COMUNICAÇÃO



::txt::Eugênio Bucci::

No início do mês (dia 3 de outubro) a Suprema Corte, nos Estados Unidos, decidiu que baixar uma música da internet não equivale a exibir essa mesma música em público. Portanto, ao copiar o arquivo de uma canção no seu computador, o consumidor não deve ser tratado como alguém que toca essa mesma canção para uma grande audiência, no rádio ou num show.

Ora, dirá o leitor, nada mais óbvio. Baixar uma faixa de CD é mais ou menos como copiar no gravador de casa uma canção que a gente sintoniza na FM. Trata-se de um ato doméstico, que não se confunde com executar uma obra musical para uma plateia de 5 mil espectadores. No entanto, até hoje, o pensamento oficial sobre a internet - em especial o pensamento das Cortes de Justiça - carrega uma tendência de equipará-la aos meios de comunicação de massa. Um erro grosseiro e desastroso. Além de obtusa, essa visão traz consequências perversas, como a que levou parlamentares brasileiros, há coisa de dois anos, a tentarem aprovar uma lei que impedia os cidadãos de manifestarem suas opiniões sobre as eleições em sites e blogs durante o período eleitoral, como se a rede mundial de computadores fosse da mesma família que as redes de televisão e de rádio, que funcionam sob concessão pública.

O furor censório dos parlamentares acabou não vingando, para alívio da Nação, mas o conceito equivocado em que ele plantou seu alicerce continua aí. Por isso a recente decisão da Suprema Corte, negando as pretensões econômicas e intimidatórias da American Society of Composers, Authors and Publishers (Ascap), interessa especialmente a nós, brasileiros. Ela constitui um argumento a mais para que expliquemos aos retardatários (autoritários) que nem tudo o que vai pela internet é comunicação de massa. Aliás, quase nada na internet é comunicação de massa. Para as relações políticas e jurídicas entre os seres humanos essa distinção elementar faz uma diferença gigantesca.

A internet não é televisão, não é rádio, não é jornal, nem revista, assim como não é correio ou telefone. Ela contém tudo isso ao mesmo tempo - mas contém muito mais que isso. Existem canais de TV e de rádio na internet, é bem verdade. Os jornais estão quase todos online, bem como as revistas, sem falar no correio eletrônico: as pessoas trocam mensagens, como trocavam cartas. O Skype e outros programas vieram para baratear e melhorar os velhos telefonemas, com a vantagem de mostrar aos interlocutores a cara um do outro. Logo, dirá a autoridade pública, a rede mundial de computadores internet é uma Torre de Babel em que todos os meios de comunicação se encontram e se confundem, certo?

Errado. A humanidade comunica-se pela internet - só no Brasil já são quase 80 milhões de usuários -, mas isso não significa que ela seja, como gostam de dizer, uma "mídia" que promove a convergência de todas as outras "mídias". Ela é capaz de fornecer ferramentas para que um conteúdo atinja grandes audiências de um só golpe, ao vivo, assim como permite que duas pessoas falem entre si, reservadamente. Acima disso, porém, ela abre outras portas, muitas outras. Pensá-la simplesmente pelo paradigma da comunicação é estreitá-la, amofiná-la - e, principalmente, ameaçar a liberdade que ela encerra.

A internet também é comércio: os consumidores fazem compras virtualmente - mas isso não nos autoriza a dizer que ela possa ser regulada como se fosse um shopping center. Vendem-se passagens aéreas e pacotes turísticos pela rede, mas ela não cabe na definição de agência de viagens. Correntistas acessam suas contas bancárias e pagam contas sem sair de casa, mas a internet não é banco, e, embora quitemos nossos impostos pelo computador, ninguém há de afirmar que a web é uma extensão da Receita Federal. Ela é tão ampla como são amplas as atividades humanas: aceita declarações de amor, assim como aceita lances ousados da especulação imobiliária. Nela a vida social alcança plenamente outro nível, que não é físico, mas é real, tão real que afeta diretamente o mundo físico, sendo capaz de transformá-lo. Mais que meio de comunicação, a internet é, antes, a sociedade num segundo grau de abstração. Se quiserem comparações, ela tem mais semelhança com a rede de energia elétrica do que com um aparelho de TV ou com o alto-falante na praça do coreto.

Para efeitos da regulamentação e da regulação, a internet não cabe num regime. Ela é capaz de abrigar tantos regimes quanto a própria vida em sociedade - e, assim como a vida em sociedade, é maior que o direito positivo. Ela, sim, pode conter e processar decisões judiciais e trâmites processuais, mas estes não podem contê-la, explicá-la ou discipliná-la por inteiro. Pretender controlá-la, taxá-la, pretender instalar pedágios em cada nó seria equivalente a começarmos a cobrar direitos autorais de quem empresta um livro de papel à namorada, ou, pior ainda, seria como sujeitar as conversas de botequim à legislação do horário eleitoral na televisão e no rádio.

A rede de computadores trouxe uma expansão sem precedentes a uma categoria que, nos estudos de sociologia e de comunicação, ganhou o nome de "mundo da vida". Trata-se de um conceito contíguo a outro, mais conhecido, o de "esfera pública". Nesta se encontram os temas de interesse geral dos cidadãos. No "mundo da vida" moram as práticas sociais mais arraigadas, a rotina mais prosaica, os nossos modos de amar, de velar os mortos ou, se quiserem, de conversar no botequim. Não por acaso, daí, desse mundo da vida, é que brota a esfera pública democrática; a própria imprensa nasceu dos saraus e das tabernas, quando aí se começou a criticar o poder.

Por isso, enfim, as formas de livre expressão na internet precisam estar a salvo do poder do Estado e da voracidade dos grupos econômicos. Por isso a decisão da Suprema Corte é bem-vinda.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

[nego dito] ABSOLUT CAPITALISM

[over12] CYBERSELVA E O NOVO FUNDAMENTALISMO



::txt::Fred 04::

Tudo isso começou em tempos longínquos, dez milênios antes da ascensão do K-ciq Stardust como Sumo Pajé da Magna Esfera. A Via Láctea foi a primeira galáxia a se contaminar como a nuvem bioplasmática, e a máxima etnia INDIA(N)ET mergulhou num longo período de convulsões tecnoéticas que o cosmoprofeta Maqin Toshi qualificou como era do rompimento atômico e da fissura moral.

A grande floresta tropical do planeta Terra, berço de algumas da últimas tribos imunizadas pela força dos pajés nativos, se transformou no alvo principal da pirataria intergalática. Um episódio emblemático ocorreu por volta do ano de 2002 da era cristã, quando um grupo de congressistas da nação Brasil resolveu instalar uma Comissão Parlamentar da Biopirataria para, dentre outros objetivos, tentar impedir a venda online de amostras de DNA e de sangue indígenas da região amazônica.

Logo descobriram que a distribuição do material sagrado era coordenado por um site sediado a milhares de quilômetros de distância, no território conhecido como América do Norte, ou seja, em outro hemisfério. Os tribunais superiores não hesitaram em julgar que, no caso da venda do patrimônio genético, as constituições nacionais eram ineptas perante o novo paradigma virtual. Entretanto, como desconfiavam alguns parlamentares, o que estava em jogo, neste caso simbólico, era nada menos que a ética civilizada.

Na nuvem de plasma o incidente, como tantos outros, passou despercebido e, aos poucos, um novo ambiente Miti Subitxxi de convívio foi se estabelecendo. Artifícios de relacionamento social há muito criminalizados e banidos pelos preceitos jurídicos da humanidade civilizada - como a disseminação de panfletos apócrifos e a falsidade ideológica -, voltaram a ser tolerados, com avançada e vistosa roupagem e com a benção dos novos magos tecnofundamentalistas da cyberselva encantada.

E ao cabo de algumas décadas, aos poucos urbanóides com questionamentos éticos que ainda restariam na face do Planeta Azul, nem caberia mais polemizar, pois a era da displicência civil e da internética Toshi Babaa haveria enfim chegado e se instalado irremediavelmente para imperar em toda a Magna Esfera.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

[agência pirata] A GRANDE CHANCE DE RODRIGO AMARANTE



::txt::Tiago Agostini::

É engraçado: gostar de Los Hermanos hoje em dia virou quase uma vergonha. Perceba em qualquer conversa que aborde o grupo e que envolva mais dos que quatro ou cinco pessoas: automaticamente os detratores falarão mais alto, ridicularizando a banda e seus fãs fiéis. Será inevitável que os dois ou três que gostem do quarteto a defendam, mas geralmente sem muita convicção. Uma situação que pode mudar com o provável lançamento do disco solo de Rodrigo Amarante em 2012.

Convenhamos, no entanto, que nos últimos anos os fãs de Los Hermanos não têm realmente muito do que se orgulhar. “4”, derradeiro disco da banda, era extremamente irregular e mostrava a dupla central criativa cada vez mais distante: enquanto os bons momentos vinham do ensolarado Amarante – como em “O Vento” –, Camelo estava cada vez mais introspectivo – como em “Dois Barcos”. O abismo era tão aparente que os próprios perceberam e, ao se unirem para gravar o quinto disco, em 2007, preferiram separar a banda por tempo indeterminado a lançar um trabalho ruim.

Cada um seguiu seu caminho sem ressentimentos e mantendo a amizade – os shows de reunião, tanto no SWU como abrindo para o Radiohead, mostram isso. Camelo demorou um pouco, mas lançou seu aguardado primeiro disco solo, “Sou”, que comprovou o que todos temiam: as músicas eram ainda mais arrastadas e herméticas que as composições do “4” – em outras palavras, era um disco chato. Ele ainda lançou um “MTV Ao Vivo” que ninguém deu bola e veio com “Toque Dela”, um álbum mais fácil, porém esquecível, no início deste ano. Por mais que ainda mantenha sua relevância na música nacional, Camelo foi mais importante no noticiário nestes anos fora do Los Hermanos devido às comparações com Polanski.

Amarante, artisticamente, também não fez muita coisa. Lançou um disco com a Orquestra Imperial e outro com o Little Joy, além de manter viva sua colaboração com Devendra Banhart. Nada que realmente demonstrasse a que veio: “Carnaval Só Ano que Vem”, o registro da Orquestra, é um belo disco, mas resultado de um enorme trabalho coletivo; “Little Joy”, a parceria com o baterista Fabrizio Moretti, do Strokes, une um monte de musiquinhas bonitas e agradáveis, mas completamente inofensivas.

O disco que deve sair em 2012 é, de fato, o momento em que Amarante mostrará finalmente suas ideias musicais. Não adianta especular sobre como o disco virá: os trabalhos pós-“4” pouco trazem pistas estéticas atuais de Amarante. De acordo com o Mauricio Valladares, no programa Ronca Ronca, da OiFM, o cantor volta ao Brasil no início do ano que vem e deve liberar o disco em março. Uma vez anunciado, porém, ele já se torna um dos lançamentos mais aguardados de 2012.

Afinal, por mais que hoje o grupo seja ridicularizado por seus detratores, o Los Hermanos é a banda mais importante da década 00 no Brasil. Excluindo Emicida, os tecnobregas e o CSS e seus sub-filhotes, absolutamente todo mundo que surgiu no cenário independente após 2001 deve algo ao Los Hermanos. “Bloco do Eu Sozinho” é um marco histórico: foi o disco que fez toda uma geração perder a vergonha de ouvir samba e música popular brasileira.

A revolução involuntária hermânica só foi possível, é óbvio, porque tanto “Bloco” quanto o disco seguinte, “Ventura”, eram duas obras sensacionais – o disco de estreia, homônimo e mais esporrento, também é brilhante –, unindo lirismo com peso e vigor, melodias doces com letras acima da média. Além disso, o quarteto soube criar uma relação íntima e direta com o público, uma equação que gerou fãs tão fieis que as apresentações da banda sempre foram marcadas pela plateia cantando mais alto que a banda.

O culto ainda existe. No show do SWU do ano passado, mesmo separados do palco pela área VIP, os fãs se faziam escutar durante músicas como “O Vencedor” e “Cara Estranho” – os confetes e serpentinas usuais foram poucos, mas estiveram presentes. A claudicante apresentação de Camelo no Rock in Rio deste ano só foi salva por “Além do que se Vê”, uma das grandes músicas de “Ventura”. E, desde o começo do ano, Rodrigo Barba tem tocado o “Bloco” na íntegra com uma banda que inclui os metais da época dos Hermanos e Gabriel Bubu, que acompanhava a banda, na guitarra. Os relatos são de que shows no Teatro Odisseia, no Rio, têm filas enormes do lado de fora. Quem não consegue entrar fica cantando na porta, junto – o vídeo abaixo mostra um pouco da comoção.

Depois do estouro de “Anna Julia”, o Los Hermanos nunca voltou a ser mainstream, mas se tornou a maior banda do underground, sendo responsável direta pelo aumento de público dele. Durante uma conversa no ano passado, Fabrício Ofuji, produtor do Móveis Coloniais de Acaju, comentava a ausência do Los Hermanos do cenário. “Teria sido melhor se eles tivessem continuado. Muita gente parou de ouvir coisas novas quando eles acabaram”, disse, frente à questão de se o Móveis teria “herdado” muitos fãs do quarteto.

Muito se questiona hoje sobre qual o próximo estágio da atual geração do independente brasileiro. Há uma percepção de que o público existe, mas a pergunta é: o tamanho da cena e a popularidade dos artistas são suficientes? Ou é necessário um passo adiante em termos de visibilidade? Mais ainda: como dar esse próximo passo em busca de um público maior? Dependendo da qualidade e do desempenho, talvez a resposta para o dilema esteja no disco solo de Amarante. Agora é esperar as águas de março…

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

[agência pirata] NENHUM PAÍS É UMA ILHA



::txt::Fernando Gabeira::

Nenhum homem é uma ilha, dizia o poeta inglês John Donne, no século 17. No auge da globalização, é razoável afirmar que nenhum país e uma ilha.

Quando as coisas apertam o mundo, o Brasil tende a se ilhar, mentalmente. O Brasil é uma ilha de prosperidade, dizia o general Geisel. Tsunami econômico aqui não passa de marolinha, afirmava o presidente Lula.

O jornalista americano Michael Lewis acaba de concluir um livro - Boomerang, Viagens ao Novo Terceiro Mundo - sobre a Europa. Ele percorreu quatro países: Islândia, Irlanda, Grécia e Alemanha. Seu objetivo era extrair lições para os EUA. E concluiu que os americanos deveriam inquietar-se com a crise europeia, pois podem ser os próximos da fila.

Barack Obama e Dilma Rousseff têm feito constantes advertências aos líderes europeus. Alguns já reclamam por terem sido condenados a ouvir conselhos. É compreensível que os dois presidentes se inquietem com a crise europeia e a demora em achar saídas. Mas ambos, em níveis diferentes, têm de olhar a própria retaguarda.

A exemplo de Islândia, Grécia e Espanha, os EUA enfrentam manifestações de rua. Elas têm um objetivo vago, mas miram o sistema financeiro e suas relações com o governo.

No Brasil o tema é a corrupção, mas o núcleo de descontentes pode ampliar seu alcance em caso de crise econômica. E não só porque a corrupção se torna mais insuportável num quadro de crise. Outro fator potencial de protesto é o modo irracional de gastar o dinheiro público. Olhando por esse ângulo, o Brasil comporta-se como um novo-rico, alheio à tempestade que se aproxima.

Os fatos da semana fortalecem essa visão. A Câmara dos Deputados gastou R$ 13,9 milhões com telefone nos últimos oito meses. Se houvesse interesse, com a ajuda da tecnologia esses gastos poderiam ser reduzidos à metade. Os custos do Congresso aumentam, assim como aumenta a resistência a considerar a tese de que, sem perder a eficácia, eles poderiam ser reduzidos à metade. A Câmara tem uma televisão com equipamentos e equipe completa. A pouco mais de 300 metros dali, o Senado tem também uma televisão com equipamentos e equipe completa. Com bons editores, uma só televisão divulgaria todo o trabalho do Congresso e ainda sobraria tempo.

José Sarney declarou em entrevista que os privilégios parlamentares são um tributo à democracia. Os suecos, apesar de sua riqueza, considerariam um insulto à democracia. Basta examinar o tratamento que dão a seus parlamentares, que precisam lavar sua roupa e limpar, após usarem, a cozinha coletiva de seu prédio.

Na área do governo, os fatos também revelam indiferença pelos gastos inúteis. Essa tendência pode rastreada pelas manchetes dos jornais. O Ministério da Pesca surge como um generoso pagador da bolsa-defeso. Não há indícios de que conterá seus excessos. O da Saúde aparece gastando parte de sua verba com vale-transporte e até pista de skate. Enquanto isso ocorre, R$ 1,8 milhão enviado à reserva dos índios guaranis-caiuás parece ter sumido no caminho, pois os postos, segundo o Ministério Público, estão em estado de miséria. Já a reforma do Palácio do Planalto custou 43% acima do preço estimado inicialmente. Apesar de notas técnicas condenando os gastos, R$ 112 milhões foram pagos.

Tudo isso vem à tona na fase pós-escândalo dos Ministérios dos Transportes e do Turismo, áreas em que as cifras do dispêndio eram muito maiores. A visão corrente na base do governo é de que tudo é secundário e chega a ser comovente se importar com tais gastos, diante da complexidade do processo. O mantra é confiar no mercado interno, apoiar-se nele para continuar crescendo. No entanto, embora não seja alarmante, pesquisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) diz que, entre os emergentes, o Brasil sofreu uma das mais fortes desaceleração do crescimento.

A presidente Dilma deve anunciar, dizem os jornais, um novo plano de investimentos. Ela quer estimular a economia. Grande parte dos investimentos que o País fará nos próximo anos é destinada à Copa do Mundo e à Olimpíada. É preciso muita confiança para supor que esse caminho não apresente riscos na crise. Não se trata apenas de calcular o custo de alguns elefantes brancos. Eles continuarão representando gastos de manutenção muito tempo depois de usados nesses eventos internacionais.

Não se pode dizer que o governo ignore o problema de gestão dos recursos. Dilma atraiu para sua equipe o empresário Jorge Gerdau, que investiu na modernização dos governos. O do Rio de Janeiro deve a ele grande parte do êxito em superar o atraso constrangedor das administrações anteriores. A presença de Gerdau indica, pelo menos, a existência de plano de longo alcance. Mas falta uma força-tarefa para as emergências.

Toda eleição presidencial discute os gastos com viagens, que rondam os R$ 800 milhões. Num tempo de teleconferências, e-mails, Skype, gastos com viagens poderiam ser reduzidos. Mas não se vê uma campanha para diminuí-los, com resultados transparentes.

Ao pedágio da corrupção soma-se o espírito de novo-rico, inspirado pelo crescimento econômico. É muito peso para voar em tempos difíceis. Os dois fatores se entrelaçam e ganham nova dimensão quando o foco está na Copa e na Olimpíada. O primeiro grande acontecimento, o sorteio das chaves, no Rio de Janeiro, revelou a amplitude dessa tendência perigosa. Estado e cidade gastaram, juntos, R$ 30 milhões. O aluguel de uma cadeira custou R$ 204, soma suficiente para comprar cadeira nova.

A racionalidade nos gastos é um remédio muito simples para a complexidade da crise. Outras grandes medidas se pedem aos estadistas. A vantagem do remédio está sobre a mesa: é só ter a coragem política de adotá-lo. Na verdade, o grande obstáculo para racionalizar os gastos é político. Uma configuração estática de governo torna a política não mais uma solução, mas parte da crise.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

[agência pirata] AS POLPETTAS E A LITERATURA ITALIANA



::txt::Dias Lopes::

Um casal de jovens apaixonados - o honesto e impulsivo operário têxtil e camponês Renzo Tramaglino, a dócil e piedosa tecedeira Lucia Mondella - pretende casar-se. Mas o vigário don Abbondio, um religioso de caráter fraco, não tem coragem de autorizar a união. A noiva é cobiçada pelo implacável don Rodrigo, o senhor feudal que pretende raptá-la. Para escapar da ameaça, Lucia se refugia em um convento, onde enfrenta as intimidações e tentações da Monja de Monza, uma mulher frustrada, e do áspero e hostil Innominato. Por fim, o capuchinho Cristoforo, um frade corajoso, salva Lucia e Renzo, fazendo a história ter final feliz.

Resumido assim, usando adjetivos comuns para traçar a personalidade dos personagens, o enredo de I Promessi Sposi (Os noivos), obra de Alessandro Manzoni (1785-1873), sugere um conto de fadas. Mas não é. Trata-se do mais importante romance da literatura da Itália e o livro mais representativo do Risorgimento - o movimento que unificou o país no século 19, então fracionado em pequenos Estados, cujo sesquicentenário se festeja em 2011. É também a obra mais lida e estudada pelos italianos depois da Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321). Manzoni a publicou em 1827 e, apesar de ser milanês, reescreveu-a em 1840 no mais puro florentino, que parecia estar propondo como inspiração para a atual língua da pátria. Na época, havia uma desordem de vozes, cada Estado dispunha da sua. Daí se considerar I Promessi Sposi etapa fundamental na consolidação da língua italiana.

O romance transcorre no início do século 17, durante a ocupação espanhola, e descreve com precisão episódios históricos como a enorme epidemia de peste da época. Mas o cenário é falso. Na verdade, refere-se ao domínio austríaco do norte da Itália. Além disso, apesar de I Promessi Sposi evocar o dilema da fome, seus personagens comem e bebem como gente de carne e osso.

Pela sua importância documental, os historiadores gastronômicos investigam os alimentos citados no romance. A obra-prima La Scienza in Cucina e L’Arte de Mangiar Bene, do emiliano Pellegrino Artusi (1820-1911), que teve para a culinária italiana o mesmo papel agregador e nacionalista de I Promessi Sposi, só foi publicada 64 anos depois. No sétimo capítulo do seu romance, por exemplo, Manzoni faz o herói Renzo entrar em uma taverna com dois amigos e pedir um prato de polpette (almôndegas). "Pode estar certo de que não comeu melhores", garante-lhe o proprietário.

A questão é saber qual foi a receita preparada pelo taverneiro. Segundo a Grande Enciclopedia Illustrata della Gastronomia (Selezione dal Reader’s Digest, Milão, 2000), a polpetta é uma preparação antiquíssima na Itália. Leva carne, peixe ou verdura moída, ligada com ovo e moldada em forma de bola.

A Grande Enciclopédia Illustrata della Gastronomia divide a polpetta em dois tipos: a que leva ingredientes crus e a que os processa cozidos. A segunda categoria era chamada "dos pobres", por reaproveitar alimentos. A receita toscana, também chamada de florentina, recomenda carne cozida e pão dormido. Entretanto, caso Manzoni fosse à cozinha, certamente prepararia a polpetta alla milanese, mais conhecida por mondeghili, típica de sua cidade natal. Com carne cozida, mortadela e salame.

Descendente da aristocracia lombarda, neto do humanista e jurisconsulto Marquês de Beccaria (1738-1794), o romancista foi educado pela mãe, mulher culta, separada do marido. Vestia-se com roupas escuras, gostava de jogar na roleta e a boa mesa. Além de apaixonado pela polpetta, apreciava testina (cabeça) di vitelo glassata, chocolate e panettone. Manzoni se excedia no vinho. Tinha um copo especial, que mandou fazer, duas vezes maior que o normal.

Receita

Mondeghili

4-6 porções
Preparo: 30 min
Muito fácil

Ingredientes

350g de carne bovina moída sem gordura
100g de mortadela bem picadinha
2 fatias de salame bem picadinhas
1 dente de alho amassado
2 ovos inteiros
O miolo de 1 pãozinho banhado no leite e depois apertado em uma peneira para perder o excesso de líquido
1/2 xícara (chá) de salsinha picada
1/4 de casca de limão ralada
1 pitada de noz-moscada; 1 pitada de sal
2 a 3 ovos ligeiramente batidos para empanar; farinha de rosca misturada com farinha de trigo quanto baste; manteiga para fritar; sal a gosto

Preparo

Em uma tigela, junte os ingredientes (exceto os ovos, a farinha de rosca e a manteiga) e misture muito bem, até ficar homogêneo. Faça bolinhas de aproximadamente 4 cm de diâmetro, achatando-as ligeiramente. Passe as bolinhas nos ovos batidos, depois na farinha de rosca misturada à farinha de trigo. Sacuda-as ligeiramente em uma peneira para retirar o excesso de farinha e frite-as, poucas por vez, na manteiga previamente aquecida.
A manteiga estará no ponto certo quando atingir uma leve cor de avelã. Retire as mondeghili e deixe-as escorrer em papel absorvente, para que percam o excesso de gordura.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

[do além] A EUROPA AOS PÉS DO MARANHÃO



::txt::Napoleão Bonaparte::

Não quero dar uma de Wikipédia aqui, mas gostaria de relembrar brevemente a minha história. Todos sabem a cor do meu cavalo, mas a maioria nem se lembra dos fatos que me alçaram à galeria dos protagonistas da história do mundo. Serei breve, prometo.

Comecei a ser notado logo depois da Revolução Francesa – aquela que queria tirar a nobreza do poder. Ainda como um pequeno general, sufoquei 30 mil rebeldes com apenas 8 mil homens. Pouco depois, enfrentei e derrotei inimigos austríacos e piemonteses com um exército faminto, mal municiado, descalço e esfarrapado. Minha fama começou a crescer, e as vitórias se multiplicaram. Com tais triunfos, submeti-me a um plebiscito, do qual saí como imperador. Não contente com minhas conquistas, atravessei os Alpes, derrotei os austríacos em Marengo e aniquilei as tropas austro-russas na famosa batalha de Austerlitz. Com dezesseis estados alemães, constituí a Confederação do Reno e, com algumas províncias polacas, criei o grão-ducado de Varsóvia, ambos dependentes da França. Invadi a Espanha e expulsei a Corte de Portugal.

Essas vitórias e mais as “costuras” políticas me permitiram formar um vasto império. A Europa estava aos meus pés. E, como imperador, cedi a Holanda ao meu irmão Luís, Nápoles ao marechal Joaquim Murat, casado com minha irmã Elisa e a Vestfália ao meu outro irmão, Jerônimo. Sou superfamília.

Estou contando tudo isso sem nenhuma intenção de me enaltecer. Ao contrário: Waterloo, que eu nem quero comentar, baixou a minha bola. Tudo o que relatei aqui são feitos pequenos comparados aos de José Sarney. Vejam: para distribuir cargos entre parentes, amigos e aliados, tive que enfrentar inúmeras batalhas sangrentas, sacrificar vidas, erguer um império e constituir uma monarquia pessoal. O Sarney, não. O homem não precisa de nada disso. Ele faz o que faz dentro de uma democracia, sem ocupar o posto mais alto da República, independentemente de quem esteja no poder. Esse é craque. Para ele, eu tiro a minha coroa.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

[noé ae?!] MUNDO LIVRE S/A

[cc] STEVE JOBS, O INIMIGO NÚMERO UM DA COLABORAÇÃO



::txt::Rodrigo Savazoni::

Steve Jobs morreu, após anos lutando contra um câncer que nem mesmo todos os bilhões que ele acumulou foram capazes de conter. Desde quarta-feira (5/10), após o anúncio de seu falecimento, não se fala em outra coisa. Panegíricos de toda sorte circulam pelos meios massivos e pós-massivos. Adulado em vida por sua genialidade, é alçado ao status de ídolo maior da era digital. É inegável que Jobs foi um grande designer, cujas sacadas levaram sua empresa ao topo do mundo. Mas há outros aspectos a explorar e sobre os quais pensar neste momento de sua morte.

Jobs era o inimigo número um da colaboração, o aspecto político e econômico mais importante da revolução digital. Nesse sentido, não era um revolucionário, mas um contrarrevolucionário. O melhor deles.

Com suas traquitanas maravilhosas, trabalhou pelo cerceamento do conhecimento livre. Jamais acreditou na partilha. O que ficou particularmente evidente após seu retorno à Apple, em 1997. Acreditava que para fazer grandes inventos era necessário reunir os melhores, em uma sala, e dela sair com o produto perfeito, aquele que mobilizaria o desejo de adultos e crianças em todo o planeta, os quais formam filas para ter um novo Apple a cada lançamento anual.

A questão central, no entanto, é que o design delicioso de seus produtos é apenas a isca para a construção de um mundo controlado de aplicativos e micropagamentos que reduz a imensa conversação global de todos para todos em uma sala fechada de vendas orientadas.

Criar confiança

O que é a Apple Store senão um grande shopping center virtual, em que podemos adquirir a um clique de tela tudo o que precisamos para nos entreter? A distopia Jobsiana é a do homem egoísta, circundado de aparelhos perfeitos, em uma troca limpa e “aparentemente residual”, mediada por apenas uma única empresa: a sua. Por isso, devemos nos perguntar: era isso que queríamos? É isso que queremos para o nosso mundo?

Essa pergunta torna-se ainda mais necessária quando sabemos que existem alternativas. Como escreve o economista da USP Ricardo Abramovay, em resenha sobre o novo livro do professor de Harvard Yochai Benkler, The Penguin and the Leviathan, a cooperação é a grande possibilidade deste nosso tempo.

“Longe de um paroquialismo tradicionalista ou de um movimento alternativo confinado a seitas e grupos eternamente minoritários, a cooperação está na origem das formas mais interessantes e promissoras de criação de prosperidade no mundo contemporâneo. E na raiz dessa cooperação (presente com força crescente no mundo privado, nos negócios públicos e na própria relação entre Estado e cidadãos) estão vínculos humanos reais, abrangentes, significativos, dotados do poder de comunicar e criar confiança entre as pessoas.”

Colaboração: essa, e não outra, é a palavra revolucionária.

E Jobs não gostava dela.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

[noé ae?!] FELA DAY

[agência pirata] FINGIA QUE NÃO SABIA COZINHAR



::txt::Nathália Butti::

Quando chegou à casa da empresária Rosana Dias, a ideia da baiana Vanusa de Jesus era trabalhar como faxineira. Questionada sobre seus dotes culinários, renegou o talento e exagerou para menos. Disse não saber nada de cozinha.

Mas bastou chegar perto do fogão para a família perceber que a moça era tão modesta quanto prendada. "Parecia que tinha baixado uma entidade nela, fazia tudo ficar uma delícia", conta Rosana, sobre as primeiras performances de Vanusa no fogão. Mudou de função na mesma hora.

A Tia Vânia, como foi carinhosamente apelidada por Rosana e pelos filhos, Roberta e Rodolfo, passou a cozinhar todos os dias para a família, mas até hoje tem dificuldade em reconhecer as próprias habilidades. "Aprendi a cozinhar com a vida, só por necessidade", diz, timidamente, relembrando o tempo em trabalhava como babá em Salvador e observava as outras empregadas cozinhando. Surpreendeu a família ao fazer receitas de cabeça, nunca anotadas.

Entre os melhores pratos de Vanusa, Rosana destaca o cuscuz, a lasanha de espinafre com peito de peru, a lasanha de berinjela e o escondidinho de carne-seca, um dos mais elogiados de seu cardápio. Para transformá-lo em receita, Tia Vânia precisou da ajuda da patroa para anotar o passo a passo, pois ela põe tudo a olho, intuitivamente.

Rodolfo, o caçula, joga futebol de salão profissionalmente na Europa. Como mora na Itália há quatro anos, quando vem passar férias no Brasil quer manter distância das massas. Mas quando Tia Vânia serve seus pratos, não consegue resistir. "Ele chega magrinho aqui, mas quando cozinho, é capaz de comer uma travessa inteira, engorda vários quilos", diz Vanusa.



Escondidinho de carne-seca

por Vanusa de Jesus

Ingredientes

600g carne seca
1,2 kg de mandioca descascada
100g de manteiga
1 cebola média picada
1 colher (chá) de alho picado
1 copo de requeijão
Salsa e cebolinha a gosto
Queijo ralado para gratinar

Preparo

Purê: Em uma panela, cozinhe as mandiocas por 15 minutos. Em outro recipiente, amasse-as até obter uma pasta. A dica é usar um garfo para preservar alguns pedacinhos de mandioca. Coloque a manteiga, a cebola (reserve 2 colheres), o alho e mexa a mistura no fogo baixo por 5 minutos até ficar homogênea. Acrescente o requeijão (reserve 2 colheres para adicionar à carne). Lembre-se de reservar um pouco da cebola e 2 colheres de requeijão para o preparo da carne.

Carne: Cozinhe a carne em uma panela de pressão por 1h30. Quando pronta, desfie a carne e a refogue com manteiga, cebola, cebolinha e salsinha a gosto até dourar a cebola. Acrescente as duas colheres de requeijão.

Montagem: Em um refratário, ponha uma camada de purê, distribua todo o recheio de carne e finalize com outra camada de purê. Cubra com o queijo ralado e leve ao forno para gratinar até que fique dourado.

domingo, 9 de outubro de 2011

[agência pirata] DA INTELIGÊNCIA CANINA



::txt::Umberto Eco::

UMA SENHORA que estava catando cogumelos com uma amiga é picada por uma vespa, tem um choque anafilático, para de respirar, a amiga telefona para a emergência, mas o socorro demora a chegar porque as duas mulheres estão em um bosque muito cerrado e é difícil localizá-las.

Então Queen, o cachorro (mas imagino que fosse uma cadela) da amiga, em vez de ficar ali, como o instinto recomendaria, ganindo e lambendo a mão da moribunda, parte feito um raio, atravessa o bosque, encontra a equipe de resgate e a conduz até o lugar certo.

Como Danilo Mainardi comenta no "Corriere della Sera" de 21 de agosto, não estamos diante de um simples comportamento instintivo: estamos diante de um comportamento "inteligente", em que o cão não responde ao comando do instinto (não se afastar do ferido), mas elabora "um plano complexo, que abrange até a coparticipação de outros indivíduos".

RACIOCÍNIO O caso -e os comentários de Mainardi- evocam uma literatura antiquíssima e vasta sobre as capacidades de raciocínio dos cães. Um dos textos que mais influenciaram essa tradição é a "História Natural" (77 d.C.) de Plínio, que trata da fala dos peixes e dos pássaros e discorre amplamente sobre a inteligência canina, cita um cachorro que reconhecera entre a multidão o assassino de seu dono e, com seus latidos e mordidas, o forçou a confessar o crime, ou ainda o cachorro de um condenado à morte que uivava dolorosamente e, quando um espectador lhe jogou uma comida, ele a levou até a boca do morto; quando o cadáver foi atirado no Tibre, ele também se jogou e nadou, tentando sustentá-lo.

Mas a discussão filosoficamente mais interessante já tinha ocorrido pelo menos três séculos antes, em um debate entre estoicos, acadêmicos e epicuristas. No âmbito da discussão estoica desponta um argumento atribuído a Crisipo, que será retomado e popularizado quase cinco séculos depois por Sexto Empírico.

Sexto considerava que os cães fossem capazes de raciocínio lógico, e a prova disso era que um cão, após chegar a um trívio e reconhecer pelo faro que a presa não tinha seguido por duas das estradas, imediatamente envereda pela terceira sem nem farejar. Com efeito, o cão teria formulado de algum modo o seguinte raciocínio: "A presa seguiu por esta estrada, ou por essa, ou por aquela; ora, a estrada não é esta nem essa; então só pode ser aquela" (o que seria um exemplo de raciocínio conhecido como "quinto indemonstrável").

Além disso, Sexto lembrava que os cães possuem um "logos" porque sabem arrancar espinhos do corpo e limpar as feridas, porque mantêm imóvel a pata doente e identificam as plantas que podem aliviar a dor.

Quanto a uma linguagem animal, é verdade que não compreendemos os sons emitidos por eles, mas tampouco entendemos os sons emitidos por bárbaros, os quais no entanto falam; e os cães certamente emitem sons diversos em situações diferentes.

PLUTARCO Poderíamos continuar citando o "De Sollertia Animalium" (sobre a astúcia dos animais), de Plutarco, no qual se diz que, de fato, a racionalidade animal é imperfeita se comparada à humana, mas que essas diferenças também ocorrem entre seres humanos; e em outro diálogo, "Bruta Animalia Ratione Uti" (os animais usam a razão), a quem contestasse que seria demasiado atribuir a razão a seres que não têm uma noção inata da divindade, Plutarco responderia recordando que entre os seres humanos também existem os ateus.

Em "A Natureza dos Animais", de Eliano, além dos argumentos já vistos, são citados exemplos de cães que se apaixonam por seres humanos. No "De Abstinentia" (da abstinência), de Porfírio, os argumentos em favor da inteligência animal servem para sustentar uma tese "vegetariana". Todos esses temas serão retomados de várias maneiras na era moderna, até nossos dias.

Mas paremos por aqui: ainda que não se consiga definir bem a inteligência canina, deveríamos ser mais sensíveis a esse mistério. E, se for muito difícil virar vegetariano, pelo menos que donos menos inteligentes que eles não abandonem seus cães nas estradas.

*Cães possuem um "logos" porque sabem arrancar espinhos do corpo e limpar feridas, porque mantêm imóvel a pata doente e identificam plantas que podem aliviar a dor Plutarco diz que, de fato, a racionalidade animal é imperfeita se comparada à humana, mas que essas diferenças também ocorrem entre os próprios seres humanos

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

[agência pirata] O CHURRASCO COMO SÍMBOLO DO ORGULHO MACHO



::txt::Xico Sá::

No final de semana o país inteiro cheira a churrasco. Já bateu, de longe, a feijoada como a mais popular e nacional das comidas sem frescura.

É tão irresístivel que até modelo e metrossexual churrasqueiam na buena.

Este blog, com sua fome atávica pela cozinha perversa, faz uma breve viagem freudiana a respeito. Segura aí essa brasa!

Quando o carvão começa a pegar fogo, na laje suburbana ou na beira da piscina do Lago Sul, Brasília, os homens automaticamente passam a se sentir mais poderosos.

Mesmo em um banquete de mendigos a carne fortifica as vaidades e espalha, por algumas horas, as brasas da auto-estima.

O mesmo fogo que assa a picanha e a costela chamusca também a testosterona e os básicos instintos do macho, como diria Fausto Fawcett, o poeta-mor de Copacabana e dos arredores fumacentos da Guanabara.

A tese-crônica e carnívora vale para qualquer lugar, até mesmo para a Índia, claro, onde os bois e as vacas são sagrados.

Lá eles preferem estraçalhar outros quadrúpedes. Amam um cordeirinho, por exemplo, sempre com o melhor dos currys.

O ser humano não vale mesmo uma moeda enferrujada de botija. Luta vã embirrar contra isso.

Desde as caçadas dos nossos semelhantes das cavernas, nem um alimento simboliza tanto a macheza quanto ela.

A carne é fraca apenas na concepção do pecado, mas ai já falamos da marvada pele sob os olhares apostólicos romanos.

A carne, desde o canibalismo dos tupinambás e dos caetés -traçaram lindamente jesuítas e outros bispos sacanas- é o que nos há de mais sagrado nos tristes trópicos.

Dos indígenas às calçadas do subúrbio de hoje -motivo de uma tese de mestrado do carioca Rolf Ribeiro de Souza-, a reunião em torno da brasa é um grêmio óbvio ao redor da simbologia do macho, do poder do macho e do algo mais machista, como diria um Jorge Ben das antigas.

A tese rendeu um grande livro deste grande e citado Souza: “A confraria da esquina: o que os homens de verdade falam em torno de uma carne queimando” (ed. Bruxedo).

Seja na rua, onde significa demarcação do território da masculinidade, seja na churrascaria chique, donde representa decisões, convenções partidárias e negócios particularíssimos, a carne é que manda nos homens.

Alguém já testemunhou algo importante ser acertado diante de folhinhas de alface?

Não estamos apenas falando de monta, de dinheiro a perder de vista, meu caro Eike Batista. Estamos falando de importância, do futuro de um grande amor, por exemplo.

Não, o alface não inspira confiança.

Não à toa, reza a mística dos conventos e internatos, a folha serve para acalmar os noviços e seminaristas contra possíveis manifestações dos básicos instintos.

O perigo está na carne. Sempre. O resto é fundamentalismo dos meus queridos amigos vegetarianos que se acham imortais e melhores do que o resto da humanidade.

Mas antes me tragam uma cachaça, que hoje estou amargo demais pra beber cerveja, ora veja, termino aqui ouvindo a banda Eddie:

"E quem não gosta de fumaça, minha querida, não entende de bebida. Nessa vida, eu já caí na desgraça.”

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

[noé ae?!] ÉRIKA MACHADO

[domínio público] ONDE É QUE IRÍAMOS PARAR?



::txt::Louis-Ferdinand Céline::

É verdade que estamos habituados a admirar todos os dias bandidos colossais, cuja opulência o mundo inteiro venera conosco e cuja existência se revela, porém, assim que examinamos um pouco mais de perto, um longo crime renovado todos os dias, mas essas pessoas gozam de glória, honrarias e poder, seus crimes são consagrados pelas leis, ao passo que tão longe quanto recuamos na história, e você sabe que sou pago para conhecê-la, tudo nos demonstra que um furto venial, e mais ainda, de alimentos ordinários, tais como massas, presunto ou queijo, atrai inevitavelmente para seu autor o opróbrio formal, o repúdio categórico da comunidade, os castigos maiores, a desonra automática e a vergonha inexpiável, e isso por duas razões, primeiro porque autor de tais atrocidades é em geral um pobre e que este estado implica em si mesmo uma indignidade capital, e depois porque seu ato comporta uma espécie de crítica tácita à comunidade. O roubo do pobre torna-se uma maliciosa reapropriação individual, está me entendendo?...

Onde é que iríamos parar? Assim, a repressão aos pequenos furtos se exerce, repare bem, em todas as latitudes com rigor extremo, não só como meio de defesa social, mas ainda e sobretudo como uma recomendação severa a todos os pobres coitados para que se mantenham em seu lugar e em sua casta, sossegadinhos, alegremente conformados em morrer ao longo dos séculos e indefinidamente de miséria e de fome...

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

[do além] NERD IN RIO



::txt::Pitágoras::

Muita gente se impressiona com os números superlativos do Rock in Rio. Como pai da matemática, eu não me espanto com número nenhum. O que há, sim, de surpreendente nesse evento é a enorme celebração, por parte do público e da imprensa, em torno de algo que caminha para a extinção: a canção popular. Esteja ela sob o rótulo de pop, rock, samba, metal etc. Não interessa. Seu fim parece uma questão de tempo. O próprio Chico Buarque disse em uma entrevista de 2004 que "assim como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século XIX, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século XX”. Quem sou eu para discordar do Chico? Sou o fundador da primeira universidade do mundo. Desculpe, não deixo nem de responder perguntas retóricas feitas por mim mesmo.

O Rock in Rio ainda mobiliza imensos rebanhos porque o seu público é formado por pessoas que nasceram no século passado. Basta olhar as atrações para confirmar isso. Por isso, é natural que esses megashows ainda atraiam multidões que gostam de fila, banheiro químico e canções. As pessoas que procuram esse tipo oneroso de tortura cresceram dentro de um sistema cultural em que artistas da música eram figuras de destaque e candidatos à idolatria. Qualquer sacrifício para vê-los no telão é justificado.

Mas por que o homem que se notabilizou pelo teorema que diz que a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa está a falar de Rock in Rio e canções populares? Excelente pergunta, Pitágoras. Às vezes, até fico bobo com a argúcia de meu raciocínio. Pois bem, vamos isolar x para responder. Sendo que x aqui está sendo usado como figura de linguagem. Detalho esse aspecto, antes que alguém saia fazendo contas. E, por favor, pare de anotar feito louco e preste atenção ao que estou dizendo. Que coisa.

A tecnologia hoje está ocupando o palco que era da música. A admiração endereçada a cabeludos, carecas e tatuados portando instrumentos musicais aos poucos vai migrando para jovens que criam aplicativos, desenvolvem sistemas operacionais ou que inventam uma nova rede social. Que podem igualmente ser tatuados, carecas e cabeludos ou de qualquer outra aparência. Ao contrário do roqueiro, o nerd há muito tempo perdeu o uniforme.

Em breve assistiremos festivais de cultura digital de grandes proporções. Onde meninas histéricas desmaiarão na frente de um programador de HTML 18, esmerilhando o seu teclado. Garotos cantarão, como refrões, roteiros de Java Script. Esses "Nerds in Rio" terão também suas noites nostálgicas, aos moldes dos atuais anacrônicos festivais de música. Bill Gates, por exemplo, fará muito bem o papel que hoje cabe a Elton John.

Quando esse dia inevitável chegar, estudantes que sofrem com cálculos, fórmulas, equações vão parar de me maldizer. Séculos de ódio voltados ao homem que transformou uma série de procedimentos empíricos em uma elaborada estrutura lógica, conhecida também como matemática, cessarão.

Encerro este post com um antigo pensamento. Agora você deve anotar. A vida é como uma sala de espetáculos: entra-se, vê-se e sai-se. Ao que, depois de vários dias de show na Cidade do Rock, acrescento: a chegada é um parto e a saída é de matar.

[noé ae?!] CHINA

terça-feira, 4 de outubro de 2011

[agência pirata] SALVEM ELA, A GALINHA DE CABIDELA



::txt::Ana Rita Suassuna::

Galinha ao molho pardo ou galinha de cabidela. A receita chegou aqui com os portugueses: a galinha recém-abatida é cortada em pedaços e guisada. O molho é feito na mesma panela, com o sangue fresco da ave batido em vinagre e transformado num caldo rico, encorpado e escuro. Por muitos anos, o prato foi sinônimo de festa. Hoje é comida para poucos: apenas para aqueles que abatem as galinhas. Ou por quem compra a ave e o sangue de fornecedores clandestinos.

A galinha de cabidela ou ao molho pardo é uma iguaria que já teve seus dias de glória em restaurantes, feiras livres, quermesses, botecos, comemorações familiares e até em banquetes. Mas está desaparecendo. Com a proibição da venda de sangue, indispensável ao molho, quem quer preparar o prato deve comprar a ave e abatê-la para obter o sangue. O processo é complexo para os dias atuais, o que faz com que as pessoas eventualmente recorram às aves e sangue comercializados de forma clandestina com consequências danosas à saúde.

Antes da proibição, o sangue fresco, líquido, era misturado com um pouco de vinagre ou gotas de limão e vendido em locais de abate (feiras livres, granjas, mercados públicos) ou embalado em sacos plásticos e comercializado, resfriado, em açougues, avícolas e supermercados.

Não podemos desqualificar a fiscalização. Ela existe para fazer cumprir um marco legal que deve ter tido razões de ordem sanitária para entrar em vigor, embora sem levar em consideração variáveis como essa que está repercutindo na preservação do ingrediente e colocando em risco uma tradição cultural da alimentação portuguesa (desde o século 16) e brasileira (desde a colonização).

Mas temos de encontrar uma maneira de atender às exigências sanitárias sem excluir possibilidades de elaboração desse prato, pelo valor cultural a ele inerente.
A proibição da venda de sangue ameaça quais outras receitas? Além do molho pardo, o sangue de galináceos também era ingrediente de cozidos e torrados de galinha, de farofa para recheio de peru, usado em comemorações e na festa do Natal... Nesses casos, depois de colhido, sem uso do vinagre ou do limão, coagulava rápido e era aferventado para maior tempo de conservação antes do uso.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

[domínio público] CAPITALISTAS E LADRÕES



::txt::Errico Malatesta::

A propósito das tragédias de Houndsditch e Sidney Street

Em uma ruela da City, ocorre uma tentativa de assalto a uma joalheria; os ladrões, surpreendidos pela polícia, fogem abrindo caminho à bala. Mais tarde, dois dos ladrões, descobertos numa casa de East-End defendem-se uma vez mais à bala, e morrem no tiroteio.

No fundo, nada de extraordinário em tudo isso, na sociedade atual, exceto a energia excepcional com que os ladrões se defenderam.

Mas esses ladrões eram russos, talvez refugiados russos; e é também possível que tenham freqüentado um clube anarquista nos dias de reunião pública, quando ele está aberto a todos. Sem dúvida, a imprensa capitalista serve-se, uma vez mais, deste caso para atacar os anarquistas. Ao ler os jornais burgueses, dir-se-ia que a anarquia, este sonho de justiça e de amor entre os homens, nada mais é senão roubo e assassinato. Com tais mentiras e calúnias, conseguem, com certeza, afastar de nós, muitos daqueles que estariam conosco se ao menos soubessem o que queremos.

Não é inútil repetir, portanto, qual é nossa atitude de anarquistas em relação à teoria e à prática do roubo.

Um dos pontos fundamentais do anarquismo é a abolição do monopólio da terra, das matérias-primas e dos instrumentos de trabalho, e, conseqüentemente, a abolição da exploração do trabalho alheio exercida pelos detentores dos meios de produção. Toda apropriação do trabalho alheio, tudo o que serve a um homem para viver sem dar à sociedade sua contribuição à produção, é um roubo, do ponto de vista anarquista.

Os proprietários, os capitalistas, roubaram do povo, pela fraude ou pela violência, a terra e todos os meios de produção, e como conseqüência deste roubo inicial podem subtrair dos trabalhadores, a cada dia, o produto de seu trabalho. Mas esses ladrões afortunados tornaram-se fortes, fizeram leis para legitimar sua situação, e organizaram todo um sistema de repressão para se defender, tanto das reivindicações dos trabalhadores quanto daqueles que querem substituí-los, agindo como eles próprios agiram. E agora o roubo desses senhores chama-se propriedade, comércio, indústria, etc; o nome de ladrões é reservado, todavia, na linguagem usual, àqueles que gostariam de seguir o exemplo dos capitalistas, mas que, tendo chegado muito tarde e em circunstâncias desfavoráveis, só podem fazê-lo revoltando-se contra a lei.

Entretanto, a diferença de nomes empregados ordinariamente não basta para apagar a identidade moral e social das duas situações. O capitalista é um ladrão cujo sucesso se deve a seu mérito ou a de seus ascendentes; o ladrão é um aspirante a capitalista que só espera a oportunidade para sê-lo na realidade, para viver, sem trabalhar, do produto de seu roubo, isto é, do trabalho alheio.

Inimigos dos capitalistas, não podemos ter simpatia pelo ladrão que visa tornar-se capitalista. Partidários da expropriação feita pelo povo em proveito de todos, não podemos, enquanto anarquistas, ter nada em comum com uma operação que consiste unicamente em fazer passar a riqueza das mãos de um proprietário para as de outro.

Obviamente, refiro-me ao ladrão profissional, àquele que não quer trabalhar e procura os meios para poder viver como parasita do trabalho alheio. É bem diferente o caso de um homem ao qual a sociedade recusa meios de trabalhar e que rouba para não morrer de fome e não deixa morrer de fome seus filhos. Neste caso, o roubo (se é que se pode denominá-lo assim) é uma revolta contra a injustiça social, e pode tornar-se o mais imperioso dos deveres. Mas a imprensa capitalista evita falar desses casos, pois deveria, ao mesmo tempo, atacar a ordem social que tem por missão defender.

Com certeza, o ladrão profissional é, ele também, uma vítima do meio social. O exemplo que vem de cima, a educação recebida, as condições repugnantes nas quais se é, amiúde, obrigado a trabalhar, explicam facilmente como é que homens, que não são moralmente superiores a seus contemporâneos, colocados na alternativa de serem explorados ou exploradores, preferem ser exploradores e encarregam-se de consegui-lo pelos meios de que são capazes. Todavia, essas circunstâncias atenuantes podem também se aplicar aos capitalistas, e esta é a melhor prova da identidade das duas profissões.

As idéias anarquistas não podem, em conseqüência, levar os indivíduos a se tornarem capitalistas assim como não pode levá-los a serem ladrões. Ao contrário, dando aos descontentes uma idéia de vida superior e esperança de emancipação coletiva, elas os desviam, na medida do possível, tendo em vista o meio atual, de todas essas ações legais ou ilegais, que representam apenas adaptação ao sistema capitalista, e tendem a perpetuá-lo.

Apesar de tudo isso, o meio social é tão poderoso e os temperamentos pessoais tão diferentes, que bem pode existir entre os anarquistas alguns que se tornem ladrões, como há os que se tornam comerciantes ou industriais; mas, neste caso, uns e outros agem, assim, não por causa, mas a despeito das idéias anarquistas.

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