#CADÊ MEU CHINELO?

sexta-feira, 31 de maio de 2013

[a vida como ela noé] O BRADO DO ÚLTIMO BARDO BÊBADO

:: txt :: Giovani Iemini ::

  Defino-me como anarquista, que quer dizer “contra qualquer tipo de ordem hierárquica que não seja livremente aceita”. Sou adverso às instituições, principalmente o Estado e a Igreja, pois ambos foram invenções humanas para ordenar e controlar as populações, às vezes até intuindo a melhor convivência entre as gentes e a evolução civilizatória, contudo, ambas desgarraram-se da pretensão original e, por conta de dirigentes gananciosos e especuladores, descambaram para o abuso do poder.
Qualquer abuso, a meu ver, é intolerável.

  Como anarquista, entendo que não é preciso haver leis ou dogmas, tampouco lideranças, para o alcance do bem comum e da felicidade intrínseca. Basta a percepção de que somos parte de um mesmo ecossistema e uma boa compreensão da necessidade de respeito mútuo e amplo auxílio.

  É uma questão de educação.

  Mas não esta educação formal que ensina química ou português (conhecimentos inúteis, caso a ocupação profissional não os exija), mas aquela apregoada pelos governos militares e hoje tão desprezada por democracias esquerdistas: moral e civismo (civismo aqui tendo como Estado a espécie homo sapiens).
  Mas entenda: não a moral militar, tampouco o civismo defensor de algum lado maniqueísta.

  Falo da moral planetária humana, ampla e fraterna, que reconheça o outro como um irmão, que entenda as diferenças intelectuais e físicas como a força biológica e não a fraqueza usada para exploração. Que veja as mensagens religiosas de respeito ao próximo de forma irrestrita, sem opor-se a culturas e interesses, além de não buscar para si vantagens pela detenção de poder.
É um civismo sem separações por pátrias, economias, línguas ou tradições históricas. São as atitudes e comportamentos defensores de práticas fundamentais para a preservação e a harmonia do bem estar entre os homens, esses companheiros de mundo humanos.

  O termo humano é autoexplicativo da nossa condição de iguais.

  Se somos todos humanos, e nos respeitamos, podemos ser livres, escolher nos unir  ou não a grupos de similares para facilitar nossas necessidades. Queremos coisas diferentes, únicas, personalíssimas, devemos conquistá-las cada um ao seu jeito. Individuais.

  A única proibição é o abuso.

  Mas se tem proibição, mesmo assim é anarquismo? Sim, anarquista é contra a ordem que não seja livremente aceita. E todo anarquista é um ordeiro, entende que é o principal responsável pela socialização consensual que é o entrevero dos homens. Como diz o brado do último bardo bêbado: anarquia sim, bagunça não.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

[agência pirata] A SÍNDROME DA MILITÂNCIA ARROGANTE

 :: txt :: Marília Moschkovich ::

 A situação não é nada nova: mulheres reforçando o machismo. Isso sempre existiu e existirá, enquanto houver machismo. Ser mulher não torna ninguém automaticamente revolucionária, feminista. Estar na condição de oprimido não torna ninguém necessariamente contra a opressão. Aqueles que lutaram e lutam pelo socialismo no mundo todo sabem bem disso. Se essa condição fosse suficiente para derrubarmos as opressões, definitivamente não teríamos saído da guerra fria como majoritariamente capitalistas, no mundo todo. Quem eram (e quem são) os soldados estadunidenses nas guerras contra “o comunismo”? Donos de empresas? A classe que tem os meios de produção? (eu realmente preciso responder essas perguntas pra vocês?)

 A lógica é relativamente simples: existe uma forma dominante de pensar, que defende sempre os interesses de quem domina. Marx chamou isso de ideologia, Gramsci foi mais longe e pensou numa hegemonia, Althusser explicou que esse negócio se difunde por “aparelhos ideológicos” responsáveis em transmitir essas maneiras de pensar e reforçá-las (e, depois, dirá Foucault, a coagir e controlar as pessoas para que as executem). Essa é, substancialmente, a maneira pela qual quem concentra poder mantém o poder concentrado e a sociedade funciona como funciona. As opressões de classe, raça e gênero têm ainda uma série de ferramentas próprias para que se mantenham.

 Por isso, não é de se espantar que mulheres reforcem o machismo, ou que pessoas negras reforcem o racismo, ou que pessoas mais pobres defendam os interesses de pessoas mais ricas, e daí em diante. Como militantes, porém, temos duas formas de lidar com essa situação.

 A primeira forma é um tanto contraditória, mas extremamente popular entre militantes de diversas causas, infelizmente. Frustrados com essa contradição gerada pelos próprios sistemas de opressão, muitos de nós acabam descontando a frustração nas pessoas que, em tese, estaríamos defendendo. Há algumas semanas, várias companheiras feministas compartilharam no Facebook uma imagem que apontava alguns motivos pelos quais as mulheres deveriam reconhecer o feminismo. No fim da imagem, um pequeno asterisco estragava todo o propósito de militância, com os seguintes dizeres: “Mas se você prefere continuar lavando louça, provavelmente você deve ser mais útil na cozinha. Então fique lá, enquanto outras lutam por você. Não precisa expor sua ignorância para toda a rede”.

 Ai. Essa me doeu na alma.

 Doeu porque é uma postura muito comum: o militante, ou a militante, sente-se de alguma maneira superior porque consegue enxergar além do véu da ideologia dominante (como diria o barbudo alemão). Esse ar de superioridade faz com que ele ou ela sinta-se no direito de falar por grupos dos quais muitas vezes ele/ela não fazem parte e, muito pior que isso, excluir as próprias pessoas em situação de opressão da luta contra essa opressão. Acham-se no direito de determinar que sua luta “serve” apenas para algumas pessoas – aquelas iluminadas como ele/a, que enxergam os mesmos grilhões. Que raio de militância é essa?

 Pessoalmente, prefiro uma segunda atitude possível diante dessa frustração. A bem da verdade, ela inibe o próprio sentimento de frustração. Consiste em enxergar, na existência de oprimidos que agem contra seus próprios interesses, um resultado inevitável do próprio sistema de opressão. Isso permite entender que, enquanto nossos movimentos (negro, feminista, de trabalhadores, etc) existirem, essa contradição existirá, já que a partir do momento em que acabarmos com a opressão, nossa própria militância perde o propósito de existir. Quer dizer: lutamos para acabar com uma opressão; enquanto essa opressão existir, existirá essa contradição que frustra muitos e muitas de nós; quando conseguirmos acabar com a opressão, conseguiremos acabar com a contradição; mas então, nosso próprio movimento deixará de existir.

 O fim último de todo movimento contra opressões é que, como resultado de seu próprio trabalho, ele deixe de ser necessário. Que ele deixe de ser necessário precisa ser um objetivo geral, que valha para absolutamente todas as pessoas envolvidas nesses sistemas de opressão. Não dá pra pensar um feminismo que quer incluir apenas as feministas no processo e no resultado da luta. Não dá, gente. Não dá.

 Ou o feminismo será para todas e todos, ou não será.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

[bolo'bolo] O FIM DA REALPOLITIK


   Miséria no Terceiro Mundo, frustração nos países socialistas, decepção no Ocidente: as principais dinâmicas da Máquina estão reciprocamente descontentes e na base de dos males, o menor. O que podemos fazer? Políticos reformistas propõem remendar a Máquina, tentando torná-la mais humana e agradável através de seus próprios mecanismos. O realismo político nos diz para avançar passo a passo. Assim, supõe-se que a atual revolução microeletrônica possa nos fornecer meios para reformas. A miséria deve ser transformada em mobilização, a frustração em ativismo, e o desapontamento pode ser a base de uma mudança de consciência. Algumas das propostas reformistas soam muito bem: semana de vinte horas de trabalho, distribuição igualitária de trabalho para todos, salário mínimo garantido ou imposto de renda negativo, eliminação do desemprego, uso do tempo livre em atividades autônomas nas cidades ou arredores, autoajuda mútua, autogestão descentralizada em empresas e bairros, a criação de um setor autônomo com microempresas de baixa produtividade, investimento em tecnologias médias e leves (também para o Terceiro Mundo), a redução do tráfico privado, a preservação das energias não-renováveis, nada de energia nuclear, investimento na energia solar, sistemas de transporte coletivo, menos proteína animal nas nossas dietas, mais auto-suficiência para o Terceiro Mundo, reciclagem de matérias-primas, desarmamento global, etc. Essas propostas são razoáveis, até realizáveis, e certamente não extravagantes. Elas formam mais ou menos o programa oficial ou secreto dos movimentos alternativo-socialistas-verde-pacifistas da Europa ocidental, dos Estados Unidos e outros países. Se a maioria dessas propostas fosse realizada, a Máquina do Trabalho seria bem mais suportável. Mas mesmo esses programas radicais de reforma são apenas um novo ajustamento à Máquina e não o seu fim. Enquanto a própria Máquina (o setor duro, heteronômico) existir, autogestão e autonomia servem apenas como um tipo de área de recreio para o descanso de trabalhadores esgotados. E quem pode garantir que você não vai ficar tão arrasado numa semana de vinte horas de trabalho quanto numa de quarenta? Enquanto esse monstro não for para o espaço, vai continuar nos devorando.

    Tem mais, o sistema político é feito para bloquear propostas assim, ou converter reformas em um novo impulso para desenvolver ainda mais a Máquina. A melhor ilustração para esse fato são a política eleitoral e os partidos reformistas. Assim que a esquerda sobe ao poder (dê uma olhada na França, na Grécia, na Espanha, na Bolívia, etc.), fica entalada na selva de realidades e necessidades econômicas e não tem escolha senão reforçar precisamente os programas de austeridade que combateu quando a direita dominava. Em vez de Giscard, é Miterrand quem manda a polícia contra os grevistas. Em vez de Reagan é Mondale que faz campanha contra os déficits orçamentários. Os socialistas sempre gostaram de uma boa polícia. A recuperação da economia (isto é, a Máquina do Trabalho) é a base de toda política nacional; as reformas sempre têm que provar que encorajam investimentos, criam empregos, aumentam a produtividade, etc. Quanto mais os novos movimentos entram na Realpolitik (como os Verdes na Alemanha), mais eles caem na lógica da economia saudável, ou então desaparecem. Além de destruir ilusões, aumentar a resignação e desenvolver uma apatia gera, a política reformista não leva a nada. A Máquina do Trabalho é planetária. Todas as suas partes são interligadas. Qualquer política reformista nacional só piora a competição internacional, jogando os trabalhadores de um país contra os do outro, aperfeiçoando o controle sobre todos.

    É exatamente essa experiência com a Realpolitik e os reformistas que levou mais e mais eleitores a manter políticos neoconservadores como Reagan, Thatcher e Kohl. Os representantes mais cínicos da lógica econômica são preferidos em relação aos remendeiros de esquerda. A autoconfiança da Máquina está vacilante. Ninguém mais ousa acreditar plenamente em seu futuro, mas todo mundo se agarra a ela. O medo de experimentar superou a crença em promessas demagógicas. De qualquer modo, pra que reformar um sistema furado? Por que não tentar gozar os últimos e poucos aspectos positivos dos velhos negócios pessoais ou nacionais com a Máquina? Por que não eleger políticos positivos, confiantes e conservadores? Aqueles que não se metem a prometer soluções para problemas como o desemprego, a fome, a poluição, as corridas armamentistas nucleares. Eles não são eleitos para isso, mas para representar a continuidade. Para a recuperação, basta um pouco de calma, estabilidade e retórica positiva: a segurança de embolsar lucros em cima dos investimentos atuais. Nessas condições, qualquer recuperação vai ser muito mais terrível do que a crise. Ninguém tem que acreditar realmente em Reagan ou Kohl, deve apenas continuar sorrindo com eles, esquecendo preocupações e dúvidas. A Máquina do Trabalho, numa situação como esta, suporta dúvidas muito mal, e com os regimes neoconservadores você pelo menos pode ficar sozinho até a próxima recuperação ou catástrofe. Além de agitação, mau humor e remorso, a esquerda não tem nada mais a oferecer. A Realpolitik dificilmente ainda seria realista, já que a realidade está agora em ponto de mutação.

terça-feira, 28 de maio de 2013

[pontodevista] PERFORMANCE NO ESGOTO

:: txt :: phts :: Wladymir Ungaretti ::








 O casal Bufão Isaias da Silva e Cabela Gogh (Francisco de Los Santos e Ana Luiza Bergmann) realizaram uma performance no corredor da Protásio Alves, em meio ao esgoto – com um terrível mau cheiro – como se estivessem em uma praia. Levaram uma boia com um boneco (imagem à esquerda) , como se fosse o filho do casal, cadeira de praia e o guarda-sol . E, assim, convocavam os que passavam pelo local a curtirem a praia.  Da mesma forma, chamavam a atenção dos passageiros dos ônibus. Isaias (Francisco), também,  revelou ser um repórter da cidade. A ideia, segundo o casal, é a de continuarem realizando diversas intervenções com o objetivo de chamar a atenção para o caos urbano. O cheiro de esgoto é insuportável para todos os que transitam pelo local, passam de carro ou ônibus, para o comércio; situação que já dura umas três semanas, no mínimo.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

[agência pirata] SUBDESENVOLVIMENTO


:: txt :: Josué de Castro ::

Os países pobres são subdesenvolvidos não por razões naturais - pela força das coisas - mas por razões históricas - pela força das circunstâncias. Circunstâncias históricas desfavoráveis, principalmente o colonialismo político e econômico que manteve estas regiões à margem do processo da economia mundial em rápida evolução.

Na verdade, o subdesenvolvimento não é a ausência de desenvolvimento, mas o produto de um tipo universal de desenvolvimento mal conduzido. É a concentração abusiva de riqueza - sobretudo neste período histórico dominado pelo neocolonialismo capitalista que foi o fator determinante do subdesenvolvimento de uma grande parte do mundo: as regiões dominadas sob a forma de colônias políticas diretas ou de colônias econômicas.

Esta tremenda desigualdade social entre os povos divide economicamente o mundo em dois mundos diferentes: o mundos dos ricos e o mundo dos pobres, o mundo dos países bem desenvolvidos e industrializados e o mundo dos países proletários e subdesenvolvidos. Este fosso econômico divide hoje a humanidade em dois grupos que se entendem com dificuldade: o grupo dos que não comem, constituido por dois terços da humanidade, e que habitam as áreas subdesenvolvidas do mundo, e o grupo dos que não dormem, que é o terço restante dos países ricos, e que não dormem com receio da revolta dos que não comem.

Ora, o problema do subdesenvolvimento não é exclusivo destes países; é antes um problema universal, que só pode ter soluções igualmente em escala universal. Viver na opulência, num mundo em que 2/3 estão mergulhados na miséria, não é apenas perigoso, é um crime. A tensão social na qual se vive hoje é, na maior parte das vezes, o produto desta conhecida injustiça social, já que os povos dominados tomaram consciência da realidade sócio-econômica do mundo.

Cada vez se pergunta com mais insistência se desenvolver-se significa desumanizar-se, nesta frenética busca de riqueza, de acordo com a fórmula preconizada pelo ocidente de maximizar os lucros em vez de maximizar as energias mentais que enriquecem com mais rapidez a vida dos homens e podem dar-lhes muito mais felicidade.

sábado, 25 de maio de 2013

[a vida como ela noé] DELICATESSEN


:: txt :: Hilda Hilst ::

 Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. Gosto de voltar a este tema. Outro dia apareceu uma moça aqui. Esguia, graciosa, pedindo que eu autografasse meu livro de poesia, "tá quentinho, comprei agora". Conversamos uns quinze minutos, era a hora do almoço, parecia tão meiga, convidei-a para almoçar, agradeceu muito, disse-me que eu era sua "ídala", mas ia almoçar com alguém e não podia perder esse almoço. Alguém especial?, perguntei. Respondeu nítida: "pé-de-porco". Não entendi. Como? "Adoro pé-de-porco, pé-de-boi também". Ahn... interessante, respondi. E ela se foi apressada no seu Fusquinha. Não sei por que não perguntei se ela gostava também de cu de leão. Enfim, fiquei pasma. Surpresas logo de manhã.

 Olga, uma querida amiga passando alguns dias aqui conosco, me diz: pois você sabe que me trouxeram uma noite um pé-perna de porco, todo recheado de inverossímeis, como uma delicadeza para o jantar? Parecia uma bota. Do demo, naturalmente. E lendo uma entrevista com W. H. Auden, um inglês muito sofisticado, o entrevistador pergunta-lhe: "O que aconteceu com seus gatos?" Resposta: "Tivemos que matá-los, pois nossa governanta faleceu". Auden também gostava de miolo, língua, dobradinha, chouriços e achava que "bife" era uma coisa para as classes mais baixas, "de um mau gosto terrível", ele enfatiza. E um outro cara que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também gostava de poesia... Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas... Perguntei: "E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?" Resposta: "Tive de matá-los". "Mas por quê?!" Resposta: "Porque gatos gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos". "Você não podia soltá-los em algum lugar, tentar dar alguns?" Olhou-me aparvalhado: "Mas onde? Pra quem?" "E como você os matou?" "A pauladas", respondeu tranqüilo, como se tivesse dado uma morte feliz a todos eles. E por aí a gente pode ir, ao infinito. Aqueles alemães não ouviam Bach, Wagner, Beethoven, não liam Goethe, Rilke, Hölderlin(?????) à noite, e de dia não trabalhavam em Auschwitz? A gente nunca sabe nada sobre o outro. E aquele lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia de criar criaturas e juntá-las? Oscar, traga os meus sais.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

[tabaré] O REFÚGIO DOS TRABALHADORES


:: txt :: Marcus Pereira ::
:: phts :: Michele Oliveira ::

Em busca de consolo



 Inverno em Porto Alegre. O dia morre. O concreto esfria feito um defunto. A noite parece uma viúva: veste o luto da escuridão e chora uma fina garoa. No centro da cidade, os postes de luz se acendem feito as velas do velório mais profano. Lá, o sepulto do dia é frenético, tumultuoso e barulhento. Nos bares, nos terminais de ônibus e nas calçadas, todos anseiam por consolo. Consolo do trabalho exaustivo, do salário baixíssimo, da violência urbana, da fria solidão, do casamento infeliz, das contas para pagar, do ar poluído, da tosse rouca… do rosto erodido pela vida. No entanto, quem há de consolar a existência desses trabalhadores? O Estado? Nossa Senhora Aparecida? A atriz da novela das oito? Não. Esses proletários encontram alívio no divã dos arredores da Avenida Farrapos. Ali, alguns operários se revigoram na psicologia guardada entre as pernas das prostitutas. Outros vão aos botecos para desinfetar com cachaça suas gargalhadas sujas de cansaço. E existe ainda outra categoria: os peões que moram nos hotéis e, simplesmente, dormem um sono de uma tonelada nas camas democráticas.
Embora eu não passe de um Gregor Samsa, também procuro um hotel barato. Quero pôr em cheque a infâmia da hotelaria daquela área. Por isso, sigo a correnteza de alguns trabalhadores boêmios. Primeiro, percorro a Coronel Vicente. Avisto várias placas de hotéis. Trata-se de edifícios antigos com dois andares – provavelmente são da década de 1930. Apesar de estarem bem conservados, os prédios parecem anciões maquiados: por fora, exibem pintura vivaz e luzes de cores quentes; por dentro, o assoalho e as paredes mostram o desgaste do tempo. Escolho um. Abro a porta. Subo as escadas. Chego à portaria. A luz é parca e o ar enfumaçado. No rádio, uma música sertaneja. Uma mulher quarentona, baixa e robusta me atende. Atrás dela, num corredor escuro, vejo a silueta de uma jovem. A sombra de mulher fuma um cigarro, escorada na parede.

– Quanto custa a diária?

– Querido, não trabalhamos com cama de solteiro. Só com cama de casal – me responde com um sorriso irônico. Apesar de a placa anunciar um hotel, fica evidente que não se trata de uma pensão, mas sim uma casa para os desconsolados.
Saio dali, passo por baixo do Viaduto da Conceição e chego à Avenida Farrapos. O fluxo de automóveis é intenso. Ônibus transportam operários de volta para casa. Carros estacionam nas esquinas. Jovens afoitos e velhos humildes perambulam pelas calçadas. Mulheres de curvas perigosas desgovernam o pensamento dos transeuntes. Apesar do frio, vestem-se com pouca roupa: decotes largos, calças justíssimas, barrigas expostas. Os olhos dessas jovens são tão cinzas quanto os prédios em volta – como se tivessem encardido o olhar assistindo às situações mais sujas. Conversam com os rapazes e com os senhores. Conversam com os motoristas. Às vezes, desvirtuam um moço. Às vezes, pegam uma “carona”. Esse é outro tipo de consolo encontrado na Farrapos, que geralmente se consuma num motel da localidade.
Sigo adiante. Gasto uma fortuna de passos até chegar a Praça Bartolomeu de Gusmão. Ao longo da Farrapos, tanto os hotéis quanto os motéis parecem ser de alto nível. No entanto, não são dos mais baratos. Dentre a hotelaria que consulto, os preços vão de 35 a 60 reais a diária mais simples. Entretanto, já nas ruas paralelas e transversais, as hospedagens carregam a fama de “inferninhos”. Ali, a história da Coronel Vicente se repete: “Só trabalhamos com cama de casal”. Ou então: “Está tudo lotado”. Assim, retorno até o Viaduto da Conceição. Pergunto-me como deve ser a relação entre as estalagens mais refinadas e a vida na avenida. E como eram em 1940, quando Getúlio Vargas inaugurou a avenida como um símbolo de modernização da capital? Enquanto divago, avisto uma placa na Rua da Conceição. Hotel Avenida.

Um parêntesis histórico


 Os donos do Hotel Avenida estimam que o edifício tenha sido construído nos anos de 1920. Antes da modernização da Capital – sobretudo, nos anos 1940 e depois nos anos 1970. Em vez de grandes centros comerciais, havia armazéns de secos e molhados. Em vez de viadutos e rodovias, o Centro tinha linhas férreas e bonde. Em vez de terminal de ônibus, a Rua da Conceição alojava uma feira de frutas.

– Antes da construção do viaduto, que começou em 1969 e terminou em 1972, esse prédio era o Hotel Florida. Aqui se hospedavam os caminhoneiros que traziam do interior as frutas e legumes que abasteciam a feira. Naquela época, o hotel Avenida ficava na esquina dessa rua com a Alberto Bins – conta um dos donos do Avenida, Onesto Bringhenti, 76 anos, há 55 trabalhando com hotelaria.

A mudança de endereço do Hotel Avenida ocorreu justamente por conta da edificação da elevada. Isso porque, para executar tal obra, foi preciso alargar a Rua da Conceição e demolir vários prédios. Os habitantes mais antigos afirmam que a via foi estendida cerca de dez metros em cada lado. Por isso, alguns edifícios tiveram que ser derrubados, como a antiga sede do Avenida. Outros tiveram apenas parte da sua estrutura destruída, como foi o caso do Florida – que perdeu a fachada.

– Quando o Hotel Avenida ficava ali na esquina com a Alberto Bins, muitos dos nossos clientes eram famílias que vinham do interior para passear em Porto Alegre. Com a implosão do edifício, os nossos hóspedes não tinham mais onde ficar. E nos cobravam que abríssemos a hospedagem em outro lugar. Aí, como o Florida tinha perdido a clientela porque não acontecia mais a feira, eu e meu sócio juntamos o dinheiro da indenização e compramos esse prédio onde estamos agora. Desde 1972, estamos nessa sede – explica Bringhenti.

Hoje, quem freqüenta a estalagem são basicamente trabalhadores modestos: pedreiros, jardineiros, guardadores de carro, caixeiros viajantes… As visitas das famílias tornaram-se mais esparsas. Até porque, nos arrabaldes da Farrapos, tanto a arquitetura quanto o comportamento mudaram. Contudo, às vezes ainda aparece algum remanescente dos tempos áureos no Hotel Avenida: “Vocês lembram de mim? Minha família se hospedava aqui quando vínhamos do interior…”

Uma noite no Avenida


– Com licença, vocês têm quarto de solteiro?

– Claro que sim. Custa 25 reais a diária. Mas tem que acertar na entrada – adverte o senhor de idade, na portaria.
Preencho a ficha de entrada no Hotel Avenida. Escrevo alguns dados pessoais e o contato de alguns parentes. “É que, se acontecer alguma coisa, nós temos para quem avisar”, explica o porteiro chamado Pedro. Recebo uma toalha carcomida e um pedaço de sabão. O homem idoso, falante e boa-praça, me conduz por um corredor do andar térreo. A luz é crepuscular. Pára em frente ao quarto 54. Abre a porta. “Aqui está a chave, fica à vontade”. Depois, volta ao balcão de entrada, enquanto me acomodo nos aposentos.

O quarto é espaçoso e o teto é alto. Tudo é surpreendentemente limpo – apesar da organização aleatória dos móveis. Ali dentro, cabe um beliche, uma cama de casal, uma estante, uma televisão, uma geladeira antiga e um bidê. No canto, há uma grande janela com persianas de madeira. Como se trata de um quarto de fundo, fico curioso: como deve ser a vista? Tento abrir. A falange se dobra poucos centímetros e esbarra numa parede. Como está chovendo, a mureta absorve a umidade. O ar entra por ali e sai por um buraco na parede do banheiro. É uma abertura rústica, com cerca de dez centímetros de diâmetro. O banheiro – de azulejos azuis – também é higienizado.

Deito na cama de casal. Não tem lençóis. Não me importo. Fico observando as memórias manchadas no colchão. Algumas são amarronzadas, outras são brancas. Fico imaginando quantas pessoas já debruçaram uma noite de sua existência sobre a maciez daquela cama. Cem? Mil? Dez mil? Cem mil? Quantas horas de sono foram dormidas sobre aquele leito? Um milhão? Um trilhão? Um quadrilhão? E os sonhos, quantos foram? Com certeza, muitos hóspedes sonharam com imagens de uma Porto Alegre que não existe mais. A cidade se transformou. A Rua da Conceição se transformou. O próprio Hotel Avenida se transformou. Mas aquele quarto, aquela cama ainda acolhem em silêncio as angústias e as alegrias dos viajantes que por ali passaram. Assim, durmo lentamente e deixo mais uma recordação na atmosfera do quarto…

quinta-feira, 23 de maio de 2013

[agência pirata] CEMITÉRIO DE ELEFANTES


:: txt :: Gabriel Priolli ::

 Nas oportunidades que tive de cobrir visitas presidenciais e de dignatários norte-americanos ao Brasil, em priscas eras, um aspecto sempre me impressionou muito: a idade avançada dos repórteres daquele país, designados para as viagens. “Idade avançada” talvez seja exagerado para profissionais na faixa dos 60 anos, que, com hábitos saudáveis, um bom plano de saúde e um pouco de sorte, provavelmente atingiram os 80. Mas é totalmente cabível, quando o termo de comparação é a imprensa brasileira, em que é cada vez mais raro ver um repórter grisalho em ação, quanto mais um cabeça-branca.

 Bem mais jovem que os caras, eu ficava admirado com o grau de informação e a acuidade das perguntas que faziam, tanto a seus governantes quanto aos nossos. Aprendia com a sua capacidade de análise. Invejava a segurança deles, ao enfiar a questão mais cabeluda pelas ventas do entrevistado, em tom bastante agressivo, sem pestanejar nem, muito menos, gaguejar. Aqueles velhinhos abusados eram tudo o que eu queria ser quando crescesse.

 Muito bem, eu cresci e hoje sou um deles. Um colega de faixa etária, bem entendido, pois a vida me levou para outras atividades profissionais. A vida e a rotina da nossa profissão. Mesmo que quisesse, que eu ainda preferisse o garimpo da notícia ao tratamento dela, na redação ou na ilha de edição, eu não teria a chance de exibir os meus últimos fios de cabelo encanecidos ao olhar de uma fonte. Lugar de tiozinho, no jornalismo pátrio, é na retaguarda, não na linha de frente. Isso para os poucos que ainda restam na ativa. Para a maioria, lugar de jornalista veterano é a rua mesmo. A da amargura.

Dinossauros de escol

 Eu vi quando começou, nos anos 1980, o processo de “rejuvenescimento” da nossa imprensa. Razões administrativas do credo neoliberal determinaram o corte de legiões de coleguinhas maduros, verdadeiras bibliotecas ambulantes, mas também profissionais caros e pouco maleáveis. Em poucos anos, as redações estavam repletas de garotos – sem veteranos à vista para orientá-los, para evitar que cometessem velhos erros. Por melhores que fossem – e muitos eram –, eles não tinham ainda o conteúdo e o senso crítico que só a vivência oferece. Não tenho dúvidas de que esse foi um fator, entre outros, do empobrecimento do nosso jornalismo.

 Hoje vejo à minha volta jornalistas veteranos, ainda com muita lenha para queimar, angustiando- se no desemprego, na inatividade forçada. Repórteres e outros mais: fotógrafos, editores, cinegrafistas, a fauna inteira. Lembro o quanto aprendi com Samuel Wainer, Osvaldo Peralva, Newton Rodrigues ou Cláudio Abramo, já lendários dinossauros quando os conheci, apenas de conviver com eles no dia a dia. E lamento que os novos profissionais e o público não tenham mais a oportunidade de beber na fonte da sabedoria acumulada.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

[noé leva a dor] MAMUJANDO


:: txt :: João Antônio ::

Vou mamujando a vida, meu companheiro. Vou marambaiando. Já que neste sistema fecal que nos rege sou tratado como um autêntico João. Enquanto aqui me roubam, me usam, me desrespeitam, me caloteiam e até se impacientam com minha independência, pois, não pertenço a curriolas de nenhuma natureza, não aceito emprego público nem particular, não me escravizo a Klabins, a Malufs, a Niskiers, a Chagas e a outras porcarias. Xingo a direita de burra e sanguinolenta, xingo a esquerda de bêbada e intolerante, de festeira e faladeira, de omissa e impopular.

E, enquanto a canalha babaquara e babujante acha que o realismo social é o único caminho, prego, defendo desbragadamente que o espaço cultural está aberto a todos os criadores. É possível, ao homem de talento e trabalho, tecer como as aranhas uma obra-prima sobre a sombra da parede, sobre o arco-íris do céu ou sobre os massacrados trabalhadores do Metrô. Viva a tolerância total! Viva a miscigenação, os malungos, os pingentes, os marginalizados, a mestiçagem completa e viva até a democracia (esse perigoso ardil dos "ismos" políticos), já que estamos longe, mui longe da anarquia lírico-criativa-sensual-desbragada-tropical-transcendente, modelo brasileiro único, incomparável e irrepetível, nosso, sem nenhuma importação ou impostação. Mas, abaixo também todo e qualquer tipo de nacionalismo, essa estupidez que gera Hitlers, Mussolinis e Peróns.

terça-feira, 21 de maio de 2013

[nem te conto] LENDA URBANA PORNOFÁLICA


:: txt :: Paulo Wainberg ::

Conta a lenda que numa pequena cidade, no interior de um grande país, a população masculina se divida entre fodedores e não fodedores.

Os fodedores fodiam todas e todos e os não fodedores não fodiam ninguém e por ninguém eram fodidos.

A rivalidade entre os dois grupos crescia a olhos vistos até que um dia, depois de uma bebedeira no cabaré dos não fodedores, armou-se a maior briga jamais vista na região.

O caso foi parar na câmara de vereadores onde a oposição era da ala dos fodedores e a situação da ala dos não fodedores que constituíam a base aliada do prefeito, um não fodedor nato e, no entanto, pai de cinco filhos que teriam sido produzidos por cinco fodedores da oposição.

Sim, porque a lado não fodedor da cidade era formado por cornos de nascença que, em razão de suas convicções políticas, não atendiam aos anseios de suas esposas, elas todas fodedoras, a única unanimidade da cidade.

Os debates foram acirrados, questões de ordem foram propostas, a honra do legislativo posta à prova e defendida com unhas e dentes pelos não fodedores, verdadeiros pilares da sustentabilidade da ignorância alheia que lhes permitia acumular as principais riquezas municipais.

Os fodedores queriam porque queriam apropriar-se daquelas riquezas, alegando que o povo soberano merecia compartilhar das benesses da fodeção geral e que as elites não fodedoras ocultavam-se sob o manto de falsos moralismos, cinismo e hipocrisia.

Encerradas as discussões o tema foi para votação que resultou num empate, cabendo ao presidente da câmara, um não fodedor, o voto de minerva.

Para surpresa geral, ele votou com os fodedores e justificou seu voto dizendo que ser ou não ser um fodedor não passava de uma circunstância e que as circunstâncias são feitas para serem aproveitadas e que se fosse para o bem coletivo, para servir à comunidade e aos interesses da maioria, a partir daquele momento ele se transformava de não fodedor em fodedor e aí de quem surgisse na frente dele, iria direto para o sarrafo e o primeiro seria o filho da puta fodedor que tinha comido a mulher dele.

A partir daquele dia a confusão foi geral, ninguém era de ninguém e todos eram de todos, até que o dono do puteiro, um fodedor de estirpe e da elite, proclamou em alto e bom tom para toda cidade ouvir:

- Vamos organizar!

A mensagem foi rapidamente compreendida, comissões se organizaram e, em menos de uma semana, duas classes sociais se estabeleceram na cidade, ambas felizes e satisfeitas com a nova situação: Fodedores e Fodidos.

E viveram felizes para sempre.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

[a vida como ela noé] RECORRENTES NOITES DERROTADOS POR NOSSA PRÓPRIA FRAQUEZA

:: txt :: Macedusss ::


  A derrota e o fracasso, adjetivos indissociáveis, já não são mais nenhuma novidade estampada em nossas faces de suvenires baratos. As letras, as palavras e os textos são coisas típicas de nossas moribundas des-personalidades embrulhadas para presente. Na realidade elas não pertencem à academia e a sua lenga-lenga de o texto e a relação com o seu autor.

  Porra, o ato de escrever pertence a nós, pobres mortais, pobres literalmente, o qual serve apenas para dizermos algumas merdas sem compromisso e sem a necessidade da sinceridade. No fim, acabamos sendo mais francos que qualquer porra de análise textual morfológica plena. O que levaria um sujeitinho qualquer a passar horas e mais horas em frente a uma folha de papel em branco ou a uma tela de computador a não ser o próprio tédio. O tédio de si mesmo. A face mais horrível de um terráqueo extra-terreirizado.

  Quando ficamos com náuseas, até mesmo das folhas de papel em branco, assim como tentar escrever é algo doloroso demais, resta a opção da noite, o sair pra beber, encher a cara. Um novo recorrente martírio para se esquecer de si mesmo.

  Eu já não espero muito desses passeios deslocados e despersonalizados. Talvez apenas um novo bar onde a cerveja seja um pouco mais barata, até mesmo porque encontrar cerveja gelada à noite é uma coisa que não tenho mais a utopia de que irá acontecer.

  Temos sempre a opção de ir a uma merda independente da Independência. Tem o boteco da esquina de casa que fechou. Foi a terceira tentativa, em menos de dois meses, que não fluiu. Mas estes bares perto de casa não têm o mesmo brilho. Precisamos pegar um trem, permanecer quase uma hora esquentando o desconfortável banco do mesmo, caminhar alguns vários minutos e tudo isto, por quê? À toa. Não! Tudo isso para pelo meio da madrugada arrepender-se. O dinheiro para a cerveja já acabou e com muita sorte estarei embriagado para poder me agüentar longe de casa. Em nosso confortável lar, as coisas são sempre mais agradáveis. Na minha habitação posso dormir, bater umas três punhetas ou gastar horas olhando as merdas de filmes dublados da televisão.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

[agência pirata] MAFALDA E A PODEROSA CRÍTICA DE VALORES


:: txt :: Carlos Eduardo Rebuá Oliveira ::


Difícil encontrar alguém que não conheça uma baixinha argentina chamada Mafalda. Seja como souvenir, estampando camisas e cartazes do movimento estudantil, ou através dos já clássicos livros-coletânea, a quase “cinquentona” menina insiste em se fazer presente. Apesar da curta trajetória (1964 a 1973), trata-se da personagem de histórias em quadrinhos (hq’s) mais popular da Argentina e uma das mais conhecidas no mundo.

Ao contrário do que muitos pensam, Mafalda não foi contemporânea da ditadura do triunvirato Videla, Massera e Agosti, conhecida como Proceso de Reorganización Nacional (1976-1983) – um dos seis golpes civil-militares pelos quais aquele país passou no século XX, com um saldo de cerca de trinta mil mortos/desaparecidos. A personagem de Quino“nasceu” na conturbada década de 1960, durante o governo de Arturo Umberto Illia (1963-1966), derrubado por outro golpe – a chamada Revolução Argentina,que colocou no poder os generais Onganía, Levingston e Lanusse. Mais exatamente, o “nascimento” de Mafalda se dá no mesmo ano em que no Brasil é deflagrado o Golpe que duraria vinte e um anos.

Em seu curto período de vida, Mafalda e sua turma (ela só “existe” a partir das relações que constrói com a família e com os amigos Manolito, Miguelito, Susanita, Felipe, Libertad ) “assistiram” a inúmeros acontecimentos significativos – a caça aos comunistas pós-Revolução Cubana; as ditaduras civil-militares na América do Sul, também com forte ingerência estadunidense; o assassinato de líderes como Martin Luther King (em 1968) e Malcom X (em 1965), bem como o de Che Guevara (1967), na Bolívia, com participação da CIA; o Maio de 1968 na França, sob o lema “a imaginação no poder”, que incendiou a juventude; o Festival de Woodstock (1969), com seu pacifismo à moda flower power ; a Primavera de Praga, que tentou construir uma democracia socialista na Tchecoslováquia de Dubcek; a derrota estadunidense no Vietnã, à custa de milhares de vidas dos dois lados; a eleição de Salvador Allende no Chile (1970), a chegada do homem (estadunidense) à Lua (em 1969), no contexto da corrida espacial com a URSS; o fim dos Beatles (fato que sem dúvida afetou profundamente Mafalda…) e o tricampeonato da seleção brasileira de futebol no México (o que também não deve ter agradado os conterrâneos da “baixinha”), ambos em 1970.

Mafalda na aula de História

Até há pouco tempo, as histórias em quadrinhos “entravam” na escola pela “porta dos fundos” e, na universidade, após um pedido de desculpas. Eram considerados uma subarte, uma subliteratura, representando uma linguagem “menor” e assumindo um caráter apenas de brincadeira. Felizmente, muita coisa mudou nestes últimos trinta anos no que diz respeito ao olhar acadêmico sobre as hq’s.

A criticidade na aula de História é requisito fundamental, bem como a associação entre processos históricos e a identificação de rupturas e permanências ao longo do tempo. Mafalda faz isso a todo instante: analisa criticamente a realidade, sem buscar uma pretensa neutralidade. (Esse é outro requisito importante nos debates realizados numa aula de História: tomar partido.) Ela não aceita o mundo que “recebeu” e o questiona constantemente. Ora tem atitudes de uma criança “típica” (que tem medo, depende dos pais, é ingênua…), ora age como uma criança excepcional (não no sentido de superdotada) e constrói belas metáforas, “saindo” da dimensão do concreto que caracteriza a criança em seus anos iniciais. Lúcida, crítica, consegue discutir a Guerra do Vietnã, por exemplo, e muitas vezes colocar os adultos em situações embaraçosas.

Em minha dissertação, defendida em 2011 no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, intitulada “Mafalda na aula de História: a crítica aos elementos característicos da sociedade burguesa e a construção coletiva de sentidos contra-hegemônicos”, analisei Mafalda buscando investigar como é possível, a partir da baixinha argentina, “tocar” em elementos basilares do tipo de sociedade da qual fazemos parte, grosso modo, há mais de duzentos anos: o individualismo, a democracia burguesa, o estímulo ao consumo, a valorização do lucro, a propriedade privada, o progresso, o livre-comércio, a naturalização das diferenças, a desumanização e a competição.

Como professor da Educação Básica (Ensinos Fundamental e Médio) e do Ensino Superior, a experiência com hq’s tem sido muito rica. Como um apaixonado por Mafalda, gosto de usá-la em provas, debates, trabalhos, tentando “extrair” ao máximo sua criticidade, suas indagações diante de um mundo confuso e “ao contrário”. O curioso é que Mafalda – uma personagem criança que não foi produzida pensando no público infantil – dialoga com diferentes faixas etárias. A partir dela é possível, por exemplo, tanto debater a democracia grega com o sexto ano como problematizar o conceito de alienação, a partir da mídia e do consumo, com uma turma de graduação em Pedagogia. Eis as tiras usadas nesses casos:





As hq’s são recursos poderosos, ferramentas importantes na relação de ensinar-aprender. E Mafalda é um exemplo paradigmático, dada a atualidade da crítica e o alcance da narrativa tecida pelo artista argentino. Todavia, é fundamental lembrar que as hq’s sozinhas não tornam uma aula mais ou menos atraente, tampouco transmitem um conteúdo em toda a sua integridade.

A genialidade de Quino

Quino é um dos artistas mais completos que surgiram em nuestra America. Embora Mafalda não tenha sido editada na forma de gibi (como a Turma da Mônica, por exemplo), seja datada (trata da Guerra Fria, das ditaduras na América Latina, etc.) e tenha durado apenas sete anos, a personagem fez e continua a fazer sucesso, tendo sido traduzida em países como Japão, Noruega, Austrália – sociedades muito distintas das existentes em nosso continente.

O enorme alcance da obra de Quino (cuja genialidade vai muito além de Mafalda ) deve-se ao fato de que o artista argentino abordou questões “permanentes”, como a da liberdade ou da soberania de um povo, por exemplo. Esta talvez seja a marca fundamental de um gênio – seja Beethoven, Dostoiévski ou… Quino.

Ao responder pergunta sobre se é possível modificar algo através do humor, Quino certa vez afirmou: “Não. Acho que não. Mas ajuda. É aquele pequeno grão de areia com o qual contribuímos para que as coisas mudem”.1Não tenho dúvidas de que Mafalda e sua turma representam importantes “grãos de areia” na construção de outras leituras/interpretações de nossa realidade, e logo, no limite, na construção de um outro mundo possível e necessário.

terça-feira, 14 de maio de 2013

[agência pirata] A DESCOBERTA DE CLARICE FALCÃO


 A timidez de Clarice Falcão é perceptível mesmo para quem a tenha visto poucas vezes. Retraída, é surpreendente que ela se exponha tanto, seja através de seus textos e roteiros, como atriz (com a carreira potencializada através do canal Porta dos Fundos) ou agora como cantora e compositora.


A reboque do sucesso online, seu disco de estreia, “Monomania”, passou dias no topo da lista de mais vendidos do iTunes, onde foi lançado. Os ingressos para série de cinco shows de lançamento no pequeno Solar de Botafogo evaporaram (e o mesmo aconteceu para os shows de SP, BH e Curitiba, batendo recordes do Queremos!) e o teatro ficou lotado de fãs querendo ver de perto a atriz.

Sim, porque Clarice ainda está se descobrindo cantora, passando por esse processo em frente ao público, como se tornou a norma nos dias de hoje. O show, bem ensaiado e cheio de marcações, reflete essa transição, a atriz e a cantora dividindo o mesmo palco. O fato dos shows serem num teatro reforçam essa metamorfose, porém são as composições que tornam essa mistura mais evidente.

Há um pouco de todas as facetas de Clarice nas músicas. A contadora de histórias, o personagem gauche que declama o texto, o humor que invariavelmente vem a tona e, claro, a compositora, fagocitando as outras personas, numa aglutinação que explica a monomania do título do disco:

Monomania s.f. Alienação mental em que uma única idéia parece absorver todas as faculdades mentais do indivíduo.
P. ext. Paixão, idéia fixa, mania exclusiva.

Enquanto equilibra-se num lugar imaginário entre um musical e um show, Clarice se esconde atrás do humor por timidez, ao mesmo tempo que oculta a transformação da atriz em cantora com o mesmo humor. Cronologicamente, é perto do final do show, já no bis, que ela e o quarteto que a acompanha (dividindo-se entre bateria, percussão, celo, baixo elétrico e acústico, guitarra e teclado), enfim, se libertam.

A banda toca com mais força e Clarice descola os pés do centro dos tablado, abre os braços e se solta. Pronta para ser cantora, um show de cada vez.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

[gífis] GIF-FITI

:: gif :: INSA ::

"Eu percebi que eu estava vendo mais pinturas on line do que na vida real, a maioria da arte que eu estava acessando estava na internet. Se isso era arte de rua de todo o mundo, ou inaugurações de exposições sobre blogs, e me desanimado um pouco, porque apesar de ter sido ótimo para ser capaz de ver tanto trabalho, percebi que este não era o caminho que o artista teria destinado seu trabalho para ser visto. Então eu pensei que uma forma interessante de brincar com essa idéia era criar arte especificamente para ser visto on-line: a tal ponto que você não pode realmente vê-lo em realidade. Então, na verdade, a internet se torna a melhor plataforma de observação para o trabalho ".





domingo, 12 de maio de 2013

[jóta péguiz] OS MOSAICOS DE ED CHAPMAN

O britânico Ed Chapman já criou vários incríveis mosaicos de uma série de materiais, como cerâmica, palhetas de guitarra, açúcar, vidro e moedas. Pioneiro na  arte de juntar pequenas peças de determinados materiais para transformá-los em figura, seu estilo é facilmente reconhecido, e suas peças são exibidas em mostrar e paredes de famosos por todo o mundo.











sábado, 11 de maio de 2013

[...] HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO

:: txt :: João do Rio ::

 No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!


Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.
Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.
— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.
— Mas não quero ser nada disso.
— Então quer ser vagabundo?
— Quero trabalhar.
— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.
— Eu não acho.
— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.
Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!
Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:
— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...
O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:
— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.
— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?
Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.


 No País do Sol o comércio é uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.
Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.
— É doido, mas bom.
Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.
— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...
— É da tua má cabeça, meu filho.
— Qual?
— A tua cabeça não regula.
— Quem sabe?
Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.
— Só caso se o senhor tomar juízo.
— Mas que chama você juízo?
— Ser como os mais.
— Então você gosta de mim?
— E por isso é que só caso depois.
Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?
— Trago a minha cabeça.
— Ah! Desarranjada?
— Dizem-no, pelo menos.
— Em todo o caso, há tempo?
— Desde que nasci.
— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...
Antenor atalhou:
— E o senhor fica com a minha cabeça?
— Se a deixar.
— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...
— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
— Regula?
— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.
Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

 Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.
— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!
Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
— Há tempos deixei aqui uma cabeça.
— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.
— Ah! fez Antenor.
— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...
— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.
— Mas a minha cabeça?
— Vou buscá-la.
Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
— Consertou-a?
— Não.
— Então, desarranjo grande?
O homem recuou.
— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours. 
Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
— Faça o obséquio de embrulhá-la.
— Não a coloca?
— Não.
— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.
Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.
— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.
Antenor ficou seco.
— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.




E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.


sexta-feira, 10 de maio de 2013

[butinaços] UMA PUNHETA PARA CADA MULHER QUE ENTROU E SAIU DA MINHA VIDA

:: psy :: Júlio Freitas ::

lembro de uma por uma
enquanto corto as unhas
das mãos e pés

despeço-me de cada uma delas
enquanto vejo os pedaços
das unhas caírem

mas as unhas continuam crescendo.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

[noéntrevista] O MANDA-CHUVA


:: ntrvst :: Letícia Bonato ::

Por que fazer jornalismo de forma independente? Qual o propósito do trabalho independente e o que o diferencia do jornalismo tradicional?

Tiago Jucá: não sei se é independente, pois pra poder publicar uma revista impressa, depende de muitas coisas, sendo a principal delas dinheiro. diria alternativo. pq? pq é a maneira que achei de poder falar o que quero, sem cair nas armadilhas do jornalismo tradicional, que tem o rabo preso com a própria empresa, com o poder público e com as grandes empresas anunciantes e patrocinadoras da mídia.

Já que tens grande participação nisso, sabes me dizer como é a cena do jornalismo independente em Porto Alegre? A que pé anda?

Tiago Jucá: há jornalismo independente em poa através de blogs e web rádios, mas impresso só há duas publicações: Tabaré e Bastião. se por um lado é pouco, por outro é bom que migrou-se pra plataforma virtual. papel é coisa do passado.


O que é abordado n’O Dilúvio? Como escolhe o conteúdo?

Tiago Jucá: aborda-se cultura, comportamento, sociedade, moda, arte, humor, pirataria, plágio, ecologia, banditismo, troll, etc. o conteúdo se escolhe através do que observamos ao redor: a gente come as informações, digerimos o pensamento, cagamos a opinião. nossos leitores são uma privada.


Como a ideia pra revista surgiu? Hoje vocês tão no ambiente online,é mais propício pro trabalho?

Tiago Jucá: o sucesso obtido na internet em 2001 e 2002 alavancou a ideia de imprimir uma revista. o insucesso financeiro nos fez voltar pra internet.

O Dilúvio ainda é uma revista impressa? Qual é/era a tiragem e como era a distribuição?

Tiago Jucá: a revista impressa está de férias, quem sabe um dia volta. a tiragem era de 5 mil exemplares, distribuição gratuita, exceto  500 exemplares que iam com cd/smd/dvd/livro encartado e vendido em bancas de diversas capitais do brasil e grande poa por 10 reais (revista+encarte). ah, todo nosso conteúdo, seja impresso ou online, está licenciado em creative commons/domínio público. ele pode ser copiado, colado, modificado, roubado, plagiado... faça dele o que quiser, como quiser.


Existe fidelidade com o leitor? Como recebem sugestões, críticas e reações do público?

Tiago Jucá: o leitor que se foda, não gostou, que vá ler a veja, carta capital e outras porcarias.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

[bolo'bolo] OS TRÊS ELEMENTOS ESSENCIAIS DA MÁQUINA




Examinando a Máquina mais de perto podemos distinguir três funções essenciais, três componentes da força de trabalho internacional e três negócios que a Máquina nos oferece.

    As três funções podem ser caracterizadas assim:

informação: planejamento design, orientação, manejo, ciência, comunicação, política, produção de idéias, ideologias, religiões, arte, etc.; o cérebro coletivo e sistema nervoso da Máquina.

produção: criação industrial e agrícola de produtos, execução de planos, trabalho fragmentado, circulação de energia.

reprodução: produção e manutenção de trabalhadores tipo A, B e C através da produção de crianças, educação, trabalhos domésticos, serviços, entretenimento, sexo, recreação, cuidados médicos, etc.

    Essas três funções são igualmente essenciais para o funcionamento da Máquina. Se uma delas falha, mais cedo ou mais tarde a Máquina pára. E para realizar essas três funções a Máquina criou três tipos de trabalhadores, divididos por seus níveis salariais, privilégios, educação, status social, etc.

A – Trabalhadores técnico-intelectuais pra países (ocidentais) industrialmente avançados: muito qualificados, na maioria brancos, homens e bem pagos. Um bom exemplo: engenheiros de computação.

B – Trabalhadores industriais e empregados em áreas não muito desindustrializadas, nos países em desenvolvimento e países socialistas: pouco ou muito mal pagos, homens ou mulheres, com amplas qualificações. Por exemplo, montadores de automóveis, montadoras de aparelhos eletrônicos (mulheres).

C – Trabalhadores flutuantes, oscilando entre pequenos períodos de plantio e colheita nos campos, prestadores de serviços, donas-de-casa, desempregados, criminosos, pivetes, todos sem rendimentos regulares. Na maioria mulheres e não-brancos dos cortiços metropolitanos ou do Terceiro Mundo, essas pessoas freqüentemente vivem no limite da inanição.

    Todos estes tipos de trabalhadores estão presentes em todas as partes do mundo, só que em diferentes proporções. Mas é possível distinguir três zonas com uma proporção tipicamente alta dos respectivos tipos:

Trabalhadores A – em países (ocidentais) industrialmente adiantados, nos Estados Unidos, Europa, Japão.

Trabalhadores B – em países socialistas ou em vias de industrialização: União Soviética, Polônia, Taiwan, etc.

Trabalhadores C – no Terceiro Mundo, em áreas agrícolas ou subdesenvolvidas, na África, Ásia e América do Sul, e em chiqueiros urbanos do mundo inteiro.

    Os três Mundos estão presentes em toda parte. Na cidade de Nova York existem bairros que podem ser considerados parte do Terceiro Mundo. No Brasil existem importantes áreas industriais. Em países socialistas existem representantes perfeitos do tipo A. Mas ainda assim resta uma acentuada diferença entre os Estados Unidos e a Bolívia, entre a Suécia e o Laos, e por aí afora.

    O poder da Máquina, seu mecanismo de controle, é baseado no estímulo à luta entre os diferentes tipos de trabalhadores. Altos salários e privilégios são garantidos não porque a Máquina prefira determinado tipo de trabalhador, mas porque a estratificação social é usada para a manutenção do sistema como um todo. Os três tipos de trabalhadores aprendem a ter medo uns dos outros. São divididos por preconceitos, racismo, ciúmes, ideologias políticas, interesses econômicos. Os trabalhadores A e B têm medo de perder seu alto padrão de vida, seus carros, suas casas, seus empregos. Ao mesmo tempo, eles se queixam constantemente de stress e ansiedade, e invejam os comparativamente ociosos Trabalhadores C. Estes, em troca, sonham com bens de consumo, empregos estáveis e o que eles vêem como uma vida fácil. E todas essas divisões são exploradas de vários modos pela Máquina.

    A Máquina nem precisa mais de uma classe dominante especial para manter seu poder. Capitalistas privados, burgueses, aristocratas, todos os chefes são meros excessos, sem nenhuma influência decisiva na execução material do poder. A Máquina pode prosseguir sem capitalistas e proprietários, a exemplo dos países socialistas e das empresas estatais do Ocidente. Esses relativamente raros tubarões não são o problema real. Os verdadeiros órgãos opressores da Máquina são todos controlados pelos próprios trabalhadores: guardas, soldados, burocratas. Somos sempre postos em confronto com metamorfoses convenientes da nossa própria espécie.

    A Máquina Planetária do Trabalho é um mecanismo que consiste de pessoas postas umas contra as outras; todos nós garantimos seu funcionamento. Então, uma questão urgente é a seguinte: por que a gente topa? Por que a gente aceita viver um tipo de vida de que obviamente não gosta? Quais são as vantagens que nos fazem suportar o nosso descontentamento?

sábado, 4 de maio de 2013

[agência pirata] SERÁ POSSÍVEL USAR UM SMARTPHONE SEM CULPA?




Quem se conecta demais, para de pensar. Os apelos, o imediato, a tendencia de absorver rapidamente o pensamento de outras pessoas, interrompem a abstração profunda, necessária para encontrar seu próprio pensamento. Essa é uma das razões pelas quais ainda não comprei meu smarthphone. Mas é cada vez mais difícil resistir aos avanços tecnológicos. Talvez eu acabe sucumbindo este ano. Por isso, lancei a mim mesmo uma questão simples: posso comprar um smartphone produzido eticamente?

Há dezenas de questões envolvidas na pergunta, como salários de fome, bullying, 60 horas de trabalho semanais nas fabricas, a servidão por dividas a que alguns trabalhadores são submetidos, energia utilizada e resíduos perigosos produzidos. Mas vou focar em apenas um: os componentes usados para fabricar os celulares estariam manchados de sangue de pessoas da região leste da Republica Democrática do Congo? Há 17 anos, grupos rivais e milícias armadas têm lutado pelo domínio dos minerais da região. Entre eles estão os metais críticos para a fabricação de certos aparelhos eletrônicos. Sem tântalo, tungstênio, estanho e ouro, não existiriam smartphones.

Embora estes elementos não sejam a única razão para o conflito, eles ajudam a financiá-lo, sustentando uma guerra que se desdobra em diversos conflitos e que já matou milhões de pessoas – vítimas de mortes diretas, deslocamento populacional, doenças e desnutrição. Milícias rivais forçam a população local a minerar em condições extremamente perigosas, extorquindo minérios e dinheiro de mineradores autônomos. Torturam, mutilam e assassinam quem resiste, espalhando terror e violência – inclusive estupros e sequestro de crianças. Eu não gostaria de participar disso tudo.

Nenhum dos grupos de ativistas que denunciam o problema querem que as empresas ocidentais parem de comprar os minerais do leste do Congo. A Global Witness e a FairPhone, por exemplo, lembram que a mineração é meio de vida de muitas famílias, num pais onde se tem 82% da população desempregada. Porém, elas também frisam que a atividade pode ser desassociada da violência: se, e apenas se, as companhias ocidentais assegurarem que não estão comprando minerais das milicias. Pensando no potencial dano à sua reputação, seria de esperar que as empresas levassem a sério o problema. Mas, exceto em alguns casos, este raciocínio está errado!

Entre os fabricantes, a Nokia parece ter ido mais longe, e seus esforços são bastante impressionantes. Desde 2001 – muito antes da maioria das empresas começarem a se preocupar – ela tentou remover, de sua cadeia de fornecedores, o tântalo extraído ilegalmente. Agora, instrui seus fornecedores a mapear a origem dos metais minerados no Congo, antes que cheguem às fábricas. Entretanto, o problema esta longe de ser resolvido: eles me disseram que “não há nenhum sistema confiável na insdústria eletrônica que permita, à companhia, determinar as fontes do seu material”. Há seis iniciativas por parte de governos, grupos voluntários e empresas esforçando-se para produzir telefones sem sangue e a Nokia está envolvida em todos eles.

A resposta da Apple foi menos detalhada e persuasiva. Para dar uma ideia de quão complexo se tornou o problema, ela descobriu que seus metais são fornecidos por 211 fundições, generosamente distribuídas ao redor do planeta. Qualquer um deles poderia estar usando minerais apreendidos por milicias no Congo. Mas o fato a Apple ter mapeado sua própria cadeia de abastecimento é um bom sinal.

Dois anos atrás, a Motorola lançou um programa — aparentemente confiável — cuja finalidade é comprar tântalo de regiões sem conflito no Congo. Este tipo de projeto, que começa pela longa cadeia de fornecedores, garante uma renda para a população local, assegurando que as milicas armadas não tenham tanto lucro com a venda de seu celular. É difícil entender por que nem todos os fabricantes possam participar.

As outras empresas escondem-se atrás da suas associações comerciais, e fazem de tudo para minar esse tipo de esforço. Há dois meses, entrou em vigor uma nova decisão da lei norte-americana Dodd Frank, que obriga as empresas a descobrir se os minerais comprados no Congo financiam grupos armados. Ela deveria ter sido aprovada antes, mas o lobby corporativo atrasou em 16 meses sua votação. Graças a um grande esforço, as empreas, que passaram 17 anos ignorando o tema, poderão continuar a fugir de suas responsabilidades por mais dois – desde que afirmem não saber a origem do material que compram.

Mesmo este período de “adaptação” não foi suficiente para elas. Três grupos de lobby — a Câmara Nacional da Indústria [National Association of Manufacturers], Câmara Norte-americana de Comércio [US Chamber of Commerce] e a Mesa Redonda dos Negócios [Business Roundtable] estão pressionando judicialmente o governo norte-americano a deixar a nova lei de lado. A Global Witness tem apelado para que certas empresas – entre as quais Caterpillar, Dell, Honeywell, Motorola, Siemens, Toyota, Whirlpool e Xerox – afastem-se de tal lobby – porém, sem sucesso…

Suspeita-se que algumas empresas estejam “usando do anonimato oferecido pelas associações para tentar corroer a lei”, enquanto fazem declarações públicas sobre sua suposta gestão ética. Não tive tempo de me aprofundar nessa questão: talvez passamos destrinchá-la colaborativamente. Vamos contatar os fabricantes de telefone para saber se pertencem a esses grupos de lobby; e questionar se vão denunciar publicamente a ação judicial e suspender a participação no lobby, até que a iniciativa seja descartada. Isso seria um bom teste para saber até onde eles realmente chegam.

Ainda não tomei minha decisão. Existem todas as outras questões a investigar, incluindo a vida extremamente curta desses telefones (uma pesquisa que fiz no twitter sugere que a maioria das pessoas substitui seus aparelhos depois de um a quatro anos). Talvez eu espere até a FairPhones fabricar um aparelho. Ou talvez eu não me importe em ter um smartphone. Poderia me contentar com menos imediatismo, menos acessibilidade e um pouco mais de espaço para pensar.

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