#CADÊ MEU CHINELO?

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

[troll] O SUICÍDIO DO POLVO PAUL

[cc] ENTRE CASAR E COMPRAR UMA BICICLETA



::txt::Alexandre Lucchese::
::phts::Thais Brandão::
::ntrdç::Tiago Jucá Oliveira::

Domingo passado. Gre-nal pras bandas da Azenha. Churrasco no Vale Azul, condomínio onde fica a sede da revista O DILÚVIO. Gustavo, o vizinho, me diz que o chileno que pedala pela América Latina, virá pro churraz. E veio mesmo. Uma figura simpática, cheio de histórias, que recém adentra ao continente brasileiro e que irá até a Cidade del México, e depois voltará. Pedalando, amigos!

O texto abaixo é de meados de junho, quando Luchese e Thais o encontraram na banda oriental cislplatina. O casal também peregrina pela América Latina. Conheçam um pouco mais da história do corajoso e aventureiro pedalante:




Um trampo como repórter de uma rádio totalmente dedicada à música popular e ao rock, um apartamento cheio de gatos numa grande metrópole e uma mulher para amar: foi tudo isso que o chileno César Altamirano, 34 anos, teve de abandonar para realizar o sonho de percorrer a América Latina desde o sul do Chile até o México. E ele ainda vai chegar lá, mas vai demorar um pouquinho, já que cumpre uma média de 15 km/h na sua Fuser – assim chama a bicicleta que tem sido sua única companheira nas longas horas de estrada.

Encontramos César em Mercedes, uma pequena cidade do sudoeste uruguaio, sob uma chuva torrencial. Ao chegar na casa onde nos hospedamos, ele torceu os sapatos encharcados e selecionou alguns papéis e roupas de maior importância para secar junto à lareira que nos protegia deste junho gelado. Não parecia nada incomodado com a umidade que penetrava todo seu equipamento, estava era feliz de agora estar quente e seco perto do fogo. E deve ter sido essa positividade que o fez resistir às intempéries que atravessou nesses mais de 4.000 km de viagem.

Princípio difícil

Filho único de uma professora de ensino fundamental, César nunca teve o pai muito presente em casa. Os dias solitários, no entanto, eram vividos com muito prazer desde a infância, pois neles podia mergulhar por horas na sua crescente paixão: a música. Desde criança era atraído pelo rock, principalmente pelos discos dos Beatles que encontrava em casa.




Foi assim que na adolescência decidiu se tornar um jornalista especializado em música. Como no Chile não existem universidades públicas gratuitas, encarou o curso mesmo sem ter como pagá-lo, e só conseguiu quitar sua dívida com a instituição devido a uma feliz participação, em 2002, da versão chilena do programa Quem quer ser um milionário? Das 15 perguntas que compunham o programa, César chegou até a décima terceira.

Saiu do estúdio de televisão e foi direto para a universidade validar seu diploma. Com o resto do dinheiro, presenteou a mãe com reformas na casa e ainda ajudou a família de outras maneiras. Agora que o prêmio se acabou, viaja com as escassas economias geradas com o trabalho de jornalista. Havia também negociações com patrocinadores, porém todos abandonaram o projeto ao se verem descapitalizados devido ao terremoto que devastou o Chile em fevereiro de 2010.


Mochila com painel solar capta energia para carregar celular, I-pod e outros eletrônicos

César dorme na casa de moradores das cidades por onde passa, ou então arma sua barraca atrás de postos de gasolina – quando não alcança um posto antes de cair a noite, arma sua tenda detrás de arbustos na beira da estrada. Sempre gosta de frisar que é muito bem recebido em todos os lugares e nunca se sentiu ameaçado ou com medo durante a jornada. Ele estima gastar entre 200 a 250 reais por mês de viagem.

Crise e renovação

Quem vê o jeito risonho de falar do ciclista, quase não acredita quando ele diz:
- Cheguei a desistir no meio da viagem, voltei ao Chile em crise. Uma depressão me fez perder dez quilos, tive que me guardar um tempo freqüentando psiquiatras e me recuperando.



O ciclista iniciou sua odisséia em 15 de março de 2009, em Concepción, sua cidade natal, no sul do Chile. Em 13 de julho conseguiu alcançar Buenos Aires. Depois de pouco mais de um mês na capital argentina, deixou sua bicicleta na casa de amigos e partiu para o Chile de ônibus a fim de buscar uma companheira pela qual estava apaixonado e que estaria se preparando para seguir viagem com ele.

Porém, ao chegar, sua expectativa amorosa não foi correspondida, sendo obrigado a tomar o ônibus de volta remoendo a dor de desconstruir seus planos a dois e ter de seguir viagem solitário. Passou duas semanas em Buenos Aires, mas começou a sentir pânico de regressar para a estrada, além de uma sensação aterradora de vazio que o deixava imóvel.

César decidiu voltar mais uma vez para sua terra natal, no fim de setembro de 2009, com a idéia de desistir da viagem. Aos poucos foi restabelecendo o equilíbrio emocional, até que finalmente resolveu partir em abril de 2010 para retomar a viagem na bicicleta. “Tinha afirmado a mim mesmo e a todos que realizaria esse sonho de infância e juventude, agora é hora de continuar”, nos diz César enquanto termina de montar seus alforges na Fuser e voltar a pedalar mais uma vez.



Acompanhe a jornada do ciclista no blog loscaminosqueseabren.wordpress.com.

* Este post é dedicado ao ciclista e fotógrafo Roberto Furtado, um dos maiores incentivadores da jornada d’Os Estrangeiros. Gracias de todo, hermano! E que todas as porteiras se abram nos novos caminhos que estás trilhando!

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

[protopia] SOBRE AS PEÇAS DE XADREZ QUE DISPUTAM AS ELEIÇÕES




::txt::Protopia::

Um verme liberal espalha aos quatro ventos sua "boa nova": - é o fim de todas as ideologias! (como se fosse possível acabar com ideologias sem acabar com o próprio homem e sua capacidade de ter idéias). Outro vai mais além dizendo que estamos chegando no fim da própria história. Enquanto isso, os baluartes das internacionais sisudas - velhos comunistas e anarco-sindicalistas - vivem de saudosismos, restos, fotos desbotadas, saudades de um proletariado revolucionário que se perdeu nas voltas do mundo. E o conservadorismo libidinoso vira moda alimentado por medos gerados pela miséria do terceiro mundo, bem como pelos traumas resultantes da distopia socialista soviete. Será que não há nem haverá nada de novo sob o sol? Será o fim de toda possibilidade de transformação social? Devemos nos conformar com esta sobrevida pasteurizada despida de toda excitação, de toda agitação imaginativa que nos reserva o status-quo? Estaremos fadados ao terrível papel de peças sobressalentes da Máquina-Sistema, submersos eternamente nestas catacumbas escuras?

Algo entre meus olhos e meu cerebelo insiste em me dizer que tudo isso é balela pró-sistêmica que vem sendo repetida pelas maiorias angustiadas, doentes e deprimidas, tornando-se lavagem cerebral de baixa qualidade. É um fato inevitável: alguns já perceberam uma ruga de preocupação crescer no rosto maquiado da âncora do jornal: "Como desinformar informando tanta gente por tanto tempo? Como esconder fatos e ocorridos que poderiam servir de inspiração para a revolta de tanta gente descontente há muito?"

A preocupação da âncora encontra-se bem fundamentada em tudo aquilo que ela evita em colocar no ar: todas as notícias que foram para a gaveta, que jamais chegaram ao (portanto não aconteceram no) meio midiático. Estes são indícios importantes, não podemos ignorar que uma grande mudança está a caminho, e este é o momento exato em que o status-quo tal qual conhecemos começa a fraquejar. Por mais que a jornalista se esforce para maquiar a notícia, agora existem meios que sua corporação simplesmente não é capaz de controlar, meios de informação dinâmicos e pulsantes que, se bem utilizados, são capazes de oferecer informações que não foram para a TV e para os jornais, ou que foram distorcidos para que fossem veiculados.

Fica cada vez mais evidente, a uma parcela cada vez maior de pessoas submetidas à Máquina-Sistema que há alguma coisa muito errada acontecendo - atrito entre peças (mentiras, guerras, violência), sobrecarga e desgaste (sub-emprego, exploração, impostos e irresponsabilidades), e perda de energia (escapismo, miséria, morte e inanição). É claro que nem todos são capazes de perceber conscientemente este mal-funcionamento; muitos se agarram à normalidade, ou se desesperam e enlouquecem lentamente em seus trabalhos, em casa com as suas famílias, em ônibus e trens superlotados, em carros em congestionamentos, por vias que não os levam a lugar algum.

Tomados por crises de depressão e ódio e canalizam estes sentimentos para os que se encontram na mesma situação que eles sem saber que assim se tornam cúmplices dos verdadeiros responsáveis por este estado generalizado de misérias, os governos, as religiões institucionalizadas, as empresas exploradoras e as mentes que fabricam.
Aos ditos "politizados" identificados com as balelas (esquerdistas ou direitosas) da decadente "realpolitik" só sobra uma megaversão do jogo da batata quente. Todos rebaixados à qualidade de peças diferentes desta mesma máquina.

As elites (peças tipo A - geralmente a direita de quem entra, no alto da escadaria) colocam a culpa dos problemas do mundo no crescimento demográfico, nas ondas de imigração dos pobres, no jeitinho dos empregados, na herança indígena, na mistura racial, nas chuvas das monções, na presença de curdos, no calor dos trópicos, na qualidade da água, na quantidade de polém no verão e, mais frequentemente, no "paternalismo institucional". No contexto do chamado terceiro mundo a direita vomita ideologias desenvolvimentistas ultrapassadas lamentando o fato de não termos o mesmo nível de produtividade e excelência da Suíça ou do Canadá "onde tudo é lindo e cor-de-rosa, e teletubbies andam consumindo tranqüilamente em meio à bonecos de neve e verdes campos até a hora de dizer tchau". A estratégia das elites é jogar a batata quente para cima de todos aqueles que se acredita atrapalhar seu grande projeto de mercado global ao qual os estados (mínimos) e as diferentes nações devem se alinhar e se submeter.

Como no reflexo de um espelho, as outras vias (que de fato são uma só, e geralmente se colocam a esquerda): os ditos socialistas, entusiastas do sindicalismo estatal, social-democratas e outros tipos de reformistas (peças tipo B) jogam a batata quente em cima dos ricos gananciosos que só pensam em si, transformando-os nos grandes vilões da história. Mas isso certamente é uma supervalorização das elites, que são por demais incapazes de qualquer reflexão sobre qualquer coisa que não seja o lucro cego (é isso ou será só um grande lodo de hipocrisia?). Se agem nesse sentido, agem por dois motivos: 1) pelo medo da mudança instigado pela ideologia de guerra de classes, e 2) pela segurança da tradição, traduza-se automatizada reprodução. Por outra via, o esquerdista clássico não se permite eximir os pobres e os alienados, considera-os desorganizados, ignorantes e "desinformados", que não são minimamente capazes de reconhecer (e de votar) nos esquerdistas como "vanguarda", "autênticos líderes" defensores de sua classe e do seu sagrado bem estar estatal.

Fora desta balela o mundo está explodindo em mudanças rápidas e promissoras: blocos de guerreiros vestidos de negro, rizomas de rádios comunitárias, levantes indígenas, redes de okupas e outras insurreições nos centros e periferias. Cada um destes elementos é também uma peça no mosaico deste tempo em movimento. O futuro realmente não é mais como era antigamente e esta frase, pichada em um muro argentino, lembra-nos o quão negro o futuro nos pareceria se não fosse nossa própria capacidade de intervirmos positivamente no que está por vir. Então pichamos aqui algumas idéias para o futuro, uma proposta de intervenção neste estado de coisas, por um mundo que ainda está para surgir.

[bento xvi] O PAPA É FODA

[agência pirata] O TAQUARYENSE



::txt::Silvana Losekann::

O jornal O Taquaryense passa a fazer parte do patrimônio histórico e cultural de Taquari. Em solenidade na última terça-feira, nas dependências do veículo, o Ministério Público e a administração municipal assinaram Termo de Ajuste de Conduta em que o prefeito Ivo Lautert assumiu o compromisso de dar todo o encaminhamento para tombar o periódico de 123 anos. O ato também contou com a presença da promotora pública da Comarca de Taquari Andrea Almeida Barros, autora do inquérito, da proprietária do jornal, Flávia Saraiva Dias, do coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do MP, promotor Júlio Almeida, além de funcionários e integrantes da família Saraiva.

Andrea explicou que a ação foi apresentada em 13 de setembro e, no último dia 22, houve uma reunião com os proprietários e a prefeitura, para o acerto dos detalhes. “Posso garantir que estou extremamente feliz com esta iniciativa, porque assegura a preservação de um dos jornais mais tradicionais e históricos do Estado e um dos únicos ainda impressos no sistema de tipografia”, disse. A promotora também se referiu à impressora que pertenceu ao Correio do Povo e, segundo ela, a medida garante que a máquina vai ficar em Taquari. No inquérito, Andrea incluiu uma cláusula assegurando o tombamento e outra fazendo com que a família não possa se desfazer do patrimônio. “Isso significa que, se o jornal parar de circular, não poderá ser vendido. Será transformado no museu O Taquaryense e deverá permanecer no local onde está”, explicou.

O prefeito disse que o periódico já é um patrimônio histórico de Taquari e que agora o município vai fazer isso de forma oficial. “Nós temos todo o interesse em ajudar o jornal e conseguir recursos através da Lei de Incentivo à Cultura para manter este patrimônio”, salientou. Flávia, neta do fundador do jornal, Albertino Saraiva, afirmou que esse era um momento histórico e muito significativo para a família. Ela também elogiou a equipe de funcionários. “Cada edição é uma obra de arte, porque juntar todos os textos letrinha por letrinha é um trabalho de muito capricho.”

Edição artesanal

O Taquaryense tem circulação aos sábados, com quatro páginas. A tiragem é de 460 exemplares. O funcionário responsável pela diagramação, serviço de tipografia e impressão é João da Rosa Rodrigues, de 37 anos e há 20 atuando nas atividades. Ele conta que na segunda e na terça-feira faz a montagem das páginas internas, impressas na quarta. Na quinta e na sexta-feira, encarrega-se da capa e da contracapa, que vão para impressão no sábado de manhã. “Depois, nós juntamos as duas folhas, dobramos e por volta do meio-dia o jornaleiro começa a distribuição”, diz.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

[release] MARKU RIBAS - 4LOAS

::txt::Alex Antunes::

Numa seleção da grande música black brasileira em que figurassem Tim Maia, Jorge Ben, Elza Soares, Luiz Melodia, Trio Mocotó, Djavan, Dafé, Hyldon, Cassiano e uns poucos outros, o grande Marku Ribas teria lugar certo. Talvez com uma diferença: não está morto, alquebrado, escanteado ou acomodado. Na verdade, Marku parece, aos 63 aninhos, em melhor forma do que nunca. E isso não é uma frase de efeito. Como sugere seu nome artístico, inspirado no milenar sítio arqueológico Maku da região onde nasceu Marco Antonio, à beira do São Francisco, norte de Minas, o homem parece movido por forças imemoriais e inarredáveis, na confluência das culturas negra, indígena e branca. Sem nunca ter "hypado", mas sempre estimado como um dos gênios da música brasileira setentista, Marku continua traçando sua trajetória única com charme (no sentido de encantamento mesmo), coerência, originalidade e potência notáveis.

Cantor, violonista, percussionista e ator, Marku colocou sua carreira ascendente em rota de choque com a ditadura militar, que o prendeu em 1968, pelo teor de algumas de suas letras. Foi parar no exílio na França, onde atuou em filmes de Robert Bresson e Jean-Marc Thibault. Montou um grupo em Paris que o levou em excursão ao Caribe, fixando então residência na Martinica e em Stª Lucia, ilha inglesa, onde teve a oportunidade de se encontrar com Bob Marley. De volta ao Brasil, em férias, gravou em 1972 o álbum Underground, com arranjos de Erlon Chaves, e inscreveu “Zamba Ben” entre as músicas clássicas dos bailes do samba-rock afins. Em outra passagem pelo país em 1975, registrou o álbum Marku, onde já sacava o reggae em “Meu Samba Regue” e contava com as participações de João Donato, Miúcha e Wilson das Neves. Seu cadinho de brasilidade profunda, africanismos e sons caribenhos nunca mais secou, rendendo uns tantos outros discos até a década de 90. Nessas cinco décadas, compôs ou tocou com músicos díspares como Jair Rodrigues, Alcione, Erasmo Carlos, Raul de Souza, Chico Buarque (Ópera do Malandro, 79) e Rolling Stones (Dirty Work, 85), influenciou gente do calibre de João Bosco, Ed Motta e Marcelo D2. De volta ao cinema, participou de vários filmes, com destaque para o papel do revolucionário Carlos Marighela em Batismo de Sangue (2007), e o crooner da banda do baile em Chega de Saudade (2008). Em 2009, saiu seu primeiro DVD, da série Toca Brasil (Itaú Cultural), uma parceria com o selo +Brasil Música.

Mas vamos ao que interessa. O álbum 4Loas dissipa qualquer melancolia do ouvinte que não ouviu Marku antes. Porque Marku é agora. Samba, jazz, black elétrica; mestria nos violões angulosos, nas onomatopéias, prosódias e scat singing sempre desconcertantes, na poesia inusitada. Sem falar da banda afiadíssima (Ezequiel Lima no baixo, Neném na bateria e Fabinho Gonçalves na guitarra) em arranjos rítmicos e harmonicamente detalhados, cheios de clima e molho. “Doce Vida” é uma deliciosa bossa clássica, com direito a canoa e tudo. Já em “Aurora da Revolução”, “Daomé”, “Altas Horas” (esta última em parceria com o falecido baixista Luizão Maia), o samba é mais inquieto, um bom tempero de gafieira no suingue, com uma ajuda do trombone de Pedro Aristides e do trompete de Paulo Márcio em alguns momentos. Na citada “Aurora”, Marku usa um recurso poético que lhe é caro: encarar a mulher como algo transformador, mobilizador – revolucionário. Algo de matriarcal, feiticeiro e misterioso sempre parece empoderar as mulheres que canta.

“Querobem Querubim” (parceria com o também recentemente falecido Arnaud Rodrigues) é aparentada do melhor samba-jazz. E as sexys e sinuosas “Aristóporindé” e “A Embaixatriz” são invenções markutianas pura. “Sambatema” tem uma pegada afrobeat encantadora, e uma letra hipnótica. Em “Bervely Help” Marku se joga num pop jazzy e tenso, movido pelo ótimo órgão Hammond de Cristiano Caldas e uma letra conspiratória. “O Mar Não Tem Cabelo” é o momento funk, com algo do groove de Dafé, Cassiano e o Jeff Beck de Wired. Ou seja, uma funkeira daquelas que parece vir diretamente dos anos 70, nos clavinetes, guitarras wah wah e metaleiras. Finalmente, a lancinantemente delicada “Ce Pas Pour Ça” é só voz, violão e a marimba de vidro de seu sobrinho Amoy Ribas.
Se a música brasileira está vivendo o seu melhor momento desde a passagem dos anos 60 para os 70 (exatamente aquela de que emergiu Marku), o cara em si está de volta, com tudo, para nos ensinar como se zamba bem. Bendito seja o mestre.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

[agência pirata] COVIL TROPICAL



::txt::Jana Lauxen::

O debate político, que deveria estar acontecendo nestas três semanas que separam o primeiro do segundo turno, virou uma guerra de travesseiros com direito a penas voando para todos os lados.

Propostas? Quase nenhuma.

Promessas? Aos montes.

Se ambos os candidatos fizessem um terço do que estão dizendo que farão, estaríamos salvos.

Mas ok.

Sabemos que é assim em tempo de eleição, e até já nos acostumamos.

Porém, nesta eleição em especial, presenciamos uma das mais explícitas e ordinárias troca de acusações e baixarias da história deste país, entre as duas pessoas que, dada a importância do cargo que pretendem ocupar, precisavam estar mais preocupadas em discutir soluções e criar alternativas, e menos em coletar pedrinhas para atirar contra o telhado de vidro alheio.

Serra e Dilma - e toda a corja que os acompanha - mais parecem duas garotinhas mimadas disputando a mesma boneca.

Os dez minutos diários a que cada aspirante a presidente tem direito, ao invés de tratarem sobre COMO cada um pretende resolver os problemas deste país (não seria este o objetivo? Sou ingênua?) viraram em travesseiradas e gritinhos.

Cada candidato se transformou numa metralhadora ambulante de apelações, e até deus já apareceu na história – e sem direito de réplica.

Num passe de mágicas, Serra e Dilma vestiram até mesmo a camisa verde da causa ambiental, e nunca pensaram tanto na preservação dos passarinhos amazônicos.
Cada qual apregoando que, se não for eleito, o Brasil estará perdido; como se não estivéssemos perdidos de qualquer maneira.

Agora, sabem o que é o pior?

Nem é constatar que, apesar do meu incorrigível otimismo, nossa política desce, DE FATO, frenética ladeira abaixo.

O pior é ver que os eleitores, que deveriam ser os primeiros a cutucar o ombro de Serra e Dilma e dizer: - Hã, oi? Quando terminarem o bate-boca, podemos começar a falar sério?, são os primeiros a ingressar no batalhão de choque e partir para o ataque, se agarrando com unhas e dentes em discussões que saem do nada e vão para lugar nenhum.

Neste exato momento eles estão discutindo amenidades, no maior estilo ‘sou ruim mas você é pior’, e nós, os maiores interessados, estamos numa platéia batendo palminhas e empunhando bandeirolas.

Não, isto não é um jogo de futebol.

Não somos torcidas rivais, meu povo.

Muito pelo contrário: jogamos todos no mesmo time.

Somos os juizes desta partida, e não o contrário.

Não há Serra versus Dilma. O que existe é Serra & Dilma versus nós.
E afirmo isto com convicção porque eles estarão numa boa de qualquer jeito.

Ganhem petistas, ganhem tucanos, eles continuarão morando em suas casas grandes e bebendo cicuta com azeitona ao entardecer, mamando na teta do governo enquanto eu, você e sua mãe continuaremos aqui, comendo o pão que Dilma e Serra amassaram.

Se PT e PSDB estão protagonizando este circo, acreditem, é porque existem espectadores.

Aliás.

Estas eleições nada mais são do que um perfeito e fidedigno retrato da sociedade onde vivemos: um monte de gente histérica gritando sem parar por causa de nada, enquanto o importante vai passando embaixo de nossas fuças sem que possamos sequer perceber, ocupados que estamos em fazer barulho.

Cada povo tem o governo que merece.

E este é mais um motivo para não votarmos em branco dia 31.

Seja nela, seja nele, quem será eleito para ser nosso representante pelos próximos quatro anos desempenhará com maestria a função para a qual foram eleitos: nos representar.

Afinal, desde já estão, os dois, representando nossa burrice e nossa vulgaridade com muita competência.

Nossos candidatos à presidência nunca serão pessoas sérias e compromissadas porque nós, eleitores e eleitoras deste país, também não somos.

Como poderíamos eleger alguém decente para nos representar, se somos, nós mesmos, tremendamente indecentes?

Parabéns Brasil.

E que vença o menos pior.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

[the end] JIM MORRISON E O FIM DO JORNALISMO



::txt::Tiago Jucá Oliveira::

A reportagem pergunta: o que você acha dos jornalistas? Ele responde: “Eu poderia ser jornalista. Creio que a entrevista é a nova forma de arte. Acho que a auto entrevista é a essência da criatividade. Fazer perguntas a si mesmo e procurar respostas. O escritor está apenas respondendo a uma série de perguntas jamais feitas”.

Li o trecho acima numa edição da Rolling Stone do mês passado. É uma entrevista antiga feita pela matriz americana e reproduzida agora pela filial brasileira com o astro Jim Morrison, eterno líder da banda The Doors. Uma resposta genial, em vários sentidos, pra uma pergunta trivial mas bem direcionada. E que me despertou várias dúvidas e uma única solução. Começo pela última.

O problema está resolvido e solucionado. Desisto de ser jornalista. A partir de agora. Por tempo indeterminado. Estudei num satélite engraçado, ao lado do Planetário. Lá fiz muitos parceiros e grandes amigos. Troquei muita informação. Me comuniquei, sabotei, subverti e mais dezessete ou vinte cinco outras coisas. No final do curso fui comunicado que o meu diploma poderia ser pego em uma semana lá no prédio da reitoria. Eu esperava mais pra um fim de faculdade. E não um pedaço de papel.

Passei oito anos na desgraçada cousa (digite no open office, no word ou no google os termos 'coiso' e 'cousa' e verá que nenhum deles sugere que a palavra esteja errada, portanto, elas existem). Não aprendi quase nada. Pouca coisa que talvez você não possa fazer. E coisos que qualquer pessoa é capaz de aprender facilmente.

Eu invejo algumas profissões: o médico que sabe operar um paciente, o engenheiro que constrói uma casa, a cientista que faz descobertas, o arqueólogo que nos revela o passado, a bióloga que cuida a vida de animais em extinção. Eles fazem o mundo; nós, jornalistas, apenas comunicamos uns aos outros sobre suas operações. É uma profissão que felizmente não precisa de diploma, e eu nunca fui contra isso. Não cabe requisito pra ser pombo correio. Sem asas a notícia não voa. Até nossa carta magna versa sobre a comunicação, proibindo qualquer tipo de licença ou censura que barre a livre expressão e comunicação.

A independência jornalística é linda e romântica, mas não enche a barriga. Optar por caminhos alternativos tem os piores efeitos colaterais. Você vive atrás da grana, e não consegue fazer jornalismo como sempre quis fazer, tipo mega entrevistas, ultra reportagens, importantes denúncias. Não há estrutura financeira, material, humana nem jurídica pra isso. Algumas vezes você até consegue fazer algo, seria mais uma exceção pra confirmar a regra. E o pior: se consegue, uma pequena parcela lhe vê, ouve ou lê, pois você não tem a mesma audiência e penetração dos grandes.

O caminho tradicional tem seus vícios de longa data. Você tem tudo que desejaria ter em sua própria redação: tecnologia e técnicos pra lhe dar suporte, motoristas e fotógrafos a lhe esperar prontamente pra cobrir sua pauta, secretária pra lhe servir o café e atender o telefone, produção com todos os contatos possíveis pra você requisitar, etc, além das monedas (não muitas) garantidas todo final de mês. Mas vira escravo, colabora com quem sempre combateu, e se tudo der certo, daqui a quarenta anos de fidelidade a empresa, assume o lugar do Lasier Martins. Antes disso, você vai tirar foto de cágados e pombas no parcão ou fazer previsão do tempo.

A classe também não anda bem. Tem gente boa por aí a produzir boas cousas. Mas me causa certa perplexidade alguns deles. Muitos jornalistas competentes, em época de eleições, se mostram extremamente intransigentes. É decepcionante observar colegas, antes tão aprofundados por um outro mundo possível, agora como cães de guarda do coronelismo que domina o país. Ai de você levantar a voz ou fazer qualquer crítica aos monarcas e ao populismo. Receberá rótulos, tais como “golpista”, termo em voga.

Inevitável eu tentar a sorte em outras panelas. Até hoje mandando chuva, caio de boca no fogão pra por fogo em tudo que possa ser cozido. Não deixarei de escrever. Investirei nas auto entrevistas, todas elas bem temperadas. O DILÚVIO muda de mãos, talvez de rumo, mas segue sua sofrida e heroica resistência. Como já dizia Antônio Conselheiro, “adeus povo, adeus árvores, adeus campos, aceitai minha despedida”. A revista e seus tentáculos já fazem parte da história do jornalismo independente e das comunidades virtuais. Roubo agora Agostinho Carrara, que sampleou o mártir da grande família brasileira, Getúlio Vargas: “saio da história pra entrar na vida”.

Enquanto isso, sigo minha leitura. A Rolling Stone pergunta a Jim Morrison se ele é católico. Ele responde:

Religião é como filosofia, algo a que você devota mais seu tempo. Pode ser uma mulher. Pode ser uma droga. Pode ser álcool. Pode ser dinheiro. Pode ser literatura. Creio que religião é a coisa na qual você mais pensa e trabalha. Estou meio que ligado ao ramo da arte e literatura... meus heróis são artistas e escritores.

Por duas vezes você disse que manipulou a imprensa com sucesso. O quanto desta entrevista foi manipulado?

Não se pode evitar o fato de que o que você diz poderia possivelmente aparecer impresso um dia, por isso você mantém isso em mente. Tenho tentado esquecer isso.

Há outro tema em que você gostaria de tocar?

Que tal... Podemos discutir o álcool? Só um diálogo rápido. Nada longo

Ok. Parte da mitologia diz que você bebe bastante.

Em um nível muito básico, amo beber. Mas não me consigo ver tomando leite ou água ou Coca-Cola. Isso estraga tudo pra mim. Você tem que ter vinho ou cerveja para completar a refeição.

Isso é tudo que você quer dizer?

Ficando bêbado... Você tem o controle completo até certo ponto. A escolha é sua, toda vez que toma um gole. Você tem uma porção de pequenas escolhas. É como... Acho que é a diferença entre suicídio e a rendição lenta...

O que isso quer dizer?

Não sei, cara. Vamos ali beber.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

[over12] O FILME PEDÓFILO PROIBIDO PELA XUXA



::txt::Arlei Arnt::
::info::R7::

Xuxa venceu uma ação contra o Google para não ter mais o seu nome vinculado à pedofilia no maior site de buscas do mundo.

Quem digitasse as palavras "Xuxa" e "pedófila" no Google teria acesso a 50.100 textos e vídeos e mais 21.400 fotos da apresentadora, de acordo com a coluna de Lauro Jardim na revista Veja. Parte desse material online era com a apresentadora nua ou em cenas de sexo, no polêmico filme que a apresentadora fez em 1982.

Não poderíamos perder a oportunidade de esculachar a rainha dos 'baixinhos'. Achamos o vídeo que foi banido das locadouras brasileiras. Assista abaixo ou clique AQUI

A liberdade de expressão ainda sobrevive!



[cc] O FATOR ABORTO NA CAMPANHA PRESIDENCIAL



::txt::Bruno Lima Rocha::

Este país nunca pára de surpreender, para pior.

Apesar de termos índices de violência altíssimos, o ato da soberania cidadã através do voto se vê sempre coagido por um conjunto de agentes com poderes de veto. Estes, nunca hesitam em exercer tal poder, por mais absurdo que seus enunciados pareçam. Tal é o caso dos neopentecostais e dos católicos carismáticos ou conservadores no quesito legalização ou descriminalização do aborto.

Desde o começo o termo e o tema foram mal empregados, jogando na confusão e nas manobras diversionistas alimentadas mediante a galvanização dos preconceitos embutidos no voto pobre e reacionário.

Para começar, é preciso dizer que não conheço ninguém “a favor do aborto”. As pessoas lúcidas defendem os direitos reprodutivos e o controle da mulher sobre seu próprio corpo.

Ninguém em sã consciência é um entusiasta do ato abortivo. Médico algum que cumpra o código de ética do oficio realiza um procedimento assim com entusiasmo.

A legalização do aborto tampouco implica na apologia da prática. Qualquer brasileiro adulto conhece um ou mais episódios de abortos arriscados ou em clínicas ilegais atingindo mulheres em distintas idades. É um problema de saúde pública e não de ordem moral. Ainda mais em se tratando de um país com costumes sexuais liberalizados como o nosso.

Por isso considero tratar-se de hipocrisia a pregação conservadora contra a legalização do aborto enquanto a linguagem publicitária e os programas de TV aberta tornam-se cada vez mais sexualmente apelativos.

É um absurdo preocupar-nos com o direito reprodutivo como um tabu e não nos escandalizarmos, enquanto sociedade, com a erotização da infância e da juventude e a conseqüente puberdade e gravidez precoce disseminada por vilas e periferias do Brasil.

Quanto a isto os pregadores não se manifestam, talvez porque a desestrutura das famílias humildes retroalimenta a fé como um mercado de expectativas desesperadoras. Obviamente esta relação mercadológica dá-se mediante significativa remuneração oriunda em sua maioria de famílias de baixa renda.

Mesmo sabendo ser o tema um tabu eleitoral, não posso evitar posicionar-me. Particularmente não posso crer no discurso de Dilma Rousseff (PT) e também de José Serra (PSDB) no assunto. São dois economistas e ex-ministros de Estado, ambos com formação científica e experiência na aplicação de políticas públicas, incluindo as de saúde. Ao se pronunciarem “contra o aborto e a favor da vida”, estão simplesmente atendendo seus marqueteiros e “jogando para a platéia”.

Por fim, confesso que a virulência do tema me assusta, em especial pela expectativa de médio prazo. Estaremos nós brasileiros, caminhando para disputas políticas como a dos EUA, pré-determinadas por grupos fundamentalistas cristãos? Qual será o próximo passo dos agentes político-religiosos com capacidades e poderes de veto? Vão fazer campanha pelo criacionismo como fator explicativo do surgimento do universo? Depois da demarcação de espaço e a imposição da pauta na campanha presidencial, daqui para frente abriu-se a porteira para o pior do agendamento reacionário.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

JORNALISMO É TROLL




::txt::Tiago Jucá Oliveira::
::troll::Arlei Arnt::
::info::Wikipedia e Robert Bond::
::ilstrç::Alfred Smedbergs::

Desde algum tempo O DILÚVIO vem praticado uma nova função jornalística, através de nossos perfis nas redes sociais. O vandalismo em questão acontece somente na rede e é conhecido como Troll, mais outro resíduo tecnológico.

A trollagem consiste em provocar discussões em fóruns e comunidades na internet. Ou você lança a polêmica no ar ou diverge sobre um assunto comentado anteriormente por outra pessoa. Após uma dessas provocações iniciais, o negócio é esperar pra ver quem será o infeliz que vai morder a isca. Como dizia o poeta, é peixe granfino!

Já as ações do troll após a pescaria (o verbo em inglês descreve uma técnica de pescar) se diferenciam em pelo menos umas outras quatro (veja mais abaixo). Porém, frequentemente demonstram um comportamento padrão. Numa definição geral de Robert Bond, “troll é alguém que posta sua opinião com a intenção de produzir um grande volume de respostas levianas”.

Por dias, tivemos as experiências mais inacreditáveis possíveis. Não vamos contar exatamente onde e com quem aconteceu os causos e coisos. Vamos preservar as identidades das pessoas e a privacidade de seus habitats virtuais. Mas cabe uma ressalva. Em todos os casos, não mudamos nosso ponto de vista sobre os temas debatidos. O que mudou foi apenas a maneira de debater, pois agimos tal qual um troll. Seguimos convictos de nossas convicções.

Nossa opinião sobre Lula, Yeda, Serra e Dilma continua a mesma bosta. E em época de eleição, com os ânimos a flor da pele, a pescaria fica melhor. Como dizia o Arlei, parceiro da jornada troll e idealizador da sacanagem, temos que nos valer do fato que só discutimos determinados assuntos quando temos razão, e a partir de argumentos bem embasados com umas pitadas de insultos desestabilizamos o emocional da vítima. Arlei, no xuxu beleza da tarde, soltou a pérola: “quando a isca ficar sem argumentos e/ou quando seus argumentos já não surgem mais efeitos, xingue; mas se você o levar a xingar antes, melhor ainda”.

Tem o caso de Medalha, que após perder o embate político, trouxe a tona uma frase pra defender sua candidata, no caso a Dilma: “Viva la revolución socialista!” Imaginei, de bate pronto, como seriam Che e Fidel brasileiros hoje, e surgiram os rostos de Temer e Sarney. Sem palavras pra argumentar, Medalha perdeu a compostura antes da gente, babou ofensas e desaforos, e ainda promoveu uma campanha contra O DILÚVIO no Facebook.

Outro exemplo de nossas ações se dá no campo da rivalidade futebolística. O bate-papo virtual é o melhor gramado pra trollar. O ideal é não chamar o rival pro confronto, mas, através dum nick name provocativo, despertar a ira adversária. Ele vai dizer algo, e você novamente provoca com algum dado estatístico constrangedor. Ao notar que o 'inimigo' começa a digitar, bloqueie pra impedir que chegue a mensagem dele. Depois duns dez minutos, desbloqueie, provoque e repita tudo isso outras tantas vezes. Depois fique a imaginar o outro lado bloqueado, imerso na raiva, sem poder enviar mensagem de volta.

Os causos são os mais variados, difícil contar tudo de uma vez sem prolongar demais sua leitura. Portanto só nos resta revelar que fazíamos um teste. Há tempos que observamos inúmeros trolls na internet. Porém, somente agora, após muita pesquisa, assumimos em definitivo nosso caráter de jornalismo troll.

Trolls do mundo inteiro, uni-vos! Jornalismo é trollagem.

NÃO ALIMENTE OS TROLLS

Antigamente, na mitologia escandinava, existia a lenda do Troll, um monstro rabugento que vive embaixo de uma ponte abordando passantes. Poderiam ser tanto como gigantes horrendos - como ogros - ou como pequenas criaturas semelhantes a goblins. Viviam em cavernas ou grutas subterrâneas. Na literatura nórdica, apareceram com várias formas, e uma das mais famosas teria orelhas e nariz enormes. Nesses contos também lhes foram atribuídas várias características, como a transformação dessas criaturas em pedra, quando expostas à luz solar.

Geralmente os troll são descritos como criaturas humanoides, não muito inteligentes. Às vezes são descritos como gigantes nórdicos ou algo semelhante aos ogros, seus tamanhos variando a depender da história. Vivem pouco, até os 75 anos, e atingem a idade adulta aos 30 anos; não vivem em bando e são muito agressivos. Poucos conheceriam uma língua diferente da sua - o triolla mûn. Alguns são mais estranhos e raros, como os trolls do subterrâneo, que seriam menos inteligentes do que seus primos, porém mais fortes e agressivos, atingindo entre 2,35 m a 3,45 m de altura. Embora não considerados inteligentes, eram temidos, pois acreditava-se que dominavam a arte da ilusão.

Acreditava-se que para combater trolls, havia uma regra eficiente: Não alimente os trolls. Na internet significava ignorar completamente alguém que se comporta como troll mesmo que a vontade de responder seja grande, para que ele morra por inanição. O fundamento dessa regra vem do fato de que se você discute com um troll, então ele já ganhou de você. Como um troll precisa de atenção para obter prazer e ser bem sucedido, ignorando um troll os usuários não apenas intimidariam seu ato como também provocariam profundo desgosto e frustração nele.

O problema é que, quanto maior o quórum da discussão, mais difícil de se realizar essa tarefa, pois em qualquer grupo de debate sempre haverá alguém que responda ao troll. Mesmo que ninguém responda, nada é mais fácil do que convocar um segundo troll para discutir. Recentemente tornou-se comum observar a invasão de fóruns por grupos de trolls em que alguns "defendem" um ponto de vista e outros "defendem" o ponto de vista oposto apenas para baixar o nível da discussão, utilizando-se de argumentos estereotipados, falaciosos ou ofensivos.

De acordo com o Wikipedia, há várias sistemáticas desenvolvidas por trolls para atuar num fórum de Internet, entre elas:

Jogar a isca e sair correndo: consiste em postar uma mensagem de polêmica grande já esperando uma grande reação de cadeia e flame war. Porém o troll não se envolve mais na discussão, some após a mensagem original e se diverte com a repercussão. Uma forma mais branda é postar noticias polêmicas (às vezes mensagens não-verídicas) só para observar a reação da comunidade.

Induzir a baixar o nível: alguns trolls testam a paciência dos interlocutores, induzem e persuadem a pessoa a perder o bom senso na discussão e apelar para baixaria e xingamentos. Com isso, o troll "queima o filme", consegue que a pessoa se auto-difame na comunidade por ter descido a um nível tão baixo.

Repetição de falácias: outro método usado que induz ao cansaço, aqui o troll repete seu conjunto de falácias até que leve seu interlocutor à exaustão, alegando depois ter vencido a discussão após o abandono do oponente.

Desfile intelectual: um troll pode ter um bom nível intelectual, vocabulário sofisticado diante de outros discursantes, desfilar referências e contradizer os argumentos dos rivais por conhecimento e pesquisa, muitas vezes expondo-os ao ridículo e questionando sua formação educacional.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

[noéspecial] QUANDO DEGOLARAM MINHA CABEÇA



::txt::Tiago Jucá Oliveira::

“Acorda Maria Bonita, levante e faça o café, que o dia já vem raiando e a puliça já tá de pé”. Como explicar que alguns compositores, em algumas músicas ou em trechos delas, tenham reencarnado a fala e até mesmo o pensamento de Lampião?

Há quem se comporte assim. Chico Science, como vimos na edição anterior, trazia o capitão cangaceiro como mártir, mas em certos momentos tomou o corpo de Lampião pra sua revolução estético-musical ficar mais eficaz. O cangaço pra justificar o manguebit.

O episódio da morte de Lampião e de quase todos de seu bando marcou a história do país, encerrando assim o ciclo do cangaço. Imagens de cabeças degoladas e expostas ao público após a emboscada povoam até hoje o imaginário popular.

Na letra de “Sangue de Bairro”, Chico toma o cérebro de Lampião, já decapitado, por mais um breve instante. Ele relata o nome de 24 cangaceiros do bando de Lampião, antes de tomar uma decisão: “quando degolaram minha cabeça, passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo e não sabia o que fazer; morrer, viver, morrer, viver!”.

O assalto ao corpo de Lampião não teve monopólio. Lirinha, líder do grupo Cordel do Fogo Encantado, também baixou o espírito do rei do cangaço. A canção “O Cordel Estradeiro” apresenta o local inóspito: “meu moxotó coroado, de xiquexique e facheiro, onde a cascavel cochila, na boca do cangaceiro”, para em seguida assumir sua personalidade: “eu também sou cangaceiro”, e, enfim, salientar o poder de sua peixeira agora reencarnada em versos: “e o meu cordel estradeiro, é cascavel poderosa. (…) é canção de lavadeira, peixeira de Lampião, as luzes do vagalume (…) pois meu verso é feito a foice, do cossaco cortar a cana”.

A curiosa relação sobre o poder do vagalume, mais brilhante na intensidade do horizonte da árida vegetação da caatinga, remete a própria morte de Lampião e Maria Bonita. Em entrevista à revista TPM, de março de 2001, Sila, mulher do cangaceiro Zé Sereno, ambos sobreviventes da tragédia de Angico, lembra que na noite de véspera da emboscada, ela e Maria Bonita conversavam no alto de uma ribanceira: “vi uma luz que acendia e apagava, até perguntei a ela se era uma lanterna. Ela disse que devia ser vagalume. Se eu tivesse descido e falado com Zé Sereno, não teria acontecido o que aconteceu”.

Em “Profecia Final (ou No Mais Profundo)”, Lirinha encarna o messiânico Antônio Conselheiro - “Adeus povo, adeus árvores, adeus campos, aceitai minha despedida” - antes de voltar a ser Rei do Cangaço. A letra contém trechos de uma famigerada carta enviada por Lampião em novembro de 1926 para o governador de Pernambuco, através de Pedro Paulo Magalhães Dias, inspetor da Esso que se fizera preso pelo bando, mas que fora liberado com a missão de entregar a carta. Nela, o rei do cangaço se auto proclama governador do sertão E apresentava uma “proposta que desejo fazer ao senhor para evitar guerra no sertão e acabar de vez com as brigas. Se o senhor estiver no acordo, devemos dividir nossos territórios”. Lampião queria limites, e Lirinha repetiu: “fico governando esta zona de cá, por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor do seu lado, governa do Rio Branco até a pancada do mar”, no Recife.

Coincidência ou não, Rio Branco, como era conhecida antes a cidade de Arcoverde, a porta de entrada pro sertão, é onde surgiu o Cordel do Fogo Encantado.

* este texto pode ser reencarnado. Domínio Público!

sábado, 9 de outubro de 2010

[agência pirata] O DIREITO Á PREGUIÇA

::txt::Paul Lafargue::

INTRODUÇÃO

O Sr. Thiers, no seio da Comissão sobre a Instrução Primária de 1849, dizia: “Quero tornar a influência do clero todo-poderosa, porque conto com ele para propagar esta boa filosofia que ensina ao homem que ele veio a este mundo para sofrer e não aquela outra filosofia que, pelo contrário, diz ao homem: ‘Goza’.” O Sr. Thiers formulava a moral da classe burguesa cujo egoísmo feroz e inteligência estreita encarnou.

A burguesia, quando lutava contra a nobreza, apoiada pelo clero, arvorou o livre exame e o ateísmo; mas, triunfante, mudou de tom e de comportamento e hoje conta apoiar na religião a sua supremacia econômica e política. Nos séculos XV e XVI, tinha alegremente retomado a tradição pagã e glorificava a carne e as suas paixões, que eram reprovadas pelo cristianismo; atualmente, cumulada de bens e de prazeres, renega os ensinamentos dos seus pensadores, os Rabelais, os Diderot, e prega a abstinência aos assalariados. A moral capitalista, lamentável paródia da moral cristã, fulmina com o anátema o corpo trabalhador; toma como ideal reduzir o produtor ao mínimo mais restrito de necessidades, suprimir as suas alegrias e as suas paixões e consumí-lo ao papel de máquina entregando trabalho sem tréguas nem piedade.

Os socialistas revolucionários têm de recomeçar o combate que os filósofos e os panfletários da burguesia já travaram; têm de atacar a moral e as teorias sociais do capitalismo; têm de demolir, nas cabeças da classe chamada à ação, os preconceitos semeados pela classe reinante; têm de proclamar, no rosto dos hipócritas de todas as morais, que a terra deixará de ser o vale de lágrimas do trabalhador: que, na sociedade comunista do futuro que fundaremos “pacificamente se possível, senão violentamente”, as paixões dos homens terão rédea curta, porque “todas são boas pela sua natureza, apenas temos de evitar a sua má utilização e os seus excessos” (1), e só serão evitadas pelo seu mútuo contrabalançar, pelo desenvolvimento harmônico do organismo humano, porque, diz o Dr. Beddoe, “só quando uma raça atinge o seu ponto máximo de desenvolvimento físico é que ela atinge o seu mais elevado nível de energia e de vigor moral”. Era esta também a opinião do grande naturista Charles Darwin (2)

A refutação do direito ao trabalho, que reedito com algumas notas adicionais, foi publicado no semanário L’Egalité de 1880, segunda parte.

Prisão de Sainte-Pélagie, 1883.
P. L.

NOTAS:
(1) Descartes, As Paixões da Alma.
(2) Doutor Beddoe, Memoirs of the Anthropological Society; Ch. Darwin, Descent of man.

I – UM DOGMA DESASTROSO

“Sejamos preguiçosos em tudo, exceto em amar e em beber, exceto em sermos preguiçosos.” LESSING

Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados, quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis, quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu, que não confesso ser cristão, economista e moralista, recuso admitir os seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões da sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, face às terríveis conseqüências do trabalho na sociedade capitalista.

Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma criadagem de bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas (1)
Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço de beleza nativa do homem, é preciso ir consumí-lo nas nações onde os preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o ódio ao trabalho. A Espanha, que infelizmente degenera, ainda se pode gabar de possuir menos fábricas do que nós prisões e casernas; mas o artista regozija-se ao admirar o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e flexível como uma haste de aço; e o coração do homem sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esburacada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em cujo país o animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravaturas (2) Os Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia dentro em breve conquistar. Os filósofos da antigüidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses:
O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit (3)

Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha:
”Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho.” (4)
Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade.

Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma necessidade orgânica? Os “Auvergnats”; os Escoceses, esses “Auvergnats” das ilhas britânicas; os Galegos, esses “Auvergnats” da Espanha; os Pomeranianos, esses “Auvergnats” da Alemanha; os Chineses, esses “Auvergnats” da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequeno-burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos pelo hábito nas suas lojas, mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e nunca se endireitam para olhar com vagar para a natureza.

E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos, esquecendo-se da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e terrível foi a sua punição. Todas as misérias individuais e sociais mereceram da sua paixão pelo trabalho.

NOTAS:
(1) Os exploradores europeus param espantados diante da beleza física e da atitude orgulhosa dos homens das tribos nômades primitivas, não manchadas pelo que Paeppig chamava o “bafo envenenado da civilização”. Ao falar dos aborígines das ilhas da Oceania, lorde George Champbell escreve: “No mundo não há povo que impressione mais à primeira vista. A sua pele lisa e de um tom ligeiramente acobreado, os seus cabelos louros e ondulados, o seu belo e alegre rosto, numa palavra, toda a sua pessoa formava uma nova e esplêndida amostra do genus homo; o seu aspecto físico dava a impressão de uma raça superior à nossa.” Os civilizados da Roma antiga, os Césares, os Tácitos, contemplavam com a mesma admiração os germanos das tribos comunistas que invadiam o Império Romano. – Tal como Tácito, Salviano, o padre do século V, a que chamaram o mestre dos bispos, apresentava os bárbaros como exemplo aos civilizados e aos cristãos: “Somos impudicos no meio do bárbaros, que são mais castos do que nós. Mais do que isso, os bárbaros ficam magoados com a nossa lascívia, os Godos não suportam que haja entre eles debochados da sua nação; entre eles, só os Romanos, pelo triste privilégio da sua nacionalidade e do seu nome, têm o direito de serem impuros. [A pederastia estava então em grande moda entre os pagãos e os cristãos...] Os oprimidos vão para junto dos bárbaros procurar a humanidade e um abrigo” (De Gubernatione Dei). – A velha civilização e o cristianismo nascente corromperam os bárbaros do velho mundo, tal como o cristianismo envelhecido e a moderna civilização capitalista corrompem os selvagens do novo mundo. O Sr. F. c Play, cujo talento de observador devemos reconhecer, mesmo quando se repelem as suas conclusões sociológicas, manchadas de prudhomismo filantrópico e cristão, diz no seu livro Les Ouvriers européens (“Os Operários Europeus”) (1885): “A propensão dos Bachkires para a preguiça [os Bachkires são pastores seminômades da vertente asiática dos Urais], as distrações da vida nômade, os hábitos de meditação que fazem nascer nos indivíduos mais dotados comunicam por vezes a estes uma distinção de maneiras, uma subtileza de inteligência e de Juízo que raramente se notam no mesmo nível social numa civilização mais desenvolvida... O que mais lhes repugna são os trabalhos agrícolas; fazem tudo exceto aceitar a profissão de agricultor.” De fato, a agricultura é a primeira manifestação do trabalho servil na humanidade. Segundo a tradição bíblica, o primeiro criminoso, Caim, é um agricultor.
(2) O provérbio espanhol diz: Descansar es salud (Descansar é saúde).
(3) Ó Melibeu, um Deus deu-nos esta ociosidade. Virgílio, conômico (Ver apêndice).
(4) Evangelho segundo São Mateus, cap. VI.

II- BÊNÇÃOS DO TRABALHO

Em 1770 apareceu em Londres um escrito anônimo intitulado: Essay on Trade and Commerce (1). Fez na época um certo barulho. O seu autor, grande filantropo, indignava-se pelo fato de a plebe manufatureira da Inglaterra ter metido na cabeça a idéia fixa de que na qualidade de Ingleses todos os indivíduos que a compunham terem, por direito de nascimento, o privilégio de serem mais livres e mais independentes do que os operários de qualquer outro país da Europa. Esta idéia pode ter a sua utilidade para os soldados cuja bravura estimula, mas quanto menos os operários das manufaturas dela estiverem imbuídos, tanto melhor para eles próprios e para o Estado. Os operários nunca deveriam considerar-se independentes dos seus superiores. É extremamente perigoso encorajar semelhantes manias num Estado comercial como o nosso, onde talvez sete oitavos da população tenham pouca ou nenhuma propriedade. A cura não será completa enquanto os nossos pobres da indústria não se resignarem a trabalhar seis dias pela mesma soma que eles ganham agora em quatro”.

Assim, cerca de um século antes de Guizot, pregava-se abertamente em Londres o trabalho como um travão às nobres paixões do homem.

“Quanto mais os meus povos trabalharem, menos vícios existirão, escrevia Napoleão de Osterode no dia 5 de Maio de 1807. Eu sou a autoridade [...] e estaria disposto a ordenar que ao domingo, passada a hora dos ofícios divinos, as lojas estivessem abertas e os operários fossem para o seu trabalho.”

Para extirpar a preguiça e curvar os sentimentos de orgulho e de independência que esta gera, o autor de Essay on Trade propunha encarcerar os pobres nas casas ideais do trabalho (ideal workhouses) que se tornariam “casas de terror onde se fariam trabalhar 14 horas por dia, de tal maneira que, subtraído o tempo das refeições, ficariam 12 horas de trabalho completas”.

Doze horas de trabalho por dia, eis o ideal dos filantropos e moralistas do século XVIII. Como ultrapassamos esse nec plus ultra! As oficinas modernas tornaram-se casas ideais de correção onde se encerram as massas operárias, onde se condena a trabalhos forçados, durante 12 e 14 horas, não só os homens, como também as mulheres e as crianças (2)

E dizer que os filhos dos heróis do Terror se deixaram degradar pela religião do trabalho ao ponto de aceitarem depois de 1848, como uma conquista revolucionária, a lei que limitava o trabalho nas fábricas a doze horas; proclamavam, como um princípio revolucionário, o direito ao trabalho. Que vergonha para o proletariado francês! Só escravos teriam sido capazes de uma tal baixeza. Seriam necessários vinte anos de civilização capitalista a um grego dos tempos heróicos para conceber um tal aviltamento.

E se as dores do trabalho forçado, se as torturas da fome se abateram sobre o proletariado, mais numerosas do que os gafanhotos da Bíblia, foi ele que as chamou.

Este trabalho, que em Junho de 1848 os operários reclamavam de armas na mão, impuseram-no eles às suas famílias; entregaram, aos barões da indústria, as suas mulheres e os seus filhos. Com as suas próprias mãos, demoliram o lar, com as suas próprias mãos, secaram o leite das suas mulheres; as infelizes, grávidas e amamentando os seus bebês, tiveram de ir para as minas e para as manufaturas esticar a espinha e esgotar os nervos; com as suas próprias mãos, quebraram a vida e vigor dos seus filhos. – Que vergonha para os proletários! Onde é que estão essas bisbilhoteiras de que falam as nossas trovas e contos antigos, ousadas nas afirmações, francas de boca, amantes da divina garrafa? Onde estão essas mulheres prazenteiras, sempre apressadas, sempre a cozinhar, sempre a cantar, sempre a semear a vida gerando a alegria, dando à luz sem dores filhos sãos e vigorosos?... Temos hoje as raparigas e as mulheres da fábrica, insignificantes flores de pálidas cores, com um sangue sem rutilância, com o estômago deteriorado, com os membros sem energia!... Nunca conheceram o prazer robusto e não seriam capazes de contar atrevidamente como quebraram a sua concha! E as crianças? Doze horas de trabalho para as crianças.

O miséria! – Mas todos os Jules Simon da Academia das Ciências Morais e Políticas, todos os Germiny da jesuitaria, não teriam podido inventar um vício mais embrutecedor para a inteligência das crianças, mais corruptor dos seus instintos, mais destruidor do seu organismo do que o trabalho na atmosfera viciada da oficina capitalista.

A nossa época é, dizem, o século do trabalho; de fato, é o século da dor, da miséria e da corrupção.

E, no entanto, os filósofos, os economistas burgueses, desde o penosamente confuso Augusto Comte até ao ridiculamente claro Leroy-Beaulieu; os intelectuais burgueses, desde o charlatanescamente romântico Victor Hugo até ao ingenuamente grotesco Peres de Kock, todos entoaram cantos nauseabundos em honra do deus Progresso, o filho mais velho do Trabalho. Ao ouvi-los, a felicidade ia reinar sobre a terra: já se sentia a sua chegada.. Iam aos séculos passados vasculhar o pó e a miséria feudais para trazerem sombrios contrastes às delícias dos tempos presentes. – Acaso nos fatigaram, esses saciados, esses satisfeitos, outrora ainda membros da domesticidade dos grandes senhores, hoje criados de pena da burguesia, generosamente alugados; acaso nos fatigaram com o camponês do retórico La Bruyere? Ora, eis o brilhante quadro dos prazeres proletários no ano do progresso capitalista de 1840, pintado por um dos deles, pelo Dr. Villermé, membro do Instituto, o mesmo que, em 1848, fez parte daquela sociedade de sábios (Tiers, Cousin, Passy, Blanqui, o acadêmico, estavam lá) que propagou nas massas os disparates da economia e da moral burguesa.

É da Alsácia manufatureira que fala Villermé, da Alsácia dos Kestner, dos Dolífus, essas flores da filantropia e do republicanismo industrial. Mas antes que o doutor esboce diante de nós o quadro das misérias proletárias, escutemos um manufatureiro alsaciano, o Sr. Th. Mieg, da Casa Dolífus, Mieg e C.ª, descrevendo a situação do artesão da antiga indústria:

“Em Mulhouse, há cinqüenta anos (em 1813, quando nascia a moderna indústria mecânica), os operários eram todos filhos do solo, que habitavam a cidade ou as aldeias próximas e possuíam quase todos uma casa e muitas vezes um pequeno terreno.” (3)

Era a idade de ouro do trabalhador. Mas então a indústria alsaciana não inundava o mundo com os seus tecidos de algodão e não tornava milionários os seus DolIfus e os seus Koechlin. Mas vinte e cinco anos depois, quando Villermé visitou a Alsácia, o minotauro moderno, a oficina capitalista tinha conquistado a região; na sua bulimia de trabalho humano, tinha arrancado os operários dos seus lares para melhor os torcer e para melhor espremer o trabalho que continham. Era aos milhares que os operários acorriam ao apito da máquina.

“Muitos, diz Villermé, cinco mil em dezessete mil, eram obrigados, pela carestia das rendas, a instalar-se nas aldeias vizinhas. Alguns habitavam a duas léguas e um quarto da manufatura onde trabalhavam.
Em Mulhouse, em Dornach, o trabalho começava às cinco horas da manhã e acabava às cinco horas da tarde tanto no Verão como no Inverno [...]. Era preciso vê-los chegar todas as manhãs à cidade e vê-los partir à noite. Há entre eles uma multidão de mulheres pálidas, magras, caminhando de pés descalços por cima da lama e que, à falta de guarda-chuva, trazem, atirados sobre a cabeça, quando chove ou neva, os aventais e as saias de cima para protegerem o rosto e o pescoço, e um número mais considerável de crianças pequenas não menos sujas, não menos pálidas e macilentas, cobertas de farrapos, todas engorduradas do óleo dos teares que lhes cai em cima enquanto trabalham. Estas últimas, melhor preservadas da chuva pela impermeabilidade das suas roupas, nem sequer têm no braço, como as mulheres de que acabamos de falar, um cesto onde estão as provisões do dia; mas trazem na mão, ou escondem debaixo do seu casaco ou como podem, o bocado de pão que os deve alimentar até à hora do seu regresso a casa.
Assim, à fadiga de um dia de trabalho excessivamente longo, visto que tem pelo menos quinze horas, vem juntar-se para estes desgraçados a das idas e vindas tão freqüentes, tão penosas. Daqui resulta que à noite chegam a suas casas oprimidos pela necessidade de dormir e que no dia seguinte saem antes de terem repousado completamente para se encontrarem na oficina à hora da abertura.”

Eis agora as espeluncas onde se amontoavam aqueles que habitavam na cidade:
”Vi, em Mulhouse, em Dornach e nas casas vizinhas, dessas miseráveis instalações onde dormiam duas famílias cada uma a seu canto, sobre a palha colocada sobre o tijolo e retida por duas tábuas... Esta miséria em que vivem os operários da indústria do algodão no distrito do Alto-Reno é tão profunda, que produz este triste resultado: enquanto que nas famílias dos fabricantes, mercadores de panos, diretores de fábricas, metade das crianças atinge os vinte e um anos, essa mesma metade deixa de existir antes mesmo de completar os dois anos nas famílias de tecelões e de operários de fábricas de fiação de algodão.”

Falando do trabalho da oficina, Villermé acrescenta:
”Não é um trabalho, uma tarefa, é uma tortura e infligem-na a crianças de seis a oito anos. [...] É esse longo suplício de todos os dias que mina sobretudo os operários nas fábricas de fiação de algodão.”

E, a propósito da duração do trabalho, Villermé observa que os forçados das galés só trabalhavam dez horas, os escravos das Antilhas uma média de nove horas, enquanto que existia na França que tinha feito a Revolução de 89, que tinha proclamado os pomposos Direitos do Homem, manufaturas onde o dia de trabalho era de dezesseis horas, nas quais davam aos operários uma hora e meia para as refeições (4).

O miserável aborto dos princípios revolucionários da burguesia! O lúgubre presente do seu deus Progresso! Os filantropos proclamam benfeitores da humanidade aqueles que, para se enriquecerem na ociosidade, dão trabalho aos pobres; mais valia semear a peste ou envenenar as fontes do que erguer uma fábrica no meio de uma povoação rústica. Introduzam o trabalho de fábrica, e adeus alegria, saúde, liberdade; adeus a tudo o que fez a vida bela e digna de ser vivida (5)

E os economistas continuam a repetir aos operários: Trabalhem para aumentar a fortuna social! E, no entanto, um economista, Destutt de Tracy, responde-lhes: nas nações pobres que o povo está à sua vontade; é nas nações ricas que de um modo geral ele é pobre.”

E o seu discípulo Cherbuliez continua:
”Os próprios trabalhadores, ao cooperarem na acumulação dos capitais produtivos, contribuem para o acontecimento que, mais tarde ou mais cedo, os deve privar de uma parte do seu salário.”

Mas, ensurdecidos e tornados idiotas pelos seus próprios berros, os economistas continuam a responder: Trabalhem, trabalhem sempre para criarem o vosso bem-estar! E, em nome da bondade cristã, um padre da Igreja Anglicana, o reverendo Townshend, prega: “Trabalhem, trabalhem noite e dia! Ao trabalharem, fazem crescer a vossa miséria e a vossa miséria dispensa-nos de vos impor o trabalho pela força da lei. A imposição legal do trabalho exige demasiado esforço, demasiada violência e faz demasiado estardalhaço; a fome, pelo contrário, não só é uma pressão calma, silenciosa, incessante, como também o móbil mais natural do trabalho e da indústria, ela provoca também os mais poderosos esforços.”

Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a fortuna social e as vossas misérias individuais, trabalhem, trabalhem, para que, tornando-vos mais pobres, tenham mais razão para trabalhar e para serem miseráveis. Eis a lei inexorável da produção capitalista.

Porque, ao prestarem atenção às insidiosas palavras dos economistas, os proletários se entregaram de corpo e alma ao vício do trabalho, precipitam toda a sociedade numa destas crises de superprodução que convulsionam o organismo social. Então, porque há superabundância de mercadorias e penúria de compradores, as oficinas encerram e a fome fustiga as populações operárias com o seu chicote com mil loros. Os proletários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, não compreendem que é o supertrabalho que infligiram a si próprios durante o tempo da pretensa prosperidade a causa da sua miséria presente, em vez de correrem ao celeiro de trigo e de gritarem: “Temos fome e queremos comer!... Sim, não temos nem uma moeda, mas, pobres como estamos, fomos nós quem ceifou o trigo e vindimou a uva... “ – Em vez de cercarem os armazéns do Sr. Bonnet de Jujureux, o inventor dos conventos industriais, e de clamar: “Sr. Bonnet, aqui estão as vossas operárias ovalistas (8), moulineuses (7), fiandeiras, tecedeiras, elas tremem de frio nos seus tecidos de algodão passajados de modo a condoer os olhos de um judeu e, no entanto, foram elas que fiaram e teceram os vestidos de seda das cocotes de toda a cristandade. As desgraçadas, trabalhando treze horas por dia, não tinham tempo de pensar na “toilette”, agora, elas estão desempregadas e podem ostentar um grande luxo com as sedas que trabalharam. Mal perderam os dentes de leite, dedicaram-se à sua fortuna e viveram na abstinência; agora, elas têm tempos de lazer e querem gozar um pouco dos frutos do seu trabalho. Vamos, Sr. Bonnet, entregue as suas sedas, o Sr. Harmel fornecerá as suas musselinas, o Sr. Pouyer-Quertier os seus paninhos, o Sr. Pinet as suas botinas para os seus queridos pezinhos frios e úmidos... Vestidas dos pés à cabeça, dar-vos-á prazer conômico-las. Vamos, nada de hesitações o Sr. é amigo da humanidade, não é verdade? E cristão ainda por cima! Ponha à disposição das suas operárias a fortuna que estas lhe construíram com a carne da sua carne. – É amigo do comércio? – Facilite a circulação das mercadorias; eis consumidores acabados de encontrar; abra-lhes créditos ilimitados. É obrigado a compor com negociantes que não conhece de parte nenhuma, que não lhe deram nada, nem sequer um copo de água. As suas operarias pagarão como puderem: se, no dia do vencimento, elas fogem e deixam protestar a letra, levá-las-á à falência e, se elas não tiverem nada para penhorar, exigirá que elas lhe paguem em orações: elas o conduzirão ao paraíso, melhor do que os seus sacos negros com o nariz cheio de tabaco.”

Em vez de se aproveitarem dos momentos de crise para uma distribuição geral de produtos e uma manifestação universal de alegria, os operários, morrendo à fome, vão bater com a cabeça contra as portas da oficina. Com rostos pálidos e macilentos, corpos emagrecidos, discursos lamentáveis, assaltam os fabricantes: “Bom Sr. Chagot, excelente Sr. Schneider, dêem-nos trabalho, não é a fome, mas a paixão do trabalho que nos atormenta!” E esses miseráveis, que mal têm forças para se manterem de pé, vendem doze e catorze horas de trabalho duas vezes mais barato do que quando tinham trabalho durante um certo tempo. E os filantropos da indústria continuam a aproveitar as crises de desemprego para fabricarem mais barato.

Se as crises industriais se seguem aos períodos de supertrabalho tão fatalmente como a noite se segue ao dia, arrastando atrás de si o desemprego forçado, e a miséria sem saída, também levam à bancarrota inexorável. Enquanto o fabricante tem crédito, solta a rédea à raiva do trabalho, faz empréstimos, volta a fazer empréstimos para fornecer matéria-prima aos operários. Tem de se produzir, sem refletir que o mercado se obstrui e que, se as mercadorias não chegarem a serem vendidas, as suas ordens de pagamento acabarão por se vencer. Encurralado, vai implorar ao Judeu, lança-se a seus pés, oferece-lhe o seu sangue, a sua honra. “Um bocadinho de ouro ser-lhe-ia mais útil, responde o Rothschild, tem 20 000 pares de meias em armazém, valem vinte soldos, compro-lhas por quatro soldos.” Obtidas as meias, o Judeu vende-as a seis e a oito soldos e embolsa as conômico moedas de cem soldos que não devem nada a ninguém: mas o fabricante recuou para melhor saltar. Chega finalmente o degelo e os armazéns despejam-se; lança-se então tanta mercadoria pelas janelas que não se sabe como é que elas entraram pela porta. É em centenas de milhões que se cifra o valor das mercadorias destruídas: no século passado, queimavam-nas ou lançavam-nas à água (8).

Mas antes de chegar a esta conclusão, os fabricantes percorreram o mundo à procura de colocação para as mercadorias que se amontoavam; forçam o seu governo a anexar Congos, a apoderar-se de Tonquim, a demolir com fogo dos canhões as muralhas da China, para aí darem saída aos seus tecidos de algodão. Nos séculos passados, era um duelo de morte entre a França e a Inglaterra para saber quem teria o privilégio exclusivo de vender na América e nas colônias. Milhares de homens jovens e vigorosos purpurearam os mares com o seu sangue durante as guerras coloniais dos séculos XV, XVI e XVII.

Os capitais abundam como as mercadorias. Os financeiros já não sabem onde conôm-los; vão então para as nações felizes que passeiam ao sol a fumar cigarros pôr caminhos de ferro, construir fábricas e importar a maldição do trabalho. E esta exportação de capitais franceses termina uma bela manhã em complicações diplomáticas: no Egito, a França, a Inglaterra e a Alemanha estavam prestes a agarrar-se pelos cabelos para saber quais os usurários que seriam pagos em primeiro lugar; em guerras no México para onde são enviados os soldados franceses exercerem a profissão de oficial de diligências para encobrir más dívidas (8).

Estas misérias individuais e sociais, por muito grandes e numerosas que sejam, por eternas que pareçam, desaparecerão como as hienas e os chacais à aproximação do leão, quando o proletariado disser: “Quero isso.” Mas para que ele venha a ter consciência da sua força, é preciso que o proletariado calque aos pés os preconceitos da moral cristã, econômica, livre-pensadora; é preciso que ele regresse aos seus instintos naturais, que proclame os Direitos da Preguiça, milhares de vezes mais nobres e sagrados do que os tísicos Direitos do Homem, digeridos pelos advogados metafísicos da revolução burguesa; que ele se obrigue a trabalhar apenas três horas por dia, a mandriar e a andar no regabofe o resto do dia e da noite.

Até aqui, a minha tarefa tem sido fácil, tinha apenas de descrever males reais que todos nós conhecemos muito bem infelizmente. Mas convencer o proletariado de que a palavra que lhe inocularam é perversa, que o trabalho desenfreado a que se dedica desde o início do século é o mais terrível flagelo que já alguma vez atacou a humanidade, que o trabalho só se tornará um condimento de prazer da preguiça, um exercício benéfico para o organismo humano, uma paixão útil ao organismo social, quando for prudentemente regulamentado e limitado a um máximo de três horas por dia, é uma tarefa árdua superior às minhas forças; só fisiologistas, higienistas, economistas comunistas poderão conômico-la. Nas páginas que se seguem, limitar-me-ei a demonstrar que, atendendo aos meios de produção modernos e à sua potência reprodutiva ilimitada, tem de se dominar a paixão extravagante dos operários pelo trabalho e conôm-los a consumir as mercadorias que produzem.

NOTAS:
(1)Um ensaio sobre o negócio e o comércio.
(2) No primeiro congresso de beneficência realizado em Bruxelas, em 1857, um dos mais ricos manufatureiros de Marquette, perto de Lilie, o Sr. Scrive, aplaudido pelos membros do congresso, contava com a mais nobre satisfação de um dever cumprido: “Introduzimos alguns meios de distração para as crianças. Ensinamo-lhe a cantar durante o trabalho, a contar também enquanto trabalham: isto distrai-as e faz-lhes aceitar com coragem aquelas doze horas de trabalho que são necessárias para lhes proporcionar os meios de existência” – Doze horas de trabalho, e que trabalho! impostas a crianças que não têm doze anos! – Os materialistas lamentarão sempre que não haja um inferno para nele pôr estes cristãos, esses filantropos, carrascos da infância!
(3) Discurso pronunciado na Sociedade Internacional de Estudos Práticos de Economia Social de Paris em Maio de 1863 e publicado em L’Economiste français da mesma época.
(4) L.-R. Villermé, Tableau de l’État Physique et Moral co Ouvriers dans les Fabriques de Coton, de Laine et de Soie (Quadro do Estado Físico e Moral dos Operários nas Fábricas de Algodão, de Lá e de Seda), 1840. Não era pelo fato dos Koechlin e de outros fabricantes alsacianos serem republicanos, patriotas e filantropos protestantes que tratavam desta maneira os seus operários; porque Blanqui, o acadêmico, Reybaud, o protótipo de Jerôme Paturot, e Jules Simon, o mestre Jacques político, constataram as mesmas amenidades para a classe operária nos fabricantes muito católicos e muito monárquicos de Lilie e de Lyon. Trata-se de virtudes capitalistas que se harmonizam às mil maravilhas com todas as convicções políticas e religiosas.
(5) Os índios das tribos guerreiras do Brasil matam os seus doentes e os seus velhos; testemunham a sua amizade acabando com uma vida que já não é animada por combates, por festas, por danças. Todos os povos primitivos deram aos seus estas provas de afeição: os Messagetas do mar Cáspio (Heródoto), bem como os Wens da Alemanha e os Celtas da Gália. Nas igrejas da Suécia, ainda há pouco se conservavam davas chamadas davas familiares que serviam para libertar os parentes das tristezas da velhice. Como estão degenerados os proletários modernos para aceitarem com paciência as terríveis misérias do trabalho de fábrica!
(6) Ovaliste: operário que torna as sedas ovais.
(7) Moulineur: operário que fia e torce mecanicamente Os fios de seda crua.
(8) No congresso industrial realizado em Berlim em 21 de Janeiro de 1879, avaliava-se em 568 milhares de francos o prejuízo que a indústria de ferro tinha sofrido na Alemanha durante a última crise.
(9) La Justice, do Sr. Clemenceau, na sua parte financeira, dizia a 6 de Abril de 1880: “Ouvimos defender a opinião de que, à exceção da Prússia, os milhares da guerra de 1870 foram igualmente perdidos pela França, e isto sob a forma de empréstimos periódica mente emitidos para o equilíbrio dos orçamentos estrangeiros; esta é também a nossa opinião.” Avalia-se em cinco mil milhões o prejuízo dos capitais ingleses nos empréstimos às Repúblicas da América do Sul. Os trabalhadores franceses não só produziram os cinco mil milhões pagos ao Sr. Bismarck, como continuam a servir os juros da indenização de guerra aos Oluvier, aos Girardin, aos Bazaine e outros portadores de títulos de rendimento que originaram a guerra e a derrota. No entanto, resta-lhes um prêmio de consolação: esses milhões não ocasionarão guerra de recuperação.

III – O QUE SE SEGUE À SUPERPRODUÇÃO

Um poeta grego do tempo de Cícero, Antiparos, cantava deste modo a invenção da azenha (para moer os cereais): ia emancipar as mulheres escravas e voltar a trazer a idade de ouro:
”Poupai o braço que faz girar a mó, ó moleiras, e dormi tranqüilamente! Que o galo vos avise em vão de que já é dia! co impôs às ninfas o trabalho das escravas e ei-las que saltitam alegremente sobre a roda e eis que o eixo agitado rola com os seus raios, fazendo rodar a pesada pedra rolante. Vivamos da vida dos nossos pais e ociosos regozijemo-nos dos dons que a deusa nos concede.”

Infelizmente, os tempos livres que o poeta pagão anunciava não vieram; a paixão cega, perversa e homicida do trabalho transforma a máquina libertadora em instrumento de sujeição dos homens livres: a sua produtividade empobrece-os.

Uma boa operária só faz com o fuso cinco malhas por minuto, alguns teares circulares para tricotar fazem trinta mil no mesmo tempo. Cada minuto à máquina equivale, portanto, a cem horas de trabalho da operaria; ou então cada minuto de trabalho da máquina dá à operária dez dias de repouso. Aquilo que se passa com a indústria de malhas é mais ou menos verdade para todas as indústrias renovadas pela mecânica moderna. Mas que vemos nós? A medida que a máquina se aperfeiçoa e despacha o trabalho do homem com uma rapidez e uma precisão incessantemente crescentes, o operário, em vez de prolongar o seu repouso proporcionalmente, redobra de ardor, como se quisesse rivalizar com a máquina. Ó concorrência absurda e mortal!

Para que a concorrência do homem e da máquina tomasse livre curso, os proletários aboliram as sábias leis que limitavam o trabalho dos artesãos das antigas corporações; suprimiram os dias feriados (1) Porque os produtores de então só trabalhavam cinco dias em sete, julgavam eles então, assim o contam os economistas mentirosos, que viviam só de ar e de água fresca? Ora vamos! Eles tinham tempos livres para gozar as alegrias da terra, para fazer amor, para se divertirem, para se banquetearem em honra do alegre deus da Mandriice. A triste Inglaterra, engaiolada no protestantismo, chamava-se então a “alegre Inglaterra” (Merry England).

Rabelais, Quevedo, Cervantes, os autores desconhecidos dos romances picarescos, fazem-nos crescer água na boca com as suas narrativas daquelas monumentais patuscadas (2) com que se regalavam então entre duas batalhas e duas devastações e nas quais tudo “era medido aos pratos”. Jordaens e a escola flamenga escreveram-nas nas suas alegres telas. Sublimes estômagos gargantuescos, que é feito de vós? Sublimes cérebros que abarcáveis todo o pensamento humano, que é feito de vós? Estamos muito diminuídos e muito degenerados. A vaca atacada de raiva, a batata, o vinho com fucsina e a aguardente prussiana sabiamente combinados com o trabalho forçado debilitaram os nossos corpos e diminuíram os nossos espíritos. E foi então que o homem encolheu o seu estômago e que a máquina alargou a sua produtividade, é então que os economistas nos pregam a teoria malthusiana, a religião da abstinência e o dogma do trabalho? Mas era preciso arrancar-lhes a língua e conô-la aos cães.

Porque a classe operária, com a sua boa fé simplista, se deixou doutrinar, porque, com a sua impetuosidade nativa, se precipitou cegamente para o trabalho e para a abstinência, a classe capitalista achou-se condenada à preguiça e ao prazer forçado, à improdutividade e ao superconsumo. Mas, se o supertrabalho do operário magoa a sua carne e atormenta os seus nervos, ele também é fecundo em dores para o burguês.

A abstinência à qual a classe produtiva se condena Obriga os burgueses a dedicarem-se ao superconsumo dos produtos que ela manufatura desordenadamente. No início da produção capitalista, há um ou dois séculos, o burguês era um homem ajuizado, de hábitos razoáveis e calmos; contentava-se com a sua mulher ou quase; bebia e comia moderadamente. Deixava aos cortesãos e às cortesãs as nobres virtudes da vida debochada. Hoje, não há filho de arrivista que não se julgue obrigado a desenvolver a prostituição e a mercurializar o seu corpo para dar um objetivo ao trabalho que os operários das minas de mercúrio se impõem; não há burguês que não se farte de capões trufados e de Laffitte navegado, para encorajar os criadores de La Fleche e os vinhateiros do Bordelais. Nesta profissão, o organismo deteriora-se rapidamente, os cabelos caem, os dentes descarnam-se até à raiz, o tronco deforma-se, o ventre entripa-se, a respiração complica-se, os movimentos tornam-se pesados, as articulações tornam-se anquilosadas, as falanges enodam-se. Outros, demasiado fracos para suportar as fadigas do deboche, mas dotados da bossa do prudhomismo, dessecam o seu cérebro como os Garnier da economia política, como os Acolias da filosofia jurídica, a elucubrar grossos livros soporíficos para ocupar os tempos livres dos compositores e dos tipógrafos.

As mulheres da alta sociedade têm uma vida de mártir. Para provarem e fazerem valer as “toilettes” feéricas que as costureiras se matam a fazer, andam de manhã à noite de um lado para o outro, de um vestido para outro; durante horas abandonam a sua cabeça oca aos artistas capilares que, a todo o custo, querem saciar a sua paixão pelos montões de postiços. Apertadas nos seus espartilhos, pouco à vontade nas suas botinas, decotadas de maneira a fazer corar um sapador, voltejam noites inteiras nos seus bailes de caridade para recolherem alguns soldos para os pobres. Santas almas!

Para desempenhar a sua dupla função social de não produtor e de superconsumidor, o burguês teve não só de violentar os seus gostos modestos, perder os seus hábitos de trabalho de há dois séculos e entregar-se a um luxo desenfreado, às indigestões trufadas e aos deboches sifilíticos, mas também teve de subtrair ao trabalho produtivo uma enorme massa de homens para conseguir ajudantes.

Eis alguns números que provam como é colossal essa diminuição de forças produtivas: de acordo com o recenseamento de 1861, a população de Inglaterra e do País de Gales compreendia 20066244 pessoas, das quais 9 776259 do sexo masculino e 10289965 do sexo feminino. Se deduzirmos os que são demasiado velhos ou demasiado novos para trabalhar, as mulheres, os adolescentes e as crianças improdutivas, em seguida as profissões ideológicas como por exemplo governantes, polícia, clero, magistratura, exército, prostituição, artes, ciências, depois as pessoas exclusivamente ocupadas a comer o trabalho de outrem sob a forma de renda fundiária, de juros, de dividendos, restam por alto oito milhões de indivíduos dos dois sexos e de todas as idades, incluindo os capitalistas que funcionam na produção, no comércio, na finança, etc. Nesses oito milhões contam-se:

Trabalhadores agrícolas (incluindo os pastores, os criados e criadas de lavoura que habitam na quinta) – 1098261
Operários de fábricas de conômi, de lã, de cânhamo, de linho, de seda, de malha – 642607
Operários de minas de conôm e de metal – 565 835
Operários metalúrgicos (alto-fornos, laminadores, ertc.) – 396998
Classe doméstica – 1 208648

“Se somarmos o número dos trabalhadores têxteis ao dos das minas de carvão e de metal, obteremos o total de 1 208442; se somarmos os primeiros e os das fábricas metalúrgicas, temos um total de 1 039 605 pessoas; ou seja, de ambas as vezes um número inferior ao dos modernos escravos domésticos. Eis o magnífico resultado da exploração capitalista das máquinas.” (3)

A toda esta classe doméstica, cuja grandeza indica o grau atingido pela civilização capitalista, tem de se acrescentar a numerosa classe dos infelizes exclusivamente dedicados à satisfação dos gostos dispendiosos e fúteis das classes ricas, lapidadores de diamantes, rendeiras, bordadoras, encadernadores de luxo, costureiras de luxo, decoradores das casas de recreio. (4)

Uma vez acocorada na preguiça absoluta e desmoralizada pelo prazer forçado, a burguesia, apesar das dificuldades que teve nisso, adaptou-se ao seu novo estilo de vida. Encarou com horror qualquer alteração. A visão das miseráveis condições de existência aceites com resignação pela classe operária e a da degradação orgânica gerada pela paixão depravada pelo trabalho aumentava ainda mais a sua repulsa por qualquer imposição de trabalho e por qualquer restrição de prazeres.
Foi precisamente então que, sem ter em conta a desmoralização que a burguesia tinha imposto a si própria como um dever social, os proletários resolveram infligir o trabalho aos capitalistas. conômic, tomaram a sério as teorias dos economistas e dos moralistas sobre o trabalho e maltrataram os rins para infligir a sua prática aos capitalistas. O proletariado arvorou a divisa: Quem não trabalha, não come; Lyon, em 1831, levantou-se pelo chumbo ou pelo trabalho, os federados de 1871 declararam o seu levantamento a revolução do trabalho.
A estes ímpetos de furor bárbaro, destrutivo de todo o prazer e de toda a preguiça burguesas, os capitalistas só podiam responder com uma repressão feroz, mas sabiam que, se tinham conseguido reprimir estas explosões revolucionárias, não tinham afogado no sangue dos seus gigantescos massacres a absurda idéia do proletariado de querer infligir o trabalho às classes ociosas e fartas, e foi para desviar essa infelicidade que se rodearam de pretorianos, de polícias, de magistrados, de carcereiros mantidos numa improdutividade laboriosa. Já não se podem ter ilusões sobre o caráter dos exércitos modernos, são mantidos em permanência apenas para reprimir “o inimigo interno”; e assim que os fortes de Paris e de Lyon não foram construídos para defender a cidade contra o estrangeiro, mas para o esmagar no caso de revolta. E se fosse preciso um exemplo sem réplica, citemos o exército da Bélgica, desse país de Cocagne do capitalismo; à sua neutralidade é garantida pelas potências européias e, no entanto, o seu exército é um dos mais fortes em proporção da população. Os gloriosos campos de batalha do bravo exército belga são as planícies do Borinage e de Charleroi, é no sangue dos mineiros e dos operários desarmados que os oficiais belgas ensangüentam as suas espadas e ganham os seus galões. As nações européias não tem exércitos nacionais, mas sim exércitos mercenários, que protegem os capitalistas contra o furor popular que os queria condenar a dez horas de mina ou de fábrica de fiação.
Portanto, ao apertar o cinto, a classe operária desenvolveu para além do normal o ventre da burguesia condenada ao superconsumo.

Para ser aliviada no seu penoso trabalho, a burguesia retirou da classe operária uma massa de homens muito superior à que continuava dedicada à produção útil e condenou-a, por seu turno, à improdutividade e ao superconsumo. Mas este rebanho de bocas inúteis, apesar da sua voracidade insaciável, não basta para consumir todas as mercadorias que os operários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, produzem como maníacos, sem os quererem consumir e sem sequer pensarem se se encontrarão pessoas para os consumir.
Em presença desta dupla loucura dos trabalhadores, de se matarem de supertrabalho e de vegetarem na abstinência, o grande problema da produção capitalista já não é encontrar produtores e multiplicar as suas forças, mas descobrir consumidores, excitar os seus apetites e criar-lhes necessidades fictícias. Uma vez que os operários europeus, que tremem de frio e de fome, recusam usar os tecidos que eles próprios tecem, beber os vinhos que eles próprios colhem, os pobres fabricantes, como espertalhões, devem correr aos antípodas para procurar quem os usará e quem os beberá: são centenas de milhões e de bilhões que a Europa exporta todos os anos para os quatro cantos do mundo, para populações que não têm nada que fazer com esses produtos (5) Mas os continentes explorados já não são suficientemente vastos, são necessários países virgens. Os fabricantes da Europa sonham noite e dia com a África, com o lago sariano, com o caminho de ferro do Sudão, seguem com ansiedade os progressos dos Livingstone dos Stanley, dos Du Chailiu, dos de Brazza; de boca aberta, escutam as histórias mirabolantes desses corajosos viajantes. Que maravilhas desconhecidas encerra o “continente negro”! Campos são plantados de dentes de elefantes, rios de óleo de coco arrastam no seu curso palhetas de ouro, milhões de cus negros, nus como o rosto de Dufaure ou de Girardin esperam pelos tecidos de algodão para aprenderem a decência, pelas garrafas de aguardente e pelas bíblias para conhecerem as virtudes da civilização.
Mas tudo é insuficiente: o burguês que se farta, a classe doméstica que ultrapassa a classe produtiva, as nações estrangeiras e bárbaras que se enchem de mercadorias européias; nada, nada pode conseguir dar vazão às montanhas de produtos que se amontoam maiores e mais altas do que as pirâmides do Egito: a produtividade dos operários europeus desafia todo o consumo, todo o desperdício. Os fabricantes, doidos, já não sabem que fazer, já não conseguem encontrar matéria-prima para satisfazer a paixão desordenada, depravada, que os seus operários têm pelo trabalho. Nos nossos distritos onde há lã, desfiam-se trapos manchados e meio podres, fazem-se com eles panos chamados de renascimento, que duram o mesmo que as promessas eleitorais; em Lyon, em vez de deixar à fibra sedosa a sua simplicidade e a sua flexibilidade natural, sobrecarregam-na de sais minerais que, ao acrescentarem-lhe peso, a tornam friável e de pouco uso. Todos os nossos produtos são adulterados para facilitar o seu escoamento e abreviar a sua existência. A nossa época será chamada a idade da falsificação, tal como as primeiras épocas da humanidade receberam os nomes de idade da pedra, idade de bronze, pelo caráter da sua produção. Os ignorantes acusam de fraude os nossos piedosos industriais, enquanto que na realidade o pensamento que os anima é o de fornecer trabalho aos operários, que não conseguem resignar-se a viver de braços cruzados. Estas falsificações, que têm como único móbil um sentimento humanitário, mas que rendem soberbos lucros aos fabricantes que as praticam, se são desastrosas para a qualidade das mercadorias, se são uma fonte inesgotável de desperdício de trabalho humano, provam a filantrópica habilidade dos burgueses e a horrível perversão dos operários que, para saciarem o seu vicio do trabalho, obrigam os industriais a abafar os gritos da sua consciência e até mesmo a violar as leis da honestidade comercial.
E, no entanto, apesar da superprodução de mercadorias, apesar das falsificações industriais, os operários atravancam o mercado em grandes grupos implorando: trabalho! trabalho! A sua superabundância devia conôm-los a refrear a sua paixão; pelo contrário, ela leva-a ao paroxismo. Mal uma possibilidade de trabalho se apresenta, logo se atiram a ela; então são doze, catorze horas que reclamam para estarem fartos até à saciedade e no dia seguinte ei-los de novo na rua, sem mais nada para alimentarem o seu vicio. Todos os anos, em todas as indústrias, os despedimentos surgem com a regularidade das estações. Ao supertrabalho perigoso para o organismo sucede-se o repouso absoluto durante dois ou quatro meses; e, não havendo trabalho, não há a ração diária. Uma vez que o vício do trabalho está diabolicamente encavilhado no coração dos operários; uma vez que as suas exigências abafam todos os outros instintos da natureza; uma vez que a quantidade de trabalho exigida pela sociedade é forçosamente limitada pelo consumo e pela abundância de matéria-prima, por que razão devorar em seis meses o trabalho de todo o ano? Porque não distribuí-lo uniformemente por doze meses e forçar todos os operários a contentar-se com seis ou cinco horas por dia, durante o ano, em vez de apanhar indigestões de doze horas durante seis meses? Seguros da sua parte diária de trabalho, os operários já não se invejarão, já não se baterão para arrancarem mutuamente o trabalho das mãos e o pão da boca; então, não esgotados de corpo e de espírito, começarão a praticar as virtudes da preguiça.

Embrutecidos pelo seu vício, os operários não conseguiram elevar-se à inteligência deste fato segundo o qual, para ter trabalho para todos era preciso conômi-lo como à água num navio em perigo. No entanto, os industriais, em nome da exploração capitalista, já há muito que pediram um limite legal do dia de trabalho. Perante a Comissão de 1860 sobre o ensino profissional, um dos maiores manufatureiros da Alsácia, o Sr. Bourcart, de Guebwiller, declarava:
”O dia de trabalho de doze horas era excessivo e devia ser reduzido para onze e aos sábados devia-se suspender o trabalho às duas horas. Posso aconselhar a adoção desta medida embora pareça onerosa à primeira vista; experimentamo-la nos nossos estabelecimentos industriais há já quatro anos e demo-nos bem e a produção média, longe de diminuir, aumentou.”

No seu estudo sobre as máquinas, o Sr. F. Passy cita a seguinte carta de um grande industrial belga, o Sr. M. Ottavaere:
”As nossas máquinas, embora sejam as mesmas que as das fábricas de fiação inglesas, não produzem o que deveriam produzir e o que produziriam essas mesmas máquinas em Inglaterra, embora as fábricas de fiação funcionem menos duas horas por dia. [...] Trabalhamos todos duas longas horas a mais, estou convencido de que, se trabalhássemos onze horas em vez de treze, teríamos a mesma produção e, por conseguinte, produziríamos mais economicamente. “

Por outro lado, o Sr. Leroy-Beaulieu afirma que “um grande manufatureiro belga observa muito bem que nas semanas em que calha um dia feriado a produção não é inferior às das semanas normais” (6).

Aquilo que o povo, logrado na sua ingenuidade pelos moralistas, nunca ousou, ousou-o um governo aristocrático. Desprezando as elevadas considerações morais e industriais dos economistas, que, como as aves de mau agouro, cacarejavam que diminuir uma hora ao trabalho das fábricas era decretar a ruína da indústria inglesa, o governo de Inglaterra proibiu por lei, estritamente observada, trabalhar mais de dez horas por dia; e, depois disso tal como antes, a Inglaterra continua a ser a primeira nação industrial do mundo.

Eis a grande experiência inglesa, eis a experiência de alguns capitalistas inteligentes, ela demonstra irrefutavelmente que, para reforçar a produtividade humana, tem de se reduzir as horas de trabalho e multiplicar os dias de pagamento e os feriados, e o povo francês não está convencido. Mas se uma miserável redução de duas horas aumentou em dez anos a produção inglesa em cerca de um terço (7), que ritmo vertiginoso imprimiria à produção francesa uma redução geral de três horas no dia de trabalho? Os operários não conseguem compreender que, cansando-se excessivamente, esgotam as suas forças antes da idade de se tornarem incapazes para qualquer trabalho; que absorvidos, embrutecidos por um único vício, já não são homens, mas sim restos de homens; que matam neles todas as belas faculdades para só deixarem de pé, e luxuriante, a loucura furiosa do trabalho.

Ah! como papagaios de Arcádia repetem a lição dos economistas: “Trabalhemos, trabalhemos para aumentar a riqueza nacional.” O idiotas! é porque trabalhais demais que a ferramenta industrial se desenvolve lentamente. Deixai de vociferar e escutai um economista; ele não é um águia, não é o Sr. L. Reybaud, que tivemos a felicidade de perder há alguns meses:
”De um modo geral, é na base das condições de mão-de-obra que se regula a revolução nos métodos de trabalho. Enquanto a mão-de-obra fornece os seus serviços a baixo preço, esbanjam-na; procuram conô-la quando os seus serviços se tornam mais caros.” (8)

Para forçar os capitalistas a aperfeiçoarem as suas máquinas de madeira e de ferro, é preciso elevar-se os salários e diminuir as horas de trabalho das máquinas de carne e osso. As provas? Podemos conômi-las às centenas. Na fábrica de fiação, o tear mecânico (self acting mule) foi inventado e aplicado em Manchester, porque os fiandeiros se recusavam a trabalhar tanto tempo como antes.

Na América, a máquina invadiu todos os ramos da produção agrícola, desde o fabrico da manteiga até à sacha dos trigos: porquê? Porque o Americano, livre e preguiçoso, preferiria morrer mil vezes a ter a vida bovina do camponês francês. A lavra, tão penosa na nossa gloriosa França, tão rica de aguamentos, é, no Oeste americano, um agradável passatempo ao ar livre que se pratica sentado, fumando descuidadamente o seu cachimbo.

NOTAS:
(1) No Antigo Regime, as leis da Igreja garantiam ao trabalhador 90 dias de descanso (52 domingos e 38 dias feriados) durante os quais era estritamente proibido trabalhar. Era o grande crime do catolicismo, a causa principal da irreligião da burguesia industrial e comercial. Na Revolução, mal esta foi senhora da situação, aboliu os dias feriados e substituiu a semana de sete dias pela de dez. Libertou os operários do jugo da Igreja para melhor os submeter ao jugo do trabalho. O ódio pelos dias feriados só aparece quando a moderna burguesia industrial e comerciante ganha corpo, entre os séculos XV e XVI. Henrique IV pediu a sua redução ao Papa; este recusou, porque “uma das heresias que correm atualmente diz respeito às festas” (carta do cardeal d’Ossat). Mas, em 1666, Perefixe, arcebispo de Paris suprimiu 17 na sua diocese. O protestantismo, que era a religião cristã adaptada às novas necessidades industriais e comerciais da burguesia, preocupou-se menos com o descanso popular; destronou no céu os santos para abolir na terra as suas festas. A reforma religiosa e o livre pensamento filosófico não eram senão pretextos que permitiram à burguesia jesuíta e voraz escamotear os dias de festa do popular.
(2) Estas festas pantagruélicas duravam semanas. Don Rodrigo de Lara ganha a sua noiva expulsando os Mouros de Calatrava-a-velha e o Romancero narra que:

Las bodas fueron en Burgos,
Las tornabodas en Salas:
En bodas y tornabodas
Passaron siete semanas
Tantas vienen de las gentes,
Que no caben por las plazas...

(As bodas foram em Burgos, o regresso das bodas em Salas; em bodas e regresso de bodas passaram sete semanas; acorrem tantas pessoas que não cabem nas praças...) Os homens destas bodas de sete semanas eram os heróicos soldados das guerras da independência.
(3) Karl Marx, O Capital, t. III.
(4) “A proporção segundo a qual a população de um pais é empregada como doméstica, ao serviço das classes abastadas, indica o seu progresso em riqueza nacional e em civilização.)” (R. M. Martin, Ireland before and after the Union, 1818.) Gambetta, que negava a questão social, depois de já não ser advogado pobre do Café Procope, queria certamente referir-se a essa classe doméstica sempre crescente quando ele reclamava o advento das novas camadas sociais.
(5) Dois exemplos: o governo inglês, para agradar aos países indianos que, apesar das fomes periódicas que desolam o país, teimam em cultivar a dormideira em vez de arroz ou de trigo, viu-se obrigado a empreender guerras sangrentas para impor ao governo chinês a livre introdução do ópio indiano. Os selvagens da Polinésia, apesar da mortalidade que daí adveio, viram-se obrigados a vestirem-se e a embriagarem-se à inglesa para consumirem os produtos das destilarias da Escócia e das tecelagens de Manchester.
(6) Leroy-Beaulieu, La Question Ouvriere au XIV siecle, 1872.
(7) Eis, segundo o célebre estatístico R. Giffen, do Departamento de Estatística de Londres, a progressão crescente da riqueza nacional da Inglaterra e da Irlanda em:
1814 – ela era de 55 mil milhões de francos
1865- 162,5 mil milhões de francos
1875- 212,5 mil milhões de francos
(8) Louis Reybaud, c Coton, son conôm, co Problêmes, 1863.

IV – PARA NOVA MÚSICA, NOVA CANÇÃO

Se, diminuindo as horas de trabalho, se conquista para a produção social novas forças mecânicas, obrigando os operários a consumir os seus produtos, conquistar-se-á um enorme exército de forças de trabalho. A burguesia, liberta então da sua tarefa de consumidor universal, apressar-se-á a licenciar a barafunda de soldadas, de magistrados, de vigaristas, de proxenetas, que retirou do trabalho útil para a auxiliar a consumir e a desperdiçar. É então que o mercado do trabalho ficará a transbordar, é então que será necessária uma lei de ferro para proibir o trabalho: será impossível encontrar trabalho para este bando de anteriores improdutivos, mais numerosos do que os piolhos da madeira. E a seguir a eles será necessário pensar em todos aqueles que proviam as suas necessidades e gostos fúteis e dispendiosos. Quando já não houver mais lacaios e generais a quem dar galões, mais prostitutas livres e casadas para cobrir de rendas, mais canhões para furar, mais palácios para construir, será necessário impor, através de leis severas, às operárias e aos operários de passamanaria, de rendas, de ferro, de construção civil, higiênicos passeios em escaler e os exercícios coreográficos para o restabelecimento da sua saúde e o aperfeiçoamento da sua raça. Desde que os produtos europeus consumidos no local não sejam transportados para o diabo, será preciso que os marinheiros, as tripulações, os camionistas se sentem e aprendam a passar o tempo na ociosidade. Os bem-aventurados Polinésios poderão então entregar-se ao amor livre sem recear os pontapés da Vênus civilizada e os sermões da moral européia.

Há mais. Para encontrar trabalho para todos os não valores da sociedade atual, para deixar a ferramenta industrial desenvolver-se indefinidamente, a classe operária deverá, tal como a burguesia, violentar os seus gostos abstinentes e desenvolver indefinidamente as suas capacidades consumidoras. Em vez de comer por dia uma ou duas onças de carne dura, quando a comer, comerá alegres bifes de uma ou duas libras; em vez de beber moderadamente mau vinho, mais papista que o papa, beberá grandes e profundos copázios de bordéus, de conômic, sem batismo industrial, e deixará a água para os animais.

Os proletários meteram na cabeça infligir aos capitalistas dez horas de forja e de refinaria; eis o grande erro, a causa dos antagonismos sociais e das guerras civis. Será necessário não impor o trabalho mas proibi-lo. Será permitido aos Rothschild e aos Say provarem que foram durante toda a sua vida perfeitos velhacos; e se eles jurarem que querem continuar a viver como perfeitos velhacos, apesar do arrebatamento geral pelo trabalho, serão registados e, nas respectivas câmaras, receberão todas as manhãs uma moeda de vinte francos para os seus pequenos prazeres. As discórdias sociais desaparecerão. Os que vivem dos rendimentos, os capitalistas, serão os primeiros a unir-se ao partido popular, uma vez convencidos de que, longe de se lhes querer mal, se pretende pelo contrário conô-los do trabalho de superconsumo e de desperdício pelo qual foram esmagados desde o seu nascimento. Quanto aos burgueses incapazes de provar os seus títulos de velhacos, conô-los-ão seguir os seus instintos: existe um número suficiente de profissões nojentas para os colocar Dufaure limparia as latrinas públicas; Galliffet assassinaria os porcos sarnosos e os cavalos inchados; os membros da comissão das graças, enviados a Poissy (1), marcariam o bois e os carneiros para abater; os senadores, ligados às pompas fúnebres, farão de gatos-pingados. Para outros, encontrar-se-ão profissões à altura da sua inteligência. Lorgeril e Broglie rolharão as garrafas de champanhe, mas seriam amordaçados para não se embriagar; Ferry, Freycinet, Tirard, destruiriam os percevejos e os vermes dos ministérios e de outros albergues públicos No entanto, será necessário por os dinheiros públicos fora do alcance dos burgueses por se recear os hábitos adquiridos.

Mas tirar-se-á uma dura e longa vingança dos moralistas que perverteram a natureza humana, beatos falsos, santarrões, hipócritas “e outras seitas de pessoas como estas que se disfarçaram para enganar o mundo. Porque, dando a entender ao popular comum que não se ocuparam senão em contemplações e devoção, em jejuns e macerações da sensualidade, senão realmente para sustentar e alimentar a pequena fragilidade da sua humanidade: pelo contrário, zombam. E Deus sabe de que maneira! Et conôm simulant sed Bacchnalia vivunt (2). Podeis lê-lo em grandes letras e em iluminuras nos seus focinhos vermelhos e no seu ventre saliente, quando não se perfumam de enxofre” (3).

Nos dias de grandes festas populares, onde, em vez de comerem pó como nos 15 de Agosto e nos 14 de Julho dos burgueses, os comunistas e os coletivistas fizeram andar as garrafas e os presuntos e voar as taças, os membros da Academia das Ciências Morais e Políticas, os padres de vestes longas e curtas da igreja econômica, católica, protestante, judaica, positivista e livre pensadora, os propagadores do malthusianismo e da moral cristã, altruísta, independente ou submetida, vestidos de amarelo, segurarão na vela até se queimarem os dedos e viverão em fome junto das mulheres gaulesas e das mesas carregadas de carnes, de frutos e de flores e morrerão de sede juntos dos tonéis destapados. Quatro vezes por ano, quando as estações mudarem, tal como aos cães dos amoladores ambulantes, conômi-los-ão nas grandes rodas e durante dez horas conôm-los-ão a moer vento. Os advogados e os legistas sofrerão a mesma pena.

Num regime de preguiça, para matar o tempo que nos mata segundo a segundo, haverá sempre espetáculos e representações teatrais; é um trabalho adotado especialmente para os nossos burgueses legisladores. conômic-los-emos em bandos que percorrem as feiras e as aldeias, dando representações legislativas. Os generais, com botas de montar, o peito agaloado de atacadores, de crachás, de cruzes da Legião de honra, irão pelas ruas e pelas praças, recrutando as boas pessoas. Gambetta e Cassagnac, seu compadre, farão a pantominice da porta. Cassagnac, em fato de gala de mata-mouros, revirando os olhos, torcendo o bigode, cuspindo a estopa inflamada, ameaçará todos com a pistola do pai e cairá num buraco mal lhe mostrem um retrato de Luílier; Gambetta discorrerá sobre a política externa, sobre a pequena Grécia que o endoutoriza e largará fogo à Europa para roubar a Turquia; sobre a grande Rússia que o estultifica com a compota que ela promete fazer com a Prússia e que deseja a oeste da Europa feridas e inchaços para enriquecer a leste e estrangular o niilismo no interior; sobre o Sr. Bismarck, que foi bastante bom para lhe permitir que se pronunciasse sobre a anistia... depois, desnudando a sua vasta barriga pintada a três cores, tocará nela a chamada e enumerará os deliciosos animaizinhos, as verdelhas, as trufas, os copos de Margaux e de Yquem que tragou para encorajar a agricultura e manter alegres os eleitores de Belleville.

Na barraca, começar-se-á pela Farsa Eleitoral.

Diante dos eleitores com cabeças de madeira e orelhas de burro, os candidatos burgueses, vestidos como palhaços, dançarão a dança das liberdades políticas, limpando a face e o posfácio com os seus programas eleitorais de múltiplas promessas e falando com lágrimas nos olhos das misérias do povo e com voz de bronze das glórias da França; e as cabeças dos eleitores gritam em coro e solidamente: hi han! hi han!

Depois começará a grande peça: O Roubo dos Bens da Nação.

A França capitalista, enorme fêmea, de face peluda e de crânio calvo, deformada, com carnes flácidas, balofas, deslavadas, com olhos sem vida, ensonada e bocejando, está reclinada num canapé de veludo; a seus pés, o Capitalismo industrial, gigantesco organismo de ferro, com uma máscara simiesca, devora mecanicamente homens, mulheres, crianças, cujos gritos lúgubres e terríveis enchem o ar; a Banca com focinho de fuinha, com corpo de hiena e mãos de harpia, rouba-lhe habilmente do bolso as moedas de cem soldos. Hordas de miseráveis proletários descarnados, escoltados por gendarmes, de sabre desembainhado, expulsos pelas fúrias que os zurzem com os chicotes da fome, trazem para os pés da França capitalista montes de mercadorias, barricas de vinho, sacos de ouro e de trigo. Langlois, com os calções numa mão, o testamento de Proudhon na outra, o livro do orçamento entre os dentes, põe-se à frente dos defensores dos bens da nação e monta a guarda. Uma vez depostos os fardos, mandam expulsar os operários à coronhada e a golpes de baioneta e abrem a porta aos industriais, aos comerciantes e aos banqueiros.

De cambolhada, eles precipitam-se sobre o monte, tragando tecidos de algodão, sacos de trigo, lingotes de ouro, despejando pipas; sem poderem mais, sujos, nojentos, ficam prostrados nos seus excrementos e nos seus vômitos... Então ribomba o trovão, a terra agita-se e entreabre-se, surge a Fatalidade histórica; com o seu pé de ferro ela esmaga as cabeças daqueles que soluçam, cambaleiam, caem e já não podem fugir, e com a sua grande mão derruba a França capitalista, estupefata e suando de medo.

Se, desenraizando do seu coração o vício que a domina e avilta a sua natureza, a classe operária se erguesse com a sua força terrível, não para reclamar os Direitos do Homem, que não são senão os direitos da exploração capitalista, não para reclamar o Direito ao Trabalho, que não é senão o direito à miséria, mas para forjar uma lei de bronze que proíba todos os homens de trabalhar mais de três horas por dia, a Terra, a velha Terra, tremendo de alegria, sentiria saltar nela um novo universo... Mas como pedir a um proletariado corrompido pela moral capitalista uma resolução viril?

Tal como Cristo, a triste personificação da escravatura antiga, os homens, as mulheres, as crianças do Proletariado sobem penosamente há um século o duro calvário da dor: desde há um século que o trabalho forçado quebra os seus ossos, magoa as suas carnes, dá cabo dos seus nervos; desde há um século que a fome torce as suas entranhas e alucina os seus cérebros!... Ó Preguiça, tem piedade da nossa longa miséria! Ó Preguiça, mãe das artes e das nobres virtudes, sê o bálsamo das angústias humanas!

NOTAS:
(1) Poissy: Prisão Central.
(2) Simulam ser Curius e vivem como nas Bacanais (Juvenal).
(3) Pantagruel, t. II, Cap. LXXIV.

APÊNDICE

Os nossos moralistas são pessoas muito modestas; se inventaram o dogma do trabalho, duvidam da sua eficácia para tranqüilizar a alma, regozijar o espírito e manter o bom funcionamento dos rins e outros órgãos; querem experimentar a sua utilização nos populares, in anima vili antes de o voltar contra os capitalistas, cujos vícios têm como missão desculpar e autorizar.
Mas, filósofos de quatro tostões a dúzia, porquê preocupardes-vos assim a elucubrar uma moral cuja prática não ousais aconselhar aos vossos senhores? O vosso dogma do trabalho, do qual vos mostrais tão orgulhosos, quereis vê-lo escarnecido, amaldiçoado? Abramos a história dos povos antigos e os escritos dos seus filósofos e dos seus legisladores.

“Não posso afirmar, diz o pai da história, Heródoto, que os Gregos receberam dos Egípcios o desprezo que têm pelo trabalho, porque encontro o mesmo desprezo estabelecido entre os Trácios, os Citas, os Persas e os Lídios; numa palavra, por que, na maior parte dos bárbaros, aqueles que aprendem as artes mecânicas e até mesmo os seus filhos são considerados como os últimos cidadãos.. – Todos os Gregos foram educados nestes princípios, especialmente os conômicoa.” (1)

“Em Atenas, os cidadãos eram verdadeiros nobres que só se deviam ocupar da defesa e da administração da comunidade, como os guerreiros selvagens de onde tinham origem. Devendo, portanto, estar livres todo o tempo para velar, com a sua força intelectual e física, pelos interesses da República, encarregavam os escravos de todo o trabalho.
O mesmo sucedia com a conômicoa, onde até as mulheres não deviam nem fiar nem tecer para não se furtarem à sua nobreza.” (2)

Os Romanos só conhecem duas profissões nobres e livres, a agricultura e as armas; todos os cidadãos viviam por direito à custa do Tesouro, sem poderem ser obrigados a prover à sua subsistência por nenhum dos sordidae artes (designavam assim os misteres) que pertenciam por direito aos escravos. Brutus, o Velho, para levantar o povo, acusou sobretudo Tarquínio, o tirano, de ter feito dos artesãos e dos pedreiros cidadãos livres (3).

Os filósofos antigos discutiam entre si sobre a origem das idéias, mas estavam de acordo se se tratava de abominar o trabalho.

“A natureza, diz Platão, na sua utopia social, na sua Republica modelo, a natureza não fez nem o sapateiro nem o ferreiro; essas ocupações degradam as pessoas que as exercem, vis mercenários, miseráveis sem nome que pelo seu próprio estado são excluídos dos direitos políticos. Quanto aos mercadores acostumados a mentir e a enganar, só serão suportados na cidade como um mal necessário. O cidadão que se tiver aviltado pelo comércio será perseguido por esse delito. Se se provar a acusação, será condenado a um ano de prisão. A punição será duplicada em cada reincidência.” (4)

No seu conômico, Xenofonte escreve:
”As pessoas que se dedicam aos trabalhos manuais nunca são elevadas a altos cargos e é razoável. Condenadas na sua grande parte a estar sentadas todo o dia, algumas mesmo a suportar um fogo contínuo, não podem deixar de ter o corpo alterado e é muito difícil que o espírito não se ressinta disso. “

“Que pode sair de honroso de uma loja? – confessa Cícero – e o que é que o comércio pode produzir de honesto? Tudo o que se chama loja é indigno de um homem honesto [...] uma vez que os mercadores não podem ganhar sem mentir, e o que há de mais vergonhoso do que a mentira? Portanto, deve-se encarar como algo de baixo e de vil o mister de todos aqueles que vendem o seu esforço e a sua indústria, porque todo aquele que dá o seu trabalho por dinheiro vende-se a si mesmo e põe-se ao nível dos escravos.” (5)

Proletários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, compreendeis a linguagem destes filósofos, que escondem de vós com cioso cuidado: - Um cidadão que dá o seu trabalho em troca de dinheiro degrada-se ao nível dos escravos, comete um crime, que merece anos de prisão?

A hipocrisia cristã e o utilitarismo capitalista não tinham pervertido estes filósofos das Repúblicas antigas; dirigindo-se a homens livres, expunham ingenuamente o seu pensamento. Platão, Aristóteles, esses pensadores gigantes, cujos calcanhares os nossos Cousin, os nossos Caro, o nossos Simon só podem atingir pondo-se nas pontas dos pés, queriam que os cidadãos das suas Repúblicas ideais vivessem na maior ociosidade, porque, acrescentava Xenofonte, “o trabalho tira todo o tempo e com ele não há nenhum tempo livre para a República e para os amigos”. Segundo Plutarco, o grande título de Licurgo, “o mais sábio dos homens” para admiração da posteridade, era ter concedido a ociosidade aos cidadãos da República proibindo-os de exercer qualquer mister (6) .

Mas, responderão os Bastiat, os Dupanloup, os Beaulieu e companhia da moral cristã e capitalista, esses pensadores, esses filósofos preconizavam a escravatura. – Perfeitamente, mas acaso podia ser de outro modo atendendo às condições econômicas e políticas da sua época? A guerra era o estado normal das sociedades antigas; o homem livre devia dedicar o seu tempo a discutir os assuntos de Estado e a velar pela sua defesa, os misteres eram então demasiado primitivos e demasiado grosseiros para que, ao praticá-los, se pudesse exercer a profissão de soldado e de cidadão; para possuírem guerreiros e cidadãos, os filósofos e os legisladores deviam tolerar os escravos nas Repúblicas heróicas. – Mas os moralistas e os economistas do capitalismo não preconizam o salariado, a escravatura moderna? E a que homens concede a escravatura capitalista a ociosidade? – Aos Rothschild, aos Schneider, às Sr.as Boucicaut, inúteis e prejudiciais, escravos dos seus vícios e dos seus criados.

“O preconceito da escravatura dominava o espírito de Pitágoras e de Aristóteles”, escreveu-se desdenhosamente; e no entanto Aristóteles previa que “se cada utensílio pudesse executar sem intimação, ou então por si só, a sua função própria, tal como as obras-primas de Dédalo se moviam por si mesmas ou tal como os tripés de Vulcano que se punham espontaneamente ao seu trabalho sagrado; se, por exemplo, as lançadeiras dos tecelões tecessem por si próprias, o chefe de oficina já não teria necessidade de ajudantes, nem o senhor de escravos”.

O sonho de Aristóteles é a nossa realidade. As nossas máquinas a vapor, com membros de aço, infatigáveis, de maravilhosa e inesgotável fecundidade, realizam por si próprias docilmente o seu trabalho sagrado; e, no entanto, o gênio dos grandes filósofos do capitalismo continua a ser dominado pelo preconceito do salariado, a pior das escravaturas. Ainda não compreendem que a máquina é o redentor da humanidade, o Deus que resgatará o homem das sórdidas artes e do trabalho assalariado, o Deus que lhe dará tempos livres e a liberdade.

NOTAS:
(1) Heródoto, t. II, trad. Larcher, 1876.
(2) Biot, De l’Abolition de l’Esclavage conôm en Occident, 1840.
(3) Tito Lívio, L. 1.
(4) Platão, Repúblicas, 1. V.
(5) Cícero, co Devoirs, 1, tít. II, cap. XLII.
(6) Platão, República, V e As Leis, III; Aristóteles, Política, II e VII; Xenofontes, conômico, IV e VI; Plutarco, Vida de Licurgo.

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