Porto Alegre - Jamal Juma é um ativista que todos os que fazem parte do mundo do Fórum Social Mundial, em todos os continentes, conhecem. E admiram. Ele é coordenador de um movimento social de resistência não violenta à ocupação israelense, materializada no Muro de Anexação de territórios palestinos, o que começou a ser erguido há pouco mais de dez anos, na Cisjordânia. Sujeito tranquilo, pacifista intransigente, foi preso em fins de 2009 sob a acusação (ou seja, a falta dela) de que estaria plantando oliveiras e liderando marchas de protesto contra o Muro. Se tem alguma evidência do quanto a democracia israelense está corroída, é a prisão de Jamal: mais de dez dias numa sela com vômito e fezes, sem acusação formal, sem processo, pelo fato de ser um pacifista, isto mesmo, de resistir sem violência. A sua libertação se deu graças à pressão internacional mobilizada por Maren Mantovani, ativista italiana e coordenadora de relações internacionais do Stop The Wall, que mora em Ramalah há dez anos. Foi preciso que sete embaixadores interviessem no Knesset, o parlamento israelense, para obrigar Israel a libertar o ativista.
Em janeiro de 2010, num vídeo, Jamal cumprimentou os participantes de uma das edições do FSM, em Porto Alegre . Ele tinha, então, acabado de sair da prisão. Estava abatido, mas sorridente. Nos Fóruns anteriores, ele parecia ainda mais otimista. Defendia que a única saída para os problemas oriundos do expansionismo sionista era a retomada da solução de um estado para dois povos, uma bandeira pacifista originária dos partidos comunistas europeus, na década de sessenta.
Ontem, aqui em Porto Alegre, Jamal parecia mudado. Ele chegou depois de nossa longa conversa com Ronnie Kasrils, sentou-se à mesa e começou imediatamente a falar. Disse que as coisas estavam muito piores, na região, que tinha havido recrudescimento, que Israel seguia de maneira incontrolada com os assentamentos, que a população estava sem esperanças. Perguntei-lhe sobre as expectativas para amanhã (hoje, dia 29/11), quando a Autoridade Nacional Palestina apresentará o projeto de reconhecimento da Palestina como estado observador, na Assembleia Geral das Nações Unidas, e tudo está a indicar que será reconhecida como tal.
“Não tenho expectativas. Não vai mudar nada. Não significa coisa alguma em relação à ocupação e ao muro. E o problema é a ocupação, esse é o maior dos problemas. A aprovação na ONU não vai mudar isso. A ONU fracassou, a comunidade internacional fracassou conosco”. Perguntei-lhe o que pensava sobre as declarações dos membros da diplomacia do Fatah, de que esse reconhecimento seria um primeiro passo para que Israel recue para as fronteiras da linha verde (1967), e ele foi enfático: disse que não acreditava nisso, que uma solução diplomática a partir da comunidade internacional, e não a partir da sociedade civil palestina, não iria demover Israel de sua política expansionista.
Não fiz a pergunta que gostaria de ter feito: a sua posição sobre a solução de dois estados mudou? Agora você defende dois estados, e não mais um só estado? Jamal tem razão em não responder a essas perguntas. “Eu estou aqui para discutir as condições de qualquer debate sobre estado, diplomacia, ONU, Lei Internacional, que Israel não cumpre, mesmo. Estou aqui para falar do que há de mais fundamental, que é o reconhecimento dos direitos do povo palestino”, disse Jamal, em tom grave.
Fracassos da diplomacia, intifadas e expansionismo israelense
Se o movimento diplomático não trará frutos quanto à ocupação e se a população está sem esperanças, sobretudo depois deste último ataque israelense a Gaza, não estaríamos diante de uma terceira intifada? Qual o risco de uma terceira intifada e qual seria a diferença desta intifada em relação às outras? A resposta veio na hora:
“Já estamos caminhando para a terceira intifada, é inevitável isso. A população não aguenta mais. Pagamos duas vezes o preço da água, que nos é racionada, de uma água que é nossa, de nosso território, que foi usurpado, enquanto os assentados vivem em abundância, alguns com piscina em casa, jogando água fora, pagando menos”. Ronnie Kasrils, que estava sentado ao lado de Jamal, olha para mim e diz: “Isto é muito pior do que o apartheid. E repete: é inacreditável, mas é verdade. Eu vi com meus olhos, quando estive lá, como ministro”. Por que a proposta palestina na ONU é inútil? Jamal responde que o muro separou vilas, cidades, famílias, que desagregou comunidades inteiras, que recortou populações e que não é uma votação na ONU que vai desfazer o dano causado.
Comentei que a segunda intifada ocorreu há pouco mais de dez anos, quando também começou a instalação do muro de concreto em territórios ocupados. Observei a diferença fundamental entre a primeira e a segunda intifada e perguntei qual seria a característica dessa terceira intifada, que ele aponta como provável e de certa forma já em curso. “A primeira intifada foi um levante popular, e as crianças e adolescentes começaram a jogar pedras após a operação ‘quebra ossos’, comandada, preste atenção nisso, por Yitzhak Rabin. Os militares israelenses chegavam perto dos adolescentes e batiam em seus braços, quebrando os seus ossos, com o objetivo único de amedrontar, calar as bocas e aterrorizá-los. Estávamos em 1987 e a resposta não tardou, eclodiu a primeira intifada, que foi um levante sobretudo contra as lideranças locais, palestinas, que nada faziam diante dessa humilhação. A resposta israelense foi brutal: ataques aéreos sobre ruas cheias de gente, indiscriminadamente. Foi uma repressão tão violenta que sufocou o caráter popular das manifestações”.
Daí vieram os Acordos de Oslo, eu disse. Que Israel não cumpriu, porque não desocupou nada e, numa operação deliberada de provocação, Ariel Sharon deu início a segunda intifada, retrucou Jamal, mais ou menos com essas palavras. A segunda intifada foi caracterizada, do lado palestino, pela figura do homem bomba palestino, pelo fortalecimento do Hamas, sobretudo na Faixa de Gaza e pelo consequente enfraquecimento político do Fatah. Do lado israelense, a resposta à segunda intifada foi especialmente brutal: ataques aéreos em resposta às explosões dos homens bomba, sistematização da demolição de casas e da intensificação das construções nos assentamentos e a precarização e discriminação da cidadania dos árabes israelenses, sobretudo os moradores de Jerusalém. Mas o seu aspecto mais duradouro e medonho foi e segue sendo o erguimento do muro do apartheid, como os movimentos sociais palestinos e de solidariedade à resistência palestina passaram a chamar, e que Israel chama de Muro de contenção de terroristas.
São mais de 700 quilômetros de extensão, ladeados por uma faixa de 60 metros de largura, denominada unilateralmente de “zona de exclusão” e incorpora territórios palestinos. Vai sem dizer que, se os governos de Israel dizem a verdade, isto é, que o Muro é uma medida para contenção da infiltração de terroristas e homens-bomba, e não uma medida para anexar à força mais territórios palestinos, não tem justificativa moral para seguir nas construções ilegais, comportando-se como um estado pária em relação à comunidade internacional.
Segundo Jamal, de 2002 para cá, após a construção do muro de anexação, o que houve foi a intensificação dos assentamentos e das construções. Além do incentivo à imigração, do subsídio às construções de condomínios novos em territórios palestinos, um novo elemento foi introduzido, como que para dar suporte ideológico ao expansionismo: líderes, a maior parte rabinos, cujo papel é incentivar a crença teocrática no destino daqueles territórios. “Um dos rabinos, mostrando-se bastante compreensivo, chegou a dizer que os palestinos tinham feito um grande favor ao povo judeu, de cultivar aquelas terras e de prepara-las, para que, quando nós chegássemos, pudéssemos desfrutá-la. Isso foi obra de deus, disse ele”, ironizou o ativista palestino. Perguntei se a percepção de que Israel estaria fomentando uma espécie de “cinturão” de assentados fundamentalistas procedia. “Não”, respondeu. Segundo Jamal, apenas 20% dos assentados são ortodoxos ou fundamentalistas. “O resto são imigrantes do Leste Europeu e da Rússia, que chegaram mais recentemente, empobrecidos e que se tornam cativos do discurso fundamentalista no mais das vezes para manter as suas casas, mas não significa que sejam religiosos. São trabalhadores, que foram incentivados a vir para Israel, a viver em nosso território como se fosse deles”.
O impacto da primavera árabe sobre a terceira intifada
E se a terceira intifada está por vir, se é inevitável que ecloda, qual seria a sua característica, em comparação com as outras duas? Fiz essa pergunta porque, entre a explosão da segunda intifada e a véspera da votação do reconhecimento da palestina como estado observador, na ONU, passaram-se mais de dez anos de Fóruns Sociais mundo afora e isso fortaleceu e disseminou a questão palestina , mobilizando organizações em todos os continentes, o que deu uma outra dimensão ao drama palestino e arregimentou muito mais apoio e solidariedade internacional. Eu perguntei mais ou menos isto: na segunda intifada, os palestinos não tinham vocês. Será que agora, dez anos depois, com a dimensão internacional que a questão palestina ganhou, não mudou nada? “Sim”, respondeu.
“Mudou muita coisa. Mas nós somos um povo que vive sob ocupação há cem anos”, respondeu, altivo. Nós aprendemos muito com a ocupação britânica, com as políticas colonialistas de dividir para conquistar, dos ingleses e, de sessenta anos para cá, com a brutalidade sionista, acrescentou Jamal. Foi como se tivesse me dito que não dá para olhar o drama dos palestinos com base nos últimos dez anos, que não é o movimento por ele também criado, não é a resistência pacífica e não violenta que explicariam, isoladamente, um processo de opressão, renegação e exclusão territorial de um século.
Ronnie Kasrils interrompe Jamal e pede que ele volte a falar do que seria a terceira intifada, de quais seriam, na sua opinião, as suas características. “Acredito que a terceira intifada, sobretudo após esse último ataque de Israel a Gaza, será mais parecida com a primeira, terá um caráter mais popular”. Marco Weissheimer então perguntou se a Primavera Árabe, que resultou na mudança de poder no Egito e na Tunísia, explicaria essa característica, de um levante mais popular, socialmente enraizado. Jamal responde que sim, a mudança no Egito e na Tunísia, que enviaram ministros a Gaza, logo que começou o último ataque israelense à região e ofereceram ajuda aos palestinos que vivem encarcerados a céu aberto, como lembrou, estabeleceu uma mudança importante no estado das coisas.
Os palestinos saíram do isolamento a que o próprio mundo árabe parece tê-los condenado, e isso implica mudanças nas ações políticas e de resistência não violenta, mas Jamal também mudou. Em contraste com o otimismo de Kasrils, o ativista palestino não demonstra otimismo com o dia de amanhã, para os palestinos.
#CADÊ MEU CHINELO?
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
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