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quarta-feira, 10 de agosto de 2011

[agência pirata] PUNK IS NOT DEAD: LONDRES ESTÁ QUEIMANDO




::txt::Cristiano Viteck::

Desde o final de semana, os ingleses e o mundo assistem atônitos os atos de violência, vandalismo, furto e destruição que tomaram conta das ruas de Londres após um homem de 29 anos ter sido morto em uma operação policial. A barbárie se espalhou para outras cidades, enquanto autoridades políticas e policiais agem como moscas tontas para tentar conter a rebelião, sem muito sucesso até o momento.

Também surpreende a desorientação com que a imprensa trata do assunto. Como de costume, a horda de trogloditas que está levando pânico às ruas são simplesmente tratados como vândalos se divertindo em período de férias escolares. Não que não sejam, mas a classificação é pobre e burra demais por não se abrir à percepção dos reais motivos de tamanha revolta.

Nos noticiários de hoje pela manhã, pela primeira vez as notícias sobre as manifestações vieram com um pouco mais de consistência informativa. Embora mascarados, começaram a ser identificados esses baderneiros até então sem rosto. Enfim, os ingleses estão se dando conta de que a morte que teria dado início a toda essa confusão foi apenas o estopim que detonou um cenário sócio-econômico pra lá de explosivo.

Atualmente, cerca de 1 milhão de jovens ingleses estão desempregados. Grande parte deles não tem acesso ao sistema educacional. Nesse ambiente, drogas e sexo fácil se proliferam, motivados pela alienação e total descrença em um futuro melhor. Ao mesmo tempo, essa massa de homens-nada é bombardeada pela propaganda que incentiva e associa ao status social o consumo de roupas caras, celulares e aparelhos eletrônicos sofisticados, por exemplo, sem que ela tenha qualquer possibilidade de adquiri-los. Uma geração perdida que poucos turistas enxergaram quando foram abanar bandeirinhas do Reino Unido pelas ruas de Londres durante o casamento do príncipe William e a plebeia Kate.

Impossível não fazer a ligação da situação vivida esta semana na Inglaterra com o que acontecia naquele país em meados dos anos 70, e que ajudou a formatar um dos movimentos político-culturais mais significativos do século XX: o punk.

Há cerca de 35 anos, os ingleses viviam situação semelhante à de hoje. Escreveu Paul Friedlander, em seu livro “Rock and Roll: uma história social” (Editora Record, 2002, p. 354) que naquele cenário:

Surgiu um crescente segmento de jovens de classes menos favorecidas que se mostravam insatisfeitos com a falta de oportunidades econômica e educacional na Inglaterra. Empregos e salários decentes não estavam disponíveis e o acesso às escolas só era permitido às classes mais privilegiadas, forçando vários jovens operários a desistir da educação. Esta juventude desiludida cada vez mais numerosa vislumbrava um futuro de subsistência à custa do sistema de previdência social britânico. Os jovens perceberam que para eles não havia futuro, e por isso se revoltaram”.

Dessa massa de inconformados da década de 70, muitos foram para as ruas protestar, fazer greves, promover quebra-quebras. Outros, além disso, também manifestaram sua indignação através da arte (principalmente o rock) e do estilo de vida punk, que tinham como uma das premissas básicas a revolta contra a esquerda e a direita e um niilismo latente que se manifestava na falta de respeito ao patrimônio e desobediência às autoridades em favor da total liberdade individual.

Duas entre as centenas de bandas punks inglesas surgidas nos anos 70 são emblemáticas: os Sex Pistols e o Clash. A primeira, uma verdadeira máquina de caos, que tinha como premissa a ofensa a tudo e a todos e que musicalizava e verbalizava sua revolta em canções como “Anarchy in the UK” (Não sei o que quero mas/Eu sei como conseguir/ Eu quero destruir todos os transeuntes porque /Eu quero ser a anarquia) ou “No Feelings” (Sem sentimentos por ninguém/Exceto por mim mesmo, pela minha bela pessoa, querida).

Mas é na canção “God Save The Queen” que os Sex Pistols, mais do que provocar a ira da família real inglesa e grande parte da população inglesa, conseguiram fazer um retrato realista e cruel da sociedade britânica da metade dos anos 70:

Deus salve a rainha/ O regime fascista dela/ Fez de você um retardado/ Uma bomba H em potencial/ Deus salve a rainha/ Ela não é um ser humano/ Não há futuro/ Nos sonhos da Inglaterra/ (…) Quando não há futuro/ Como pode haver pecado?/ Nós somos as flores na lixeira/ Nós somos o veneno na sua máquina humana/ Nós somos o futuro/ Seu futuro

Mais profícua e consistente no discurso rebelde era a banda The Clash, que em várias canções pregou justamente a utilização da força para, se não mudar, pelo menos manifestar indignação à situação vivida na época. O próprio nome do grupo (Clash também significa confronto) já dava a tônica da postura do grupo, que não deixava qualquer dúvida de seus ideais em canções como a visionária “London’s Burning” (Londres está queimando com o tédio agora), “Hate and War” (Ódio e guerra/Eu tenho vontade de sobreviver/ Eu engano se eu não conseguir ganhar/ Se alguém me deixa de lado/ Eu chuto à minha volta) ou “Guns of Brixton” (Quando a lei entrar à força/ Como você vai agir?/ Deitado no chão/ Ou esperando uma briga mortal/ Vocês podem nos esmagar/ Vocês podem nos machucar/ Mas vão ter que responder para/ Os atiradores de Brixton).

E se o lema do Clash era o confronto, a banda fez da música “London Calling” a convocação para a pancadaria:

Londres chamando todas as cidades distantes/ Agora a guerra está declarada e a batalha começa/ Londres chamando o submundo/ Saiam todos do armário, garotos e garotas/ (…) A era do gelo está vindo, o sol está sumindo/ Máquinas param de funcionar e o trigo está rareando/ Um erro nuclear mas não temo/ Porque Londres está sendo inundada e eu/ Eu vivo perto do rio

O movimento punk inglês original teve uma existência efêmera que pode ser considerada entre 1975-1979, com uns anos a mais ou menos dependendo do ponto de vista. Mas no geral foi isso. O punk, acreditava-se, havia virado coisa de butique. E as próprias ideias e estímulos ao confronto, tão presentes nas canções de Sex Pistols e Clash, eram vistos como poesia datada. Hoje, vendo o que acontece em Londres, fica a sensação de que elas eram proféticas.

A horda que hoje põe cidades inglesas em pânico talvez nem se dê conta que um dia existiu o punk e bandas como essas duas. Talvez seus inspiradores da rebeldia sejam os gagsta rappers, autores anarquistas do momento ou coisa assim. Mas, as motivações e modos de agir entre aquela e a atual geração de descontentes da sociedade inglesa são as mesma. Mais do que o discurso, é a manifestação violenta que é usada para chamar a atenção sobre uma situação que já estava em ebulição e que definitivamente entornou o caldo no último final de semana.

Craig O’Hara escreveu no livro “A Filosofia do Punk: mais do que barulho” (Radical Livros, 2005, p. 92-93) que “não é a devoção a um conjunto fixo de normas de protesto que pode mudar a sociedade, mas o uso apropriado de táticas para alcançar objetivos. Às vezes a violência é necessária, às vezes ela é contraprodutiva.

Antes que me acusem de apologista da violência, que fique claro que nem de longe pretendo fazer isso ou dizer que acho justo ou não a pancadaria que come solta em Londres. Tento apenas mostrar que por trás da atitude das autoridades e da mídia de reduzir a interpretação aos protestos a simples atos de vândalos que depredam e roubam roupas de grife e celulares, pode estar uma tentativa de esconder causas bem mais profundas, que talvez nem os próprios manifestantes consigam explicar.

Talvez ajam apenas por impulso, alimentados por um ódio há muito guardado e que tem origem na sensação de alienação social e econômica em que vivem. E nessas horas, é perfeitamente compreensível a máxima punk de que “se você não tem nada, então não tem nada a perder”. Para quem vive assim, é até meio que natural sair às ruas com pedras nas mãos porque, como profetizou o grupo Clash, “a guerra está declarada” e “Londres está chamando”.

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