#CADÊ MEU CHINELO?
domingo, 15 de abril de 2012
[agência pirata] CRIOLO
::txt::Caetano Veloso::
Um dia vinha ouvindo rádio no carro e Jorge Ben cantou “Cadê Teresa?”. Adoro essas músicas de Jorge para Teresa, Domingas, Teresinha, Domenica, Tetê-Teteretê, todas essas mulheres que são a mesma loura paulistana com quem ele se casou. Na canção ele busca sua amada e, sem saber por onde ela anda, se pergunta se ela não terá arranjado “outro crioulo”. Naquele dia eu tinha lido numa manchete que Rick Santorum teria quase chamado Obama de “crioulo”, num discurso de campanha. Imaginei que a palavra que assim traduziam fosse “nigger” e senti múltiplas revoltas. Conferi na página indicada e, de fato, “nigger” era o que o candidato republicano tinha começado a dizer. Ou isso se supunha. Pensei que Santorum poderia ter feito isso para mostrar à parte reacionária fanática do Partido Republicano, que é a que o apoiava, que ele estava a ponto de pronunciar o xingamento que ela tem preso na garganta.
Seja como tenha sido, terminei pensando mais na tradução oferecida pelo jornal brasileiro (pode ter sido este) do que na história em si. Fazia uns três dias que eu comentara com meu filho Zeca sobre a impropriedade de se traduzir “nigger” por “crioulo” nas legendas dos filmes americanos que passam na TV. Ao me ouvir dizer que “crioulo” não tinha essa conotação pejorativa de “nigger”, ele mostrou dúvidas. Mas o fato é que não há em português brasileiro nenhuma palavra que indique ao mesmo tempo aspecto racial e desqualificação absoluta automática. A palavra “crioulo” cantada por Jorge Ben tem toda a doçura natural e a carga afirmativa que um xingamento não pode ter, a não ser por uma torção, como quando chamamos alguém admirável de filho da puta.
Os negros americanos se chamam de “nigger” entre si, com carinho, como quem toma o que foi sempre usado como ofensa por brancos contra si e vira pelo avesso, mas ninguém que não seja negro (e não esteja na mesma onda de quem profere a palavra) tem o direito de fazê-lo. Nos raps, eles se chamam de “nigger” como chamam as garotas de “bitch”. Ouço muitos veados brasileiros chamarem uns aos outros de “veado”, mostrando intimidade e carinho: não é o mesmo que um ogro passar na rua e te chamar de veado. Mas “crioulo” nunca esteve nessa posição. Quando Jorge Ben fala de crioulo, não há sombra, nem remota, de tratamento ofensivo. Suponho que as legendas dos filmes venham contribuindo para o progresso do nosso racismo. Progresso tão desejado pelos racialistas. Mas por que foi essa a palavra escolhida por Drei Marc e cia.?
Quando era novo, eu não gostava do “Samba do crioulo doido”. Sentia (ainda sinto) racismo ali dentro daquela gracinha meio sem-graça de Sérgio Porto. Aliás, Paulo Francis, num artigo de sua coluna na “Folha de S.Paulo”, narrou um diálogo racista que teve com Porto por causa da presença de pretos nas praias da Zona Sul (não leio essas antologias que saem das crônicas de Francis, mas parece que essas desmunhecadas racistas não são selecionadas pelos organizadores, já que nunca ouvi comentários a respeito). A caricatura do samba-enredo feita ali nunca me pareceu engraçada. Lembrei-me dela ao ouvir as letras das canções dos blocos afro de Salvador declamadas com sarcástica pedanteria pelo grupo teatral Os Catedrásticos. O que faz esse grupo é, a meu ver, muito melhor do que o samba de Stanislaw: eles dizem “a sério” letras de músicas de carnaval da Bahia, para o irresistível efeito cômico. “Abre a rodinha, por favor”, dito em tom sóbriodramático fica sensacional. As descrições de egitos e madagascares dos sambas-reggae do Olodum parecem mais nonsense do que a famosa paródia. Mas nesses casos, sempre surge uma frase que se sustenta por si mesma em sua força épica — e o riso some. É que são as letras que foram escritas a sério que estão ali sendo ridicularizadas. E a seriedade que lhes é pano de fundo leva o espectador a pensar que Moreno cantando “Deusa do Ébano 2” é que desnuda mais o sentido do repertório desses blocos.
O charmoso rapper paulista tomou para si o pseudônimo de Criolo Doido, enobrecendo tanto cada uma das duas palavras quanto a união delas na piada amarela de Sérgio. (Este, não nos esqueçamos, de cara desgostou da bossa nova). Criolo é o nome derivado de crioulo, palavra que, segundo pude sentir no livrão “Um defeito de cor” (recomendado por Millôr), era usada para designar os negros nascidos no Brasil. Estes mostravam superioridade sobre os africanos que chegavam: seu domínio do português, seu conhecimento do cristianismo, tudo isso eram coisas que os envaideciam. Nos países de língua espanhola das Américas, “criollo” designa sobretudo descendentes de europeus nascidos no Novo Mundo. Na Louisiana, EUA, “creole” teve originalmente essa acepção, depois passou a significar descendente de franceses e, finalmente, mestiço. A palavra saiu do português. No Brasil, terra de sua língua de origem, ela se grudou aos pretos. Por que vamos usar TV e jornais para transformar “crioulo” num xingamento? Nosso racismo progride. Com dificuldades, mas sim. Sem negros nas escolas privadas ditas boas e com essas distorções em manchetes e legendas, chegamos lá. Liv Sovik pode ficar descansada.
Nesse meio-tempo, Santorum dançou, Demóstenes serve a Rui Falcão (amparado pela mídia e pelo Cachoeira) como água sanitária do mensalão — e me prometi ler “Classes, raças e democracia”, de Luis Sérgio Alfredo Guimarães.
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