#CADÊ MEU CHINELO?

terça-feira, 23 de março de 2010

VITOR RAMIL



#agência pirata
Milonga de la milonga

txt: Vitor Ramil

“Chamam a este fenômeno de délibáb”, expliquei. “Esta locomotiva e este vagão que vocês vêem, tão nítidos, a correr neste horizonte desértico, não estão aqui onde parecem estar, mas a pelo menos uns cem quilômetros de distância. Acontece em dias de muito calor. Essa imagem atravessou regiões de atmosferas de densidades diferentes e projetou-se assim, clara, plana e não invertida, diante dos meus olhos. Nenhum som a acompanhava. Só depois de muito procurar é que me convenci de que realmente não havia trilhos no lugar.” Ao rever aquela fotografia, há tanto tempo guardada, e observar a reação de deslumbramento dos meus amigos, pensei que o “grande círculo” seria a documentação de um tipo de espelhismo, pois suas fotos eram o registro do que já fora visto por outro em outra parte, conforme os textos demonstravam. Era também algo deslumbrante. (Satolep – Vitor Ramil, Ed. Cosac Naify, 2008.)

Às vésperas de partir para Buenos Aires para dar início à produção deste disco, ocorreu-me que eu voltaria de lá trazendo comigo o registro de um délibáb, tal qual Selbor, o narrador do meu romance Satolep. Gravar as milongas que havia composto para os versos de Jorge Luis Borges e de João da Cunha Vargas seria documentar uma projeção de imagens remotas, de arrabaldes buenairenses e ambientes campeiros, na urbanidade de nossos tempos atuais; seria registrar minha visão do que já fora visto por outros em outra parte.

O délibáb é um fenômeno extraordinário da planície húngara, tão semelhante às planícies do sul do nosso continente. Único em seu gênero, este tipo de espelhismo transporta paisagens muito distantes a horizontes quase desérticos, reproduzindo ante os olhos maravilhados do observador, em dias de calor, o desenvolvimento de cenas distantes. Quadros curiosíssimos que cobrem o horizonte em enormes projeções. E suas imagens são planas, nunca invertidas, nítidas, claríssimas. Este fenômeno ótico é devido à refração desigual dos raios solares nas camadas de ar, de temperatura e rarefação diferentes. A imagem passa por diversas regiões de atmosfera de diferente densidade, até projetar-se sobre o horizonte da planície.

Um trem corre a toda velocidade, mas não se percebem ruídos da máquina, nem se escutam os apitos. Em realidade, tal cousa sucede porque o trem não está ali; talvez se encontre a mais de 100 km de distância. Mas o délibáb o atrai ao horizonte... (Nosso Universo Maravilhoso, Ernesto Sábato – direção literária –, Livraria El Ateneo do Brasil, 1960.)

Cenas distantes, espelhismo, nitidez, horizonte, planícies. Com tantas sugestões, não demorei a achar que a palavra húngara délibáb poderia dar nome a este trabalho. Além disso, havia o jogo borgeano de ser um vocábulo de uma cultura antiga e longínqua com ares de palavra inventada; de ser uma palavra encontrada em um livro cujo autor (el hombre que entreteje estos símbolos), por sua vez, a extraíra de uma velha enciclopédia. Houve quem pensasse que délibáb era invenção minha. Eu próprio desconfiei que fosse uma peça de ficção plantada no terceiro volume da coleção de Ernesto Sábato (diretor literário). Precisei visitar Budapest, transitar pela Délibáb Utca, deparar-me com a expressão por toda parte e ouvir depoimentos de cidadãos húngaros para, ainda que sem testemunhar o délibáb, convencer-me da sua existência. Trata-se de um fenômeno natural que é atração turística na Hungria. Continuei, contudo, desconfiado de que a descrição do Nosso Universo Maravilhoso fosse bastante fantasiosa, o que só tornava a palavra e seu sentido ainda mais atraentes para mim e meu projeto, em que ficção e realidade se confundem. A decisão de que délibáb seria o nome do disco só aconteceria depois que eu incorporasse uma das paixões borgeanas e partisse para o estudo etimológico. Foi quando descobri que délibáb, cujo significado é “miragem”, vem de déli (do sul) + báb (de bába: ilusão). Como não ficar maravilhado diante daquela “ilusão do sul”, ainda que fosse só uma miragem?

délibáb, o disco, reúne milongas que compus a partir das milongas-poemas do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), publicadas originalmente no livro Para las seis cuerdas, e dos versos do brasileiro João da Cunha Vargas (1900-1980), registradas, na voz do poeta, em fitas cassete e posteriormente publicadas em seu único livro, Deixando o pago. Como as datas indicam, em 2009 e 2010 os dois autores completariam, respectivamente, cento e dez anos. Guardadas as imensas diferenças entre suas vidas e obras, suas imagens se projetam nitidamente no horizonte de um Sul mítico, tocando-se em determinados pontos.

Ambos foram homens de memória prodigiosa. A memória de Borges, poeta culto, é célebre: abarcava sua poesia, cada palavra de uma conferência a ser proferida ou um sem fim de versos de outros autores, em mais de um idioma; a memória de Vargas, poeta popular, guardava sua poesia, já que ele não costumava escrever seus versos. Borges escreveu sobre o gaúcho e a poesia gauchesca; Vargas foi o próprio gaúcho e elaborou seus poemas. Se Borges tivesse visto Vargas declamar (dizem que foi um exímio declamador) talvez o definisse como um payador influenciado pela poesia gauchesca – esse homem do campo seria então um poeta espontâneo capaz de expressar uma filosofia de vida em palavras de uso cotidiano, mas, ao mesmo tempo, de reforçar as tintas da cor local ou de usar uma palavra que Borges dizia jamais ter ouvido no campo, a palavra pampa; Vargas talvez definisse o inextricable y casi infinito Borges com uma imagem simples e pungente.

Borges e Vargas estiveram fisicamente próximos, sem sabê-lo, evidentemente, quando Borges passou uma temporada na estância Las Nubes, em Salto Oriental. Vargas, nascido e criado na Estância da Primavera, vivia a alguns quilômetros dali, no município de Alegrete. Não teriam eles, em suas andanças pelos campos extensos e abertos daquela zona de fronteira entre Uruguay e Brasil, avistado os vultos um do outro ao longe, nem que fosse como um délibáb? No mínimo, o poeta brasileiro foi visto por Borges na pele de outros gaúchos, representantes, como ele, de um mundo primitivo fadado a perdurar menos na realidade que na prosa e poesia refinadas do autor argentino. Nesta ocasião, Borges esteve na cidade fronteiriça de Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul. Lá, como José Hernandez, autor do Martín Fierro, que esteve exilado nesta localidade, ele escutou voces gauchas que o marcariam para sempre. Essas vozes tinham o timbre da voz de João Vargas.

A primeira edição de Para las seis cuerdas data de 1965. No prólogo, o autor sugere ao leitor suprir a música ausente pela imagem de um homem que cantarola acompanhando-se con la guitarra. La mano se demora en las cuerdas y las palabras cuentan menos que los acordes. Borges costumava declarar que essas milongas (assim o autor se referia aos poemas do livro) se haviam composto sozinhas, vindas de um fundo criollo, argentino; que ele pouco interferira e que esperava que não tivessem nada de literário. O poeta culto desejou aproximar-se do que chamava de “poesia popular”. Conseguiu-o, ainda que seus versos “populares” não apresentem imperfeições formais e tragam a marca de sofisticação de quem sempre manejou com maestria o idioma. Suas milongas (Borges considerava este gênero, e não o tango, a música representativa de Buenos Aires) não contam histórias de gauchos, mas, principalmente, de compadritos (ou compadres), tipo popular cuja lenda remonta aos anos de formação da capital argentina (um personagem que se assemelha em muitos aspectos ao mítico “malandro” da Lapa do Rio de Janeiro antigo). Leopoldo Lugones o definiu como um híbrido triplo de gaúcho, negro e italiano; Adolfo Saldías, como um cavaleiro andante dos arrabaldes, aventureiro e romântico, representante de uma classe média entre os homens da cidade e os do campo. Segundo Borges, el compadrito fue el plebeyo de las ciudades y del indefinido arrabal, como el gaucho lo fue de las llanuras o de las cuchillas. (…) De paso recordemos que el compadrito se vio a sí mismo como gaucho. (…) Compartían (o gaúcho e o compadrito), por lo demás, el hábito de los animales y de los cuchillos. El campo entraba en la ciudad. É significativo que Borges tenha apresentado um de seus personagens como en el peligro primero, imagem que ecoa los primeros en el peligro, utilizada por Antonio D. Lussich, anos antes, para definir os gauchos.

Os versos de Borges são pródigos em cuchillos (facas), peleias, sangue e mortes. Colocá-los lado a lado com os versos de Vargas faz com que se sobressaiam nesses a doçura, a amorosidade e a melancolia, ainda que apresentem também cenas de valentia e de violência. Isso me faz pensar na diferenciação que faz Barbosa Lessa entre espanhóis e portugueses no período de formação do Rio Grande do Sul: Mesmo que ainda não tenham sido fixadas as fronteiras políticas, as fronteiras culturais já estão determinando onde mora o espanhol, com seu culto às chagas de Cristo, ao martírio dos cravos e espinhos, à dor do luto e à atração da morte, e onde mora o lusitano, com seu ingênuo lirismo, cultuando o Menino Deus ou São João com o cordeirinho nos braços.

Vargas também poderia ter chamado seus versos de milongas, pois eles parecem feitos sob medida para o gênero. E não seria um completo engano supor sua poesia inserida na tradição de oralidade dos payadores, símiles sulistas dos repentistas do nordeste brasileiro, graças principalmente à musicalidade cativante de seus versos (o payador rio-grandense Jayme Caetano Braun dizia que, ao declamar, João Vargas subia ao palco “um homem franzino e descia de lá um gigante”) e ao fato de o poeta não costumar escrevê-los, tarefa de que se incumbiam eventualmente seus familiares e amigos. Se a expressão poética de Vargas foi influenciada pela poesia gauchesca, segundo a acepção de Borges, é inegável que sua poesia se impõe mais pelo tanto de verdade que comporta do que pelo pitoresco de seu vocabulário. Borges, quando jovem, tentou escrever poesia gauchesca e desistiu diante das complexidades de um dialeto que não dominava tecnicamente. Se Vargas, desde seus primeiros versos, abrisse mão do jargão gauchesco, sua poesia não deixaria nunca de ser a de um gaúcho.

Conheci as milongas de Jorge Luis Borges ainda adolescente. A primeira que musiquei foi Milonga de Manuel Flores, aos dezenove anos. Uns três anos depois conheci e musiquei Gaudério, de João da Cunha Vargas, que está em meu disco Ramilonga – a estética do frio. A partir dos anos 90, até duas semanas antes de começar a gravar o disco, musiquei outros sete poemas do livro de Borges e quase toda a obra de Vargas, que é pequena (segundo um de seus filhos, muita coisa se perdeu por falta de registro). Sempre senti o mesmo que Borges com relação às milongas: elas me vêm naturalmente, de um fundo crioulo, no caso, rio-grandense. Compus a primeira delas aos dezessete anos (Semeadura, gravada por Mercedes Sosa). De lá para cá, nunca deixei de compô-las, sempre com o mesmo sentimento. Porém, se Borges evitava que elas fossem “literárias”, eu, que pratico outros gêneros musicais e que também escrevo prosa de ficção, as vejo a meio caminho entre a música popular e a literatura. Acho que a milonga pampeana (e outras milongas de características semelhantes), por mais simples que sejam, têm o poder de atrair o ouvinte ao seu horizonte, como o délibáb descrito por Sábato, com uma intensidade mais característica da literatura que das canções.

Elegi a milonga como referencial para a busca de uma estética do frio (ou, em outras palavras, de uma expressão artística sul-brasileira que recusasse os estereótipos, tanto sulistas como brasileiros) por reconhecer nela um poder de desnudamento, de nos colocar em contato com o íntimo ou o essencial. Pensando na ideia de “frio” como valor estético, não apenas como elemento climático que referencia o Sul brasileiro, identifiquei na milonga, tão popular entre nós, gaúchos, valores estéticos que a tornavam a música do frio por excelência: rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia. Uma ênfase inicial no frio seco, geometrizante, foi necessária para uma limpeza conceitual de terreno. Mas aos poucos o frio úmido das cerrações, da indeterminação e da errância, foi recobrando em minhas reflexões um lugar que já era seu na prática, pois se eu refletia sobre “como dizer”, é certo que ao compor ou escrever eu sempre mais sugeria do que dizia. Hoje, já distante dos tempos reativos iniciais, uma ideia de vaguidade combinada às da esfera do rigor denota mais claramente o caminho para a busca de uma estética do frio em que frialdade e tropicalidade se conciliem em essência, não como mero encontro de superfície, e gerem uma linguagem-síntese. A vaguidade, que pode ser vista como um desdobramento da profundidade, da leveza e da melancolia, responde tanto pela vocação contemplativa da milonga como por aspectos formais como as flutuações de tempo, os silêncios, as hipnóticas melodias circulares e, no caso das minhas composições, os efeitos ilusionistas de acordes abertos e afinações preparadas. Sua simples enunciação como valor estético talvez já ajude a dissipar a impressão equivocada dos olhares apressados que, perdendo de vista a conjuntura que motivou a estética do frio, julgam ver em suas linhas gerais originais, em ideias como rigor, concisão ou clareza, uma expressão do frio em sua conotação negativa de coisa cerebral, rígida ou impessoal (algo compreensível quando as ideias de frio e de arte são associadas no contexto de um país “tropical” como o Brasil).

Essa estética do frio em que névoa, fantasmagorias, luzes e sombras passam a ter, com o perdão do paradoxo, presença definidora, já estava em meu romance Satolep e se afirma agora neste novo disco. Não é à toa que o nome délibáb foi tirado de um trabalho para justificar o outro. Em Satolep um personagem entoa milongas com palavras de Borges; outro, nascido e criado no campo, fala do gaúcho e seu mundo de maneira tocante. Em délibáb (gosto de grafar o nome do disco assim, em minúsculas, para aproveitar a sugestão de seu espelhismo gráfico) é como se os personagens de meus personagens tomassem a palavra.

As marcas autorais de Borges e Vargas são tão fortes que minhas músicas mudam nitidamente quando vou de um para o outro. Basicamente essas milongas correspondem àquela diferenciação entre portugueses e espanhóis proposta por Barbosa Lessa, mas as vozes dos poetas, individualmente, falam de forma irresistível através de mim. As milongas para os versos de Borges são em geral mais clássicas, épicas ou rítmicas, sempre fiéis à afinação tradicional do violão; as milongas com Vargas são mais próximas da canção brasileira, mais líricas e sentimentais, fluem como se aspirassem ao impressionismo das afinações preparadas. A imagem que tenho desses homens se ajusta à música que fiz para seus versos. E ainda que eu entenda a afirmação de Borges de que as palavras contam menos que os acordes; ainda que eu tenha suprido a música ausente de seus versos com minhas próprias voz e guitarra, adoto o sentido africano original do vocábulo “milonga” (plural de mulonga, que significa “palavra”) e entendo que em délibáb minha música está a serviço das palavras.

O disco foi gravado em Buenos Aires, em junho de 2009. Foram mais de dez horas de trabalho por dia, durante dez dias, no estúdio Circo Beat. A mixagem foi feita durante uma semana, no estúdio Papet Groove. Neste período, estive imerso no idioma e na mitologia de Borges, hospedado muito próximo aos endereços nas ruas Quintana e Pueyrredón em que o poeta viveu e produziu obras importantes, mais precisamente, ao lado do cemitério da Recoleta, tema de um de seus poemas e em cujas calçadas muradas pelearam los cuchilleros. Ao voltar do estúdio pela rua Santa Fe, eu pensava que ali, en una esquina del sur, havia sido morto Alejo Albornoz; se voltava pela rua Juan B. Justo, sob a qual o rio Maldonado corre canalizado, cantarolava: Allá por el Maldonado, que hoy corre escondido y ciego; no bairro de Palermo, a visão de uma remanescente casa baixa de portas e janelas abertas me transportava imediatamente ao Palermo de Evaristo Carriego. Ao mesmo tempo senti-me sempre em casa. No estúdio havia calefação (em vez de um ar condicionado congelante) e chimarrão, que o assistente técnico se encarregava de cevar. Além disso, volta e meia os argentinos presentes reconheciam como suas inúmeras palavras ou expressões dos poemas de João da Cunha Vargas, palavras como “tapera”, “pingo”, “pago”, “querência”, “churrasco”, “bolicho” (boliche), “china”, “mate amargo”, “pampeiro” (pampero), “rancho”, “guasca”, “cancha de tava” (taba), “guampa”, “indiada”, “boleadeira” (boleadora). Na capital cosmopolita, os interiores se comunicavam.

Mas o maior responsável por meu sentimento duplo de imergir em outra cultura sem apartar-me da minha foi Carlos Moscardini. Quando conheci sua música, anos atrás, foi como se eu já soubesse que ele estaria comigo neste délibáb. Acho mesmo que foi como uma miragem que eu nos vi. Carlos, um profundo conhecedor da música argentina dita “de raiz”, possui o toque mais inspirado e o som mais bonito de violão que já ouvi. Além do mais, é um sujeito pampeano, de perfil bajo, o que faz dele uma companhia natural para mim. Nosso tempo é o da gente do interior. Estamos de acordo que nossas músicas pertencem a uma mesma querência, que se projetam uma na outra, que se completam e se justificam. Nossos violões parecem achar o mesmo. Se o meu é uma planície, el cielo al revés, de Yupanqui; o dele, é um pensamento que vai longe. Se o meu tem o rigor minimalista do aço; o dele apresenta a doçura criolla do nylon. E por aí vamos. Nos conhecemos pessoalmente em Porto Alegre, quatro dias antes de subirmos juntos ao palco do Theatro São Pedro para apresentar essas milongas. Saímos da experiência ansiosos por registrá-la em disco. Como se nossas afinidades não bastassem, em Buenos Aires passei a vê-lo quase como uma figura saída de um conto de Borges, pois ele, além de ser um sujeito dos arrabaldes que infinitamente rasguea una trabajosa milonga, vive no Camino de las Tropas, próximo de Adrogué e Temperley, a poucos metros da família Iberra e da ponte sobre os trilhos de trem de Turdera, personagens e cenário descritos naquela que talvez seja a mais famosa das milongas de Borges, a Milonga de dos hermanos.

A atmosfera inspiradora dos momentos em que estivemos juntos em sua casa, ensaiando, conversando ou saindo para visitar os arredores cheios de lugares representativos da mitologia borgeana, estendeu-se às sessões de gravação. Aí tivemos a companhia de Tatu Estela, nosso técnico de gravação, responsável pelo registro fiel, despido de artifícios, da nossa música. Foi dele a ideia de microfonar a grande sala do estúdio para aproveitar sua ambiência, o que nos liberou de usar reverbers digitais ou analógicos. Esse recurso, somado aos microfones valvulados e ribbon e a uma mesa Neve do anos 70 foi determinante para a sonoridade final tão realista do disco. Cada violão foi gravado com sete microfones. A voz, com cinco. Gravamos tudo em separado, mas Tapera e Milonga de Manuel Flores foram gravadas ao vivo. De ambas, escolhemos a primeira toma.

Todo o trabalho foi documentado em vídeo pelo argentino César Custodio. A filmagem, em Buenos Aires, começou com minha chegada ao aeroporto de Ezeiza e terminou, passados trinta dias, no mesmo local, onde registrou-se a incrível coincidência de um encontro meu com Carlos Moscardini (depois de um mês de convívio quase diário, deixávamos o país ao mesmo tempo: ele, rumo à Costa Rica para uma apresentação; eu, a caminho de casa). Nesse meio tempo foram documentadas as sessões de gravação e mixagem, além de depoimentos meus, de Carlos e de Tatu, e de externas mostrando alguns endereços onde viveu e trabalhou Borges. Os últimos registros em vídeo foram no Brasil. Em Pelotas, alcançou-se a última luz de um dia quente para uma leitura do délibáb de Nosso Universo Maravilhoso às margens da Lagoa dos Patos. Em Alegrete, enfrentou-se uma estrada de rali para mostrar, também no limite do dia, a distante e isolada Estância da Primavera, onde nasceu João da Cunha Vargas. No Rio de Janeiro, registrou-se, a media luz, a participação de Caetano Veloso. Digo a media luz porque pedi a César que não usasse iluminação especial para essa ocasião. Mais que manter o clima dos registros de Buenos Aires, eu queria proporcionar o melhor ambiente possível para meu convidado. A música deveria estar em primeiro lugar. Dessa vez, infelizmente, a iluminação do estúdio não nos ajudou. Preservado o essencial, a produção despojada do DVD délibáb documental, feita na base de uma câmera e um microfone, ganhou seu momento “de guerrilha” ou, como dizem os argentinos, gauchito.

Como falei anteriormente, minhas milongas para os versos de Borges são mais clássicas, épicas ou rítmicas. Talvez a única exceção seja a Milonga de los morenos, que, como as milongas para versos de Vargas, traz a marca lírica da canção brasileira. Sempre achei que Caetano Veloso a cantaria lindamente, pela música, mas, especialmente, pelo tema, os negros, e pela forma como Borges o aborda, com uma afetividade que seus comentadores devem julgar incomum. Ao convidar Caetano para cantá-la comigo eu estava seguro de que sua voz, por tudo que ela representa, iluminaria a ponte que essa milonga estabelece entre as milongas de Borges e as de Vargas, uma ponte que, no contexto do disco, se estende entre a musicalidade brasileira e a sul-americana.

Como se pode ver, o délibáb atraiu muitas coisas ao seu horizonte. É um disco marcado pela visualidade. Por isso, além de César Custodio, convidei outros dois artistas da imagem a participar dessa produção: o designer gráfico carioca Felipe Taborda e o fotógrafo argentino Facundo de Zuviría, ambos meus colaboradores de longa data. A tipografia utilizada por Felipe é nova e inédita. Trata-se da fonte Olivia Round Regular, criada por ele mesmo. De Facundo pode-se dizer que sua especialidade é Buenos Aires, e que uma de suas grandes paixões é Borges, sobre quem tem um livro publicado em parceria com Félix della Paolera, Borges: Develaciones. A foto que ilustra a capa de délibáb foi tirada do alto do edifício Kavanagh, prédio emblemático da capital porteña, situado na Praça San Martin, que Borges costumava freqüentar. É uma imagem real, sem nenhum truque de computador: uma panorâmica da cidade capturada através dos vidros de uma janela que se abriu com o vento e atraiu o olhar do fotógrafo para uma súbita e extensa fantasmagoria urbana. Ao fundo vê-se o Rio de La Plata. De acordo com Facundo, do outro lado do rio estão Uruguai e Brasil. Ao escolher a foto da capa, levei em conta o fato de que, em Buenos Aires, há quem garanta que o Rio de La Plata muitas vezes produz uma miragem, que as formas que se vê no limite oposto das águas não são de fato a outra margem, como parecem ser. Como não ficar maravilhado diante daquela “ilusão do sul”, ainda que fosse só um délibáb?

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