::txt::Olívia Fraga::
Foi aprovada anteontem a Indicação Geográfica para dois queijos mineiros, o canastra e o serro. A notícia é boa, mas não garante que a partir de agora todo brasileiro possa conhecer estes queijos tradicionais - ou melhor, quem quiser prová-los continuará precisando viajar até Minas Gerais. O que acontece é que estes dois queijos são feitos com leite cru (não pasteurizado), assim como outros queijos brasileiros, caso do gaúcho Serrano e da mussarela da Ilha de Marajó. Queijos de leite cru não recebem o selo do Serviço de Inspeção Federal (SIF). E sem SIF não podem ser vendidos para outros Estados. Muitos produtores artesanais optam por vender o leite em vez de fazer o queijo. Ou distribuem o produto clandestinamente. Resultado: poucos brasileiros têm a chance de prová-los em sua melhor forma.
A regra é clara. “Ficam sujeitos à inspeção e à reinspeção prévias nesse regulamento os animais de açougue, a caça, o pescado, o leite, o ovo, o mel e a cera de abelhas, e seus subprodutos derivados (...).” O texto que regulamenta a produção de alimentos de origem animal, assinado por Getúlio Vargas em 29 de março de 1952, continua em vigor.
Se o Brasil do pós-guerra abraçava o american way of life até na alimentação (nas grandes capitais, a farinha de trigo importada venceu a cultura do milho e da mandioca) e já padecia de ignorância crônica a respeito de suas riquezas naturais, sob o martelo da lei ficou impossível preservar a tradição. Entre elas, a cultura centenária do queijo artesanal, produto que chegou com os portugueses.
O País desconhece seus queijos típicos - um pouco por preguiça de procurá-los, outro tanto por achar que não estejam à altura dos queijos europeus. A cultura queijeira brasileira resiste a duras penas, a despeito das exigências legais. Mas é preciso ir à Zona da Mata mineira para conhecer os queijos da Serra da Canastra e do Araxá; visitar os pampas gaúchos para provar o autêntico queijo serrano; dar voltas nos mercados de Fortaleza para descobrir o verdadeiro gosto do queijo coalho artesanal.
A lei de inspeção federal não autoriza a circulação interestadual de queijos feitos a partir de leite cru, exigindo maturação mínima de 60 dias para seu consumo. A regra imita as orientações hiper-higiênicas do FDA norte-americano. Os níveis máximos de impureza são dez vezes superiores aos dos queijos em circulação na União Europeia.
Segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), quase 40% do queijo brasileiro artesanal é clandestino. “Os padrões exigidos na lei são mais industriais que artesanais. O produtor prefere vender leite para a indústria, abandonando a cultura que vem de gerações e uma elaboração cultural sofisticada”, afirma o sociólogo Carlos Alberto Dória. “Quando se proíbe, além de centralizar a produção, você transforma o pequeno produtor em fornecedor.".
Para obter o selo do SIF (Serviço de Inspeção Federal) é preciso fazer grandes investimentos em instalações, equipamento e pessoal, além, é claro, de pasteurizar o leite. “O governo federal deveria incentivar os produtores artesanais por meio de financiamentos, capacitação e, sobretudo, criando uma legislação específica para tirá-los da ilegalidade, como fizeram os países europeus. Na Europa os queijos artesanais são valorizados, têm incentivos e legislação própria”, diz José Fernando Cavalcante, professor de zootecnia na Universidade Estadual do Ceará.
Os pequenos produtores, amparados em cooperativas, ONGs e órgãos do governo, lutam para preservar a história de suas famílias e o valioso patrimônio gastronômico. Em 2008 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu o queijo artesanal mineiro como bem cultural, protegendo seus métodos e processos. É pouco - o efeito prático não altera em nada a legislação. Institutos de pesquisa ligados a universidades correm em paralelo. Há dezenas de estudos que comparam a composição química de queijos de leite cru à de pasteurizados, com alguns resultados: a pasteurização elimina bactérias benéficas ao ser humano. Além disso, o transporte e o armazenamento são corresponsáveis na preservação dos dois tipos de queijo, e praticamente os maiores vilões na contaminação dos produtos - o que significa dizer que persegui-lo e colocar o fabrico artesanal em situação de contravenção facilita o contrabando.
Numa iniciativa da Embrapa Agroindústria Tropical e da Emater-RS, deve ocorrer, em Fortaleza, o 1º Seminário de Queijos Artesanais do Brasil, entre 16 a 18 de novembro. “Os órgãos fiscalizadores caminham no sentido oposto ao da preservação cultural”, diz Maria do Socorro Bastos, pesquisadora da Embrapa em Fortaleza.
Um queijo que só pode ser comido em Minas
De base familiar e artesanal, o queijo minas é a expressão máxima dos microclimas locais. Cada região produtora reconhecida - Canastra, Araxá, Alto Paranaíba e Serro - desenvolveu trato próprio na fabricação.
A alma do queijo mineiro está no “pingo”, cultura láctea natural em forma de soro, que escorre por gotejamento do queijo fabricado no dia anterior. É o primeiro coagulante adicionado ao leite recém-ordenhado, ainda morno, o que lhe dá textura, sabor, odor e aspecto próprios.
Repousa, recebe o coalho industrializado, é quebrado, coado, prensado, moldado e salgado. A partir daí, é uma conversa do queijo com ele mesmo: em 24 horas, depois de uma “virada”, é levado para outro lugar, para ganhar sabor e características suas, uma impressão do terroir onde é feito. É assim que se faz queijo em Minas desde o séc. 18.
O modo artesanal de fazer o queijo mineiro foi registrado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em 2008, como patrimônio cultural imaterial brasileiro.
A Emater calcula que 30 mil famílias estejam na fabricação de queijo artesanal. Dessas, 11 mil vendem seus queijos. Apesar disso, só cinco entrepostos estão autorizados a “terminar” a maturação e distribuir pelo Brasil. Apenas os queijos de 170 produtores saem do Estado legalmente. Para serem incluídos nesse plano de distribuição, os produtores precisam se adequar. São necessários investimentos de R$ 20 a R$ 30 mil, o que levou muitos a desistiram de fazer queijo. “Nossa vontade é que haja uma política nacional para o queijo artesanal”, diz Jorge Brandão Simões, produtor do Serro.
A indústria de laticínios já tentou fabricar queijo de pingo em laboratório com leite pasteurizado, obedecendo as leis da Vigilância Sanitária e a orientação do Ministério da Agricultura. “Não deu certo”, diz Clério Alves da Silva, supervisor de fiscalização de Pecuária e Abastecimento do Ministério da Agricultura, em BH. “O gosto era outro, não era o mesmo queijo.”
Para o artesanal, a legislação pede pelo menos 60 dias de maturação - a cura longa expulsa as impurezas do queijo. Isso complica a vida do produtor, que vende o queijo semipronto (e, portanto, mais barato) para os entrepostos.
Fundido, queijo marajoara não tem SIF
O clima e o ecossistema particulares da Ilha de Marajó a torna única na tradição queijeira - os queijos são produzidos há mais de 200 anos e foram concebidos por imigrantes suíços que viveram na ilha durante o ciclo da borracha, com rebanho bovino. “No final do século 19 ocorreu a introdução dos bufalinos, que em Marajó encontram um ambiente ótimo, dadas as características dos campos inundados com gramíneas nativas”, explica Almir Vieira Silva, professor da Universidade Federal Rural da Amazônia e pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental.
Na origem, famílias portuguesas e francesas faziam queijo a partir da mistura dos leites bovino e bufalino. Hoje, mais de 80% da produção leva só leite de búfala. Os queijos de búfala marajoaras são fundidos, ou seja, empregam leite cozido (a meio caminho da pasteurização).
Nenhuma queijaria tem SIF - na verdade, nenhuma conseguiu ainda atender às exigências municipais. Mas o problema, aqui, não é o leite cru (já que a fundição envolve calor e desnaturação de bactérias). “A ação necessária é a orientação para que se evite a fermentação espontânea nos produtos, devendo-se para isso fazer uso de culturas láticas locais, como o ‘pingo’ da Canastra”, diz Silva.
Gado chucro aceita SIF?
Correm mais risco de sumir do mapa os queijos serranos do Rio Grande do Sul, cuja história ainda precisa ser contada. Os exemplares que atravessam as fronteiras são feitos de leite pasteurizado, obedecendo à legislação. Quem vive nos Campos de Cima da Serra, área verde com altitudes superiores a mil metros, na fronteira do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, luta para manter vivo o processo de fabricação que remonta aos tropeiros vindos de Minas Gerais e São Paulo dois séculos atrás.
“Quando chegaram à região, os desbravadores encontraram um gado chucro, de corte, abandonado pelos jesuítas, e adaptaram o modo de fazer ‘queijo de coalho’ do Sudeste a toda a região de Vacaria dos Pinhais”, explica o técnico João da Luz, supervisor da Emater-RS. Essa é a principal diferença entre o queijo serrano e os demais queijos de coalho brasileiros: ele é produzido com leite cru de rebanho destinado ao abate. De acordo com a pesquisadora Larissa Bueno Ambrosini, o queijo serrano garantia a subsistência das famílias rurais. Essas famílias trabalhavam ordenhando as vacas e recebiam como pagamento parte do leite com que faziam seu queijo. O produto era transportado para longe no lombo de mulas carregadas de pinhão e charque - as três moedas de troca usadas na fronteira. Os viajantes traziam de volta à comunidade sal, açúcar, farinha de mandioca e arroz.
João Carlos Santos da Luz calcula que haja 11 municípios gaúchos e 18 catarinenses envolvidos na produção artesanal de queijo serrano. O problema é que até o ano passado o queijo estava proibido de circular dentro do próprio Estado, por ser feito de leite cru. Ao contrário do queijo mineiro, o gaúcho ainda não era reconhecido como patrimônio. Isso mudou em 14 de dezembro de 2010, quando foi aprovada a portaria 214, reconhecendo a identidade e qualidade do queijo.
Feito sem pingo, o queijo serrano, alto e retangular, vem de leite cru de vaca de corte. Os animais são criados junto de seus bezerros e alimentam-se o ano todo de pastagem natural. Devido às baixas temperaturas da região e às características do gado, o leite é mais gordo.
“As enzimas do leite recém-ordenhado impedem a multiplicação de bactérias até no máximo três horas depois da ordenha”, explica João. A tese é defendida também pela professora e pesquisadora Célia Lúcia Ferreira, da Universidade de Viçosa (MG). Assim, o leite é coado e logo salgado. Em seguida, acrescenta-se o coalho industrial. “Nas origens, o coalho era feito a partir de estômago de tatu”, conta o técnico.
O coalho age por 50 minutos, e a partir daí o trabalho é muito semelhante ao que se vê na produção de queijo na Serra da Estrela, em Portugal: ele é sovado dentro de um saco de algodão, de onde escorre o soro, estendido numa mesa para esticar e sovar mais, transformando-se quase em uma farinha. Vai para a fôrma para ser prensado por 12 horas, é virado para curar do outro lado e, 24 horas depois, é levado para uma tábua de madeira de pinheiro araucária para maturar.
“Há relatos de que as peças de queijo eram enormes, quase 5 kg, porque era um processo que ocorria apenas três vezes por ano. Isso exigia no mínimo três meses de maturação. Hoje, os produtores fazem queijos de 2 kg que maturam dois meses”, conta João da Luz.
O resultado é um queijo de massa semidura, tipo minas padrão, bom para cortar, e de textura untuosa e amanteigada quando maturado menos que isso. A São Paulo ele ainda vai demorar para chegar - se é que conseguirá se manter.
Paola Carosella, do Arturito, ficou entusiasmada com o queijo serrano, mas desistiu de servi-lo no restaurante. “Ia fazer algo com os queijos, mas como não têm SIF não posso. Não tenho produtos sem SIF no cardápio.”
O coalho apanha de todos os lados
Parecido com o queijo serrano, o queijo de coalho nordestino é, possivelmente, o queijo mais prejudicado com a lei de 1952. Em todos os Estados da região ele é encontrado em sua forma autêntica, feito a partir de leite integral cru.
A situação do queijo artesanal é de clandestinidade - os pasteurizados tomaram conta do mercado. Ficou ainda mais complicado defender o queijo coalho artesanal porque muita gente confunde o queijo artesanal com o queijo coalho vendido nas praias do Nordeste, que é industrializado.
José Fernando Cavalcante, professor da Universidade Estadual do Ceará, vê duas saídas para esse queijo: 1) a criação de linhas de credito para a melhoria da qualidade do leite, envolvendo a sanidade do rebanho leiteiro, a ordenha, o transporte e a infraestrutura das pequenas queijarias; 2) validar, por meio de parcerias com governo e empresas privadas, os conhecimentos tecnológicos das universidades, da Embrapa e do Sebrae.
Em uma pesquisa desenvolvida na Universidade de Viçosa, em Minas Gerais, em 2005, Cavalcante isolou cepas de bactérias lácteas provenientes de leite de vaca cru do Nordeste.
“Quando incorporadas ao leite pasteurizado, produzem queijo coalho de excelente qualidade, semelhante ao queijo artesanal.”
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Um comentário:
Pra quem quiser experimentar um delicioso queijo artesanal de leite cru produzido no cume da Serra da Mantiqueira, fica aqui o convite para abrir a porteira do sítio www.queijodalagoa.com.br e ser feliz!
Direto do sítio pra sua casa!
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