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quinta-feira, 20 de setembro de 2012

[copyleft] A DISNEYLÂNDIA DE BOMBACHAS



A identidade que o senso comum registra do gaúcho é uma das tantas tradições inventadas, pelo mundo afora. O mito gaúcho é uma narrativa fixa de três combinações histórico-culturais: o republicanismo farroupilha, um comtismo crioulo, e um rústico positivismo estancieiro. A vulgarização fetichizada disso é o que chamamos de “disneylandia de bombachas”.


Max Weber dizia que ninguém nasce religioso, mas torna-se religioso. Simone de Beauvoir sustentou que não se nasce mulher, mas torna-se mulher. Parafraseando os dois, diremos que, igualmente, ninguém nasce gaúcho, alguns se tornam gaúchos. 

O gaúcho, segundo a mitificação tradicionalista, é o cálculo acumulado de uma imposição cultural inventada e cevada no ideário rude de uma certa elite do Rio Grande do Sul. Mendes Fradique escreveu, no início do século XX, a História do Brasil pelo método confuso, pois a sabedoria “gauchista” tentou arremedá-lo contando a história do Rio Grande do Sul. A confusão, e não o método, inspirou a plataforma do tradicionalismo de fancaria. 

Os primeiros esboços desse constructo mental que procura representar o tipo ideal dos indivíduos nascidos na região mais meridional do Brasil foram dados por jovens líderes políticos republicanos, ainda no final do século XIX, todos seguidores do positivismo de Auguste Comte. Júlio Prates de Castilhos, fundador do Partido Republicano Rio-grandense (1882), foi um dos que passaram a fazer uma lenta e continuada apropriação dos despojos da Revolução Farroupilha (1835-1845). A modernização conservadora que propugnavam, e depois levaram a efeito na Província do Rio Grande do Sul, através dos governos de Castilhos e Borges de Medeiros, e mais tarde no resto do Brasil, com Getúlio Vargas, vinha a cavalo e estava adornada de toda a memória heróica dos revoltosos farroupilhas, ainda que respingado pelo sangue coagulado da escravidão.

A influência do positivismo
O pensamento comtiano curiosamente vicejou no pastoril cenário austral brasileiro. Embora positivista e reacionário no plano geral da modernidade, numa província xucra e áspera como o Rio Grande do Sul, o comtismo representava um verniz de civilidade e institucionalização republicana. Havia, pelo menos, algum pensamento. Basta saber que, ainda no período 1893-95, na chamada Revolução Federalista, foram mortos mais de 10 mil pessoas, entre civis e militares de ocasião, numa Província que contava com 1 milhão de almas, onde a secção da carótida por lâmina branca (degola) de prisioneiros era prática comum em ambos os lados - liberais e republicanos. Joseph Love chega a afirmar que, no Rio Grande, no final do século XIX, ainda vagavam “hordas semibárbaras egressas do regime agro-pastoril”. Pelear era um meio de vida e de morte; especialmente, onde não havia trabalho assalariado regular no campo.

Comte, um dos tantos pensadores positivistas, concebia um mundo republicano, positivo (em relação ao ideal burguês da Revolução Francesa), organicista, não-estático, em evolução através de estágios civilizatórios, e com valores dispostos numa hierarquia. Havia o dogma da superioridade do amor sobre a razão. As mulheres eram superiores aos homens, por diversas razões, mas a principal era a do suposto predomínio dos sentimentos afetivos sobre os valores da razão, na alma feminina. Os negros eram superiores aos brancos. Os latinos eram superiores aos anglo-saxões. Todos pelas mesmas imaginadas razões altruísticas e de valoração puramente moral. 

Uma mitologia do mundo rural
O segundo e definidor impulso do tradicionalismo crioulo foi dado somente a partir de 1947, por jovens de classe média do grêmio estudantil do colégio estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Um movimento urbano, estudantil, pequeno-burguês, reivindicando e propondo uma mitologia do mundo rural, cuja unidade econômica era o universo da estância latifundiária agro-pastoril, seus símbolos, sua oligarquia militarizada, suas relações objetivas de trabalho, onde a acumulação primitiva estava fundada na escravatura, no abigeato, em terras havidas pela força das armas, pelo bandoleirismo, pelo saque, pelas vantagens da fronteira móvel, pela ausência do Estado, e pelo contrabando de mão-dupla; na esfera subjetiva, a estância foi matriz de relações de trabalho com conflitos não-manifestos, onde a relação patrão-peão estava dissimulada por laços de sociabilidade marcados pela mútua convivência em peleias contra os “castelhanos” ou contra facções políticas rivais. Relações de trabalho economicamente opostas, ainda não agudizada pelas contradições de classe, naqueles perdidos confins de coxilhas, ventos e horizontes sem curvas como o mar, mas que, no plano subjetivo é fator de solidariedade, coesão social e que tende a favorecer a unidade política.

Barbosa Lessa e Glaucus Saraiva acabam sendo os intelectuais orgânicos do chamado movimento tradicionalista gaúcho. Um oxímoro: “movimento tradicionalista”. São palavras de sentido oposto: tradicionalismo pressupõe algo fixo no tempo; logo, não há movimento. Assim foi, e é. Eles, primeiro, recuperam o vocábulo “gaúcho” que sempre teve qualificação negativa, sendo sinônimo de desajustado social, um desclassificado teatino, guacho, peão andarilho, etc. Antes do re-cozimento da história, é preciso apresentar identidades, heróis, um verniz cultural, uma bravura, própria das solenidades da origem, na luz sem sombra da primeira manhã. Entretecer as narrativas que montarão o imaginário da “pequena pátria” (Comte) carente de identidade. Ao fazê-lo, emprestam-lhe um passado heróico de glórias infinitas, cujas ilustrações vivas, que o saber histórico não deixa mentir, são as revoluções por causas nobres e justas. Sendo a principal delas a Revolução Farroupilha de 1835 a 1845, com seus personagens míticos, sua bandeira republicana e autonomista, mesmo escondendo a ausência de uma consigna abolicionista.

A história como lenda
Escondem, aliás, tudo que possa cheirar a povo, à autenticidade das manifestações populares, seja do branco despossuído, do negro, do índio e da mulher. É carimbado com o selo do tradicionalismo somente a memória do regime patrimonialista latifundiário ou da história convertida em lenda das revoluções sulinas. Com isso, a história transforma-se numa redução narrativa degradada. Já não é mais história, mas fábula, lenda, alegoria. O passado é cuidadosamente recortado numa seletiva representação de fatos deformados ou exagerados. A invenção da tradição, como cálculo político de identidade e dominação, agora é um mosaico de fatos positivos prontos para serem exibidos como espetáculo, esquecendo os aspectos sempre revolucionários do republicanismo e dos elementos modernos do comtismo, como o respeito à mulher e ao negro.

Eles operaram com um pau de dois bicos: de um lado, uma expropriação da história; de outro, a montagem de uma representação histórica. Paixão Côrtes, um dos idealizadores do tradicionalismo de espetáculo, admite que “o Rio Grande do Sul é um dos Estados brasileiros mais pobres em folclore”, e confirma: “o que assistimos é o culto das nossas tradições e não a vivência do folclore” (in jornal ZH, 22.08.1977). O tradicionalismo de espetáculo - inventado e curado nas charqueadas da ignorância - substituiu o folclore como fonte autêntica de manifestação popular na arte, na música, na poesia, nas cantigas e jogos infantis, na dança de perdidas origens, no artesanato, nas narrativas orais das tantas etnias que cimentam a cultura meridional do Brasil, como os povos europeus, o judeu, o libanês, o palestino, o negro de diversas extrações africanas, e os indígenas que tem uma história riquíssima de vida pré-colombiana e depois com a experiência das reduções jesuíticas, na região missioneira.

O estereótipo do tradicionalismo
A cultura do Rio Grande do Sul é muito mais rica do que o estereótipo do tradicionalismo fetichizado. O tradicionalismo crioulo é excludente e autoritário, sufoca todas as outras manifestações culturais de um Estado múltiplo, colorido de etnias, artes, linguagens e imaginários, parecendo-se com um corredor que se recusa a esperar sua alma. Uma das provas desse fenômeno nocivo da hegemonia unidimensional do tradicionalismo é o da culinária, onde o churrasco parece ser o monarca das mesas sulinas. Existe até uma lei estadual que o consagra como “comida oficial do Estado”. Nada mais inútil e tolo. E as ricas e saborosas culinárias das tantas etnias que temperam a mesa sulina? Numa região que teve nas charqueadas a base da sua economia, por longos decênios do século 19 e 20, o saboroso charque é pobremente servido de uma única forma, o “arroz de carreteiro”.

O tradicionalismo unidimensional e monotemático é um fator de inibição da criatividade e da livre manifestação de tantas culturas em um solo generoso e multitudinário. Uma prova da má consciência do tradicionalista de espetáculo é a relação difícil e conflituosa que sempre tiveram com os intelectuais sulinos. Ignoram, por exemplo, Érico Veríssimo, o escritor que construiu a maior e melhor narrativa literária de uma região brasileira, teceu tipos inesquecíveis e que vivem entre nós como se fossem de carne e osso, tamanha a sua sensibilidade, força artística e exemplo ético. Ignoram Pedro Weingärtner, José Franz Lutzenberger e Vasco Prado, para citar alguns artistas plásticos de épocas diferentes, mas que tiveram como temática pictórica e escultural o homem e a alma do Rio Grande, nos cenários da querência pampeana, missioneira e serrana, nos utensílios, no vestuário, nos instrumentos de trabalho, nos hábitos, no cavalo, nas vacarias, nos aperos, etc., mas sem convergir para o fantasioso mundo artificial do tradicionalismo de espetáculo.

O uso da bombacha tem a sua introdução nos Pampas (seja brasileiro, argentino ou uruguaio) por uma dessas ironias do destino (e do oportunismo comercial dos ingleses): conta o pesquisador uruguaio, Fernando Assunção, que durante a guerra da Criméia (1854-56), as fábricas inglesas produziram um grande excedente de uniformes para o exército da Turquia, o qual era ornado pelas tais calças bufantes, e como o conflito teve curta duração, os comerciantes ingleses resolveram desová-las para as tropas da Tríplice Aliança na guerra contra Solano Lopez, do Paraguai.

A "ideologia do gauchismo"
Alguns críticos do tradicionalismo de espetáculo exageram ao classificá-lo como uma “ideologia do gauchismo”. Não é nesse brevíssimo artigo que se debaterá a interessante polêmica, mas, desde já, não adotaríamos tal categoria para tais propósitos. Trata-se de uma mitologia tão pobre e mal ajambrada que seria elogioso classificá-lo como “ideologia”, de resto, uma categoria com múltiplas noções. Mas, sem dúvida, funciona como uma usina de produção de verdades, que preenche o vazio do desencantamento do mundo, fortalecendo o senso comum em detrimento do senso crítico. Cumpre a função de cobrir as lacunas e buracos de um imaginário popular que tem as ilusões cada vez mais erodidas pela pós-modernidade. Se não é um partido político na forma, milita politicamente em favor de uma “ordem” para todos, e um “progresso” para os eleitos.

Num mundo fetichizado pela miséria da mercadoria, os espelhos são inutilizados a tantos quadros por segundo. O homem, já sem espelho, auto-imagem, auto-referência, não se reconhece no mundo das coisas. É quando o tradicionalismo de espetáculo providencialmente estende espelhos simbólicos que oferecem um conforto identificador, um repouso ôntico, ao homem-multidão. Agora ele reconhece-se, agora ele identifica-se, ainda que na fantasia pilchada de uma ilusão galponeira. Tivesse bala na agulha, ousadia, empreendedorismo, o movimento tradicionalista gaúcho (MTG) poderia associar-se à Walt Disney Corporation no sentido de negociar o direito de ser objeto da dramaturgia materializada em parques temáticos e embalsamar mitologias e histórias. Uma mega disneylandia de bombachas é a aspiração mais legítima do tradicionalismo de espetáculo. A estância-fetiche como sagração da vida boa, e o gaúcho, qual quixote temporão, se defendendo na coxilha da vida com um peleguinho já deslanado e a ferrugenta espada do tradicionalismo.

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