#CADÊ MEU CHINELO?
sexta-feira, 30 de março de 2012
[rango] COZINHA TRADICIONAL vs. GASTRONOMIA MOLECULAR
Bodeg¢n con caballas, limones y tomates, 1886
::txt::Tiago Jucá Oliveira::
::jpg::Van Gogh::
A unidade IV do livro de Gastronomia e Alta Cozinha, do curso do IGA (Instituto Gastronômico Argentino), me despertou um interesse além do esperado. Conhecer as diversas cozinhas do mundo, por si só, já é o suficiente pra me manter antenado e querer aprender quais são os pratos típicos, os métodos, os ingredientes e os temperos de cada país.
Eis que o referido capítulo, sobre a cozinha espanhola moderna, traz algo muito mais curioso e que ainda não havia estudado: as rivalidades, o antagonismo e as divergências gastronômicas. E isso me interessa, me atrai, me fascina: o conflito de pensamentos. Não curto unanimidades, elas são burras, já dizia Nelson Rodrigues. Porém, divergir por divergir sem a argumentação necessária e apenas por implicância, ou em busca somente da polêmica, não pode nos nortear pra um debate sério. Não podemos dar ouvidos a egos ciumentos. É necessário argumentos.
Vamos aos fatos! Ferran Adrià é considerado um dos melhores chefes de cozinha do mundo, senão o melhor, de acordo com especialistas. Sua grande façanha foi introduzir novas e modernas técnicas, tais como a desconstrução, que, segundo o livro do IGA, “consiste em isolar os diversos ingredientes de um prato, geralmente típico, e reconstruí-lo de maneira não usual, de tal modo que o aspecto e textura sejam completamente diferentes enquanto o sabor permanece inalterado”. Para chegar a esse resultado, o cozinheiro catalão se abastece com artimanhas químicas e aditivos industriais, tipo espumas feitas com sifões, alginatos, nitrogênio líquido, etc.
Chef proprietário do restaurante El Bulli, situado em Girona (Catalunha) e fechado em julho de 2011 com um banquete de 50 pratos, Adrià já foi condecorado com três estrelas Michelin. O sucesso dele não se resume a estrelas e prêmios. Seu legado atrai muitos admiradores e originou outros tantos imitadores. E foi essa onda de cópia gastronômica que gerou severas críticas.
O maior crítico da cozinha de Adrià é Santi Santamaria, também catalão e que partiu daqui para melhor em fevereiro de 2011 enquanto visitava seu restaurante em Cingapura. Adepto da cozinha tradicional, Santamaria denominou o método molecular de “tecnoemocional”. Autor do livro “La Cocina al Desnudo”, Santamaria soltou o verbo, desencadeando uma polêmica na Espanha e no mundo sobre como devem e não devem ser os métodos gastronômicos de se fazer comida. Não tenho o livro e nem o encontrei pra baixar na internet, mas Santamaria tinha um blog (e segue mantido por admiradores que postam seus textos e pensamentos) no qual opinava a respeito das polêmicas geradas por ele.
No artigo “Dicen que tú no cocinas”, Santi introduz o tema com a língua mais afiada que suas facas de cortar carnes: “A los cocineros jóvenes que abren restaurante con ciertas pretensiones, les interesa hoy practicar una cocina con las mínimas referencias posibles a la tradición local. Defienden una creación vanguardista baseada, paradójicamente, en copiar a los cocineros de moda, cambiando o adaptando los ingredientes de sus recetas, y al resultado lo llamam 'cocina creativa'. El conocimento, la técnica y la precisión pasan a un segundo plano: lo importante es seguir la corriente dominante y, si es posible, participar en el circo mediático y salir en los rankings y listas de cierta crítica”.
Observe acima que a crítica se refere mais aos seguidores de Adrià do que ao próprio, embora também tenha indiretas ao “circo midiático” que dá holofotes a estes “jóvenes cocineros”, pois é a mídia quem cria as listas de melhores restaurantes nas quais todos querem estar. Nota-se também que na lista que ele linka no blog não consta, entre os dez melhores restaurantes do mundo de 2011, nenhum de sua propriedade, embora também não apareça o El Bulli, de Adrià. Engraçado, ou paradoxo, é que Santamaria é o primeiro chef catalão a receber três estrelas no Guide Michelin.
“Quiero denunciar”, dispara a metralhadora de Santamaria em direção a Adrià, “la cocina que no respeta el entorno natural, social y cultural de su país, porque castra la libertad creativa de los cocineros y contribuye a la aculturación de la ciudadania. Quiero denunciar también el abuso que se hace de la ciencia al relacionaria con la cocina: el método científico permite que, mediante una serie de conjeturas y refutaciones, nuestras teorías se acerquen a la verdad. Este acercamiento a la verdad es el progreso científico. Pero, en cocina, ¿a qué verdad nos acercamos? ¿Qué progreso 'científico' nos lleva a preferir una espuma a un guiso? Denuncio, pues, la impostura de la novedad por la novedad, porque siempre habrá alguien, en algún rincón del mundo, que haya inventado algún artilugio o utilizado algún producto o empleado algún proceso antes que tú, pero no por eso su cocina será mejor que la tuya. La cocina es fundamentalmente cultura y, si quieren, puede llegar a ser arte. La ciencia es otra cosa”.
Quando há um ataque ríspido como o entre aspas acima, sempre haverá um contra-ataque igualmente ríspido. Santamaria não saiu ileso de suas críticas. Uma das contestações mais contundentes anti Santi que encontrei foi a do jornalista e professor da Universidade de Santiago de Compostela, Manuel Gago. Editor do site Capítulo Cero (un menú degustación da vida), o galego também mostra que é bom no tiroteio:
“Cando se produciu a polémica do seu libro 'La Cocina al Desnudo',” inicia Gago, “comecei a ler o volume con calma, para tentar saber de que ía todo isto. (…). Podemos falar do que queiramos, pero o libro é mediocre. Ten tres problemas: unha baixa calidade de edición (reiteracións, estrutura caótica, unha sensación de que todo isto se podía ter escrito en tres parágrafos), unha demagoxia bastante barata e evidente e unha absoluta carencia de dados e de rigor. (…). Santamaría eríxese en defensor da boa cociña, da cociña de sempre, coidada e con gran atención do produto. Constrúe o seu discurso en base ao negativo, com dous grandes inimigos argumentais: o fast food de raíz norteamericana e a cociña experimental de Adriá. Ao lelo, dábame conta da torpe trampa argumental da súa redacción. Lembrei todas as veces que malcomín, com mal produtos, com mal aceite, coccións pésimas, en antros de comidas máis ou menos tradicional, … Todo un malcomer de oficinista ao que Santamaría esquece de forma pasmosa. Un Cociñero de prestixio podería axudar a reflexionar publicamente sobre o problema, pero non o fai. Obviamente, a Santamaría non lle preocupa a saúde pública, ainda que apele a ela continuamente: malia reflexionar sobre os beneficios dunha dieta saudábel e a orixe dos alimentos no epígrafe II (Natural) pero non se chega máis alá. O cociñero preocúpase, máis ben, polos extremos intocábeis das Whopper e os Menús de 200 euros, deixando fóra a boa parte da poboación á que pretende dirixirse... non é difícil decatarse de que máis que defender e propagar, o seu argumento está construído para atacar”.
Assim como no começo eu contrariei o simples fato de criticar por criticar, sem o embasamento necessário para uma antítese, Gago segue o mesmo pensamento. Segundo ele, Santamaria constrói seu argumento para atacar, sendo que aquilo que defende (dieta saudável, origem dos alimentos) se resume apenas a um capítulo do livro. Gago também toca em outro assunto polêmico. De acordo com ele, “La Cocina al Desnudo está construída a partir de recortes de prensa! ¡Este home case non leu ningún estudo completo para facer o libro! Páxinas e páxinas argumentadas a partir de titulares e dúas columnas de El País, La Vanguardia ou El Periódico sobre estudos alimentarios ou agrícolas, sen ir máis alá”. Santamaria é criticado acima pelo fato de teorizar a partir de mínimas referências possíveis, algo que o próprio chef também ataca com tenacidade. Basta observar o início deste texto que vos escrevo, no qual o catalão desce a mamona na rapaziada: “aos jovens cozinheiros interessam praticar uma cozinha com as mínimas referências possíveis...” para logo em seguida citar uma das mais famosas frases do pensador Eugenio D'Ors: “todo lo que no es tradición, es plagio”.
Para a professora espanhola Luisa, autora do blog El Fondo del Estanque, que assim como Santamaria evoca a famigerada frase de Eugenio D'Ors para refletir a respeito do plágio, “tradición significa la transmisión de noticias, composiciones literarias, doctrinas, ritos, costumbres, etc., hecha de generación en generación”. Já o plágio, no entender dela, “se entiende como una copia en lo sustancial de obras ajenas, dándolas como propias”. No entanto, assim como eu, ela reconhece que “no se pude hacer nada creador sin la tradición y como dice el filósofo Nicolai Hartmann, 'nadie empieza con sus propias ideas'. El hombre individual y colectivamente considerado no crea nada sino que sólo desarolla unas posibilidades recibidas. La tradición por lo tanto es necesaria: así como cada persona tenemos una memoria que nos hace ser nosotros mismos, la tradición es la memoria de la comunidad, en tanto que se sabe que todo lo que tiene lo debe a las generaciones pasadas. Sin memoria cada ser humano se iguala, de manera que sin tradición las sociedades se igualan, al mismo tiempo se mueren”.
Um dos livros que faz parte de minha biblioteca básica também recorre ao tema plágio, o empolgante “Distúrbio Eletrônico”. Segundo o Critical Art Ensemble, “o plágio tem sido há muito considerado um mal no mundo cultural. Tipicamente, tem sido visto como um roubo de linguagem, idéias e imagens executado pelos menos talentosos, frequentemente para o aumento da fortuna ou do prestígio pessoal. Talvez as ações dos plagiadores, em determinadas condições sociais, sejam as que mais contribuem para o enriquecimento cultural. Antes do Iluminismo, o plágio tinha sua utilidade na disseminação das idéias. Um poeta inglês podia se apropriar de um soneto de Petrarca (poeta italiano), traduzi-lo e dizer que era seu. O verdadeiro valor dessa atividade estava mais na disseminação da obra para regiões onde de outra forma ela provavelmente não teria aparecido”.
ARTE MODERNA: UM PARALELO COM A GASTRONOMIA PARA CONTRIBUIR COM O DEBATE SOBRE A DIALÉTICA ENTRE O MODERNO E O TRADICIONAL
Bodeg¢n con limones y botella, 1887
O filósofo catalão Eugenio D'Ors foi um dos maiores críticos da Arte Moderna, expressão artística manifestada em diversas áreas (literatura, arquitetura, design, pintura, escultura, teatro, música) de diferentes tendências (cubismo, expressionismo, futurismo, surrealismo, dadaísmo) surgida da virada do século XIX para o XX, e que se contrapunha à tradição acadêmica em vigor até então. Dos modernistas mais conhecidos e fundamentais para a ruptura com o passado podemos destacar os pintores Kandinsky, Picasso, Van Gogh, Mondrian; escritores como T.S. Eliot, Virginia Woolf, James Joyce, Marcel Proust, Franz Kafka; os músicos Schömberg, Stravinsky; e os arquitetos Le Corbusier e Gropius. Junto com o modernismo há o advento do cinema, e Sergei Eisenstein é o pioneiro modernista na sétima arte. Aqui no Brasil os modernistas eclodem com a Semana de Arte Moderna, em 1922; os principais nomes são os irmãos Oswald e Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Manuel Bandeira, Villa Lobos, Menotti del Picchia, Tarsila do Amaral, Plínio Salgado. O modernismo brasileiro é uma inspiração fundamental pra inovações musicais posteriores, tais quais a Bossa Nova (João Gilberto, Tom Jobim), o Samba-Jazz (Moacir Santos, J.T. Meirelles, Sergio Mendes) e o Tropicalismo (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes).
Assim como há uma ruptura com a cozinha tradicional feita por Adrià e uma reação feroz por parte de Santi, a Semana de 22 foi duramente criticada por Monteiro Lobato. O escritor acreditava na ideia que o verdadeiro brasileiro era o homem do interior, então, por conta disso, a cidade de São Paulo e seu povo nunca foram fontes de inspiração para ambientar sua obra nem para caracterizar seus personagens. Ainda mais uma São Paulo que emergia culturalmente e industrialmente, e que seria sede da Semana de Arte Moderna. Uma das raras vezes em que falou sobre a capital paulista, Lobato estava a ironizar a modernidade e urbanidade da metrópole, mas também a cutucar Mário de Andrade, autor do poema “Anhangabaú”, de Paulicéia Desvairada, em 1920:
“parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora
oh larguezas dos meus itinerários!...
estátuas de bronze nu correndo eternamente
num parado desdém pelas velocidades...”
No conto “O Fisco”, Lobato se mostra talentoso como humorista satírico: “No princípio era pântano, com valas de agrião e rãs coaxantes. Hoje é o parque do Anhangabaú, todo ele revaldo, com ruas de asfalto, pérgola grata a namoricos noturnos, a Eva de Brecheret, a estátua dum adolescente nu que corre – e mais coisas. Autos voam pela via central, e cruzam-se pedestres em todas as direções. Lindo parque, civilizadíssimo”, conclui com fina e elegante ironia.
Antes disso, em 1917, duas exposições de pinturas são realizadas em São Paulo, nas quais Lasar Segall e Anita Malfatti concretamente trazem a arte moderna pro Brasil. A reação de Lobato, homem de princípios estéticos conservadores, veio através dum artigo publicado nO Estado de S. Paulo, em dezembro de 1917, com o título “A Proprósito da Exposição Malfatti”: “todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. Quando as sensações do mundo externo transformaram-se em impressões cerebrais, nós 'sentimos'; para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em 'pane' por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá 'sentir' senão um gato, e é falsa a 'interpretação' que do bichano fizer um totó, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes”.
Como vimos, não é de hoje que se dá esse embate entre o tradicional e o moderno, sobre o que é certo ou errado, sobre o que é melhor ou pior, seja no mundo das artes ou da gastronomia. Eu, ainda nos primórdios dos estudos culinários e com recente iniciação profissional na área, não tenho o embasamento suficiente, muito menos a ousadia e pretensão de querer firmar aqui uma posição categórica nessa briga entre Adrià e Santamaria. Tenho opiniões como consumidor e amante da comida. Entendo que as mudanças na gastronomia são essenciais e necessárias, bem como as experimentações que nela precisam ser feitas constantemente. E respeito também aos que se preocupam em manter vivo antigas receitas e costumes. Uma cozinha não vive sem a outra. E nem sempre me atrai o “nada no prato, tudo na conta”, como sabiamente cunhou Paul Bocuse sobre os “palácios da moda”. Precisamos muito de Adrià para o progresso e experimentalismo gastronômico e pela não predominância de matérias-primas de elevado custo (“uma boa sardinha é melhor que uma má lagosta”) sem por isso esquecer da importância conceitual de Santamaria sobre a qualidade dos ingredientes:
“Yo quiero que el público pueda probar en los restaurantes una cocina que no se haga a base de sopas liofilizadas o de bote, ni caldo en pastillas o cubitos, ni tomate de lata, congelados semipreparados, píldoras multivitamínicas y todo el arsenal que la industria química incorpora a nuestra alimentación. Quiero que el comensal pueda escoger producto fresco, elaborado con el máximo cuidado, con una combinación de sabores que no le estrague el paladar, y que se sienta bien tratado en todos los sentidos”.
O melhor seria se, enquanto eu fiquei na frente dos livros e do computador lendo e escrevendo, os dois estivessem preparando a minha janta. Mas não estão. Fui pra cozinha!
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