::txt::Luciano Viegas::
Lava, combustão
Quando o Metá Metá lançou em 2011 um
primeiro disco homônimo de singular simplicidade, pela própria formação enxuta
de trio, não se tratava exatamente de uma revelação ou surpresa para a cena
musical paulistana, pelo contrário, era a chegada a um ápice de maturidade
artística de pessoas plenamente ativas na última década e que, pela lei natural
dos encontros, já vinham se envolvendo numa série de projetos muito próximos, o
que foi culminar nessa reunião prolífica em que Kiko Dinucci, Juçara Marçal e
Thiago França reinventam o lugar da canção na música brasileira, retomando
referências do candomblé com uma dedicação aos mínimos detalhes tanto quanto
Oxum ao se debruçar sobre a composição do marulhar das águas doces.
O imaginário da mitologia africana é
atualizado e, já com um segundo disco lançado, Metal Metal, o som avança em
direção a novas potências de celebração e transe que remetem à experiência do
terreiro, mas, sobretudo, importa que o corpo esteja em sintonia com a pegada
dos arranjos que é a própria assinatura de Kiko Dinucci e que a cabeça esteja
suficientemente aberta para os passeios intergalácticos que o sax de Thiago
França conduz, tal e qual um cicerone que carrega pela mão um visitante perdido
por terras desvirginadas.
E, por fim, a voz acalentadora de
Juçara Marçal que reata o cordão com a mãe terra, trovoa se preciso, narra
fragmentos de uma humanidade que não se deixou dispersar daquele mesmo arrepio
cervical que nossos ancestrais urravam de espanto e êxtase, a descoberta da
força vital dos orixás que anima e harmoniza toda a matéria, por mais que São
Paulo, por mais que a diáspora africana compulsória tenha arrancado prantos
desesperados, sangue negro, substância primordial de resistência que somente na
música se cristaliza e implode toda defesa que possa existir e por acaso queira
nos afastar.
Rainha das cabeças
Juçara Marçal passou a integrar o
quinteto feminino Vesper Vocal, em 1992, cuja estética, mais livre e
experimental impossível, sobrepõe voz em cima de voz, devastando os antigos
cantos gregorianos com releituras dos mais delicados versos que
compositores paulistanos da estirpe de
Luiz Tatit, Adoniran Barbosa, Geraldo Filme e Mano Brown já produziram sobre o
existir na selvagem e suave pluma megalópole.
Conversamos por cerca de meia hora
sem essa de agendar com assessor de
imprensa, não que eu já não tivesse vasculhado o bastante sobre sua história
pessoal, mas porque seria infundado construir um perfil sem que nele ressoassem
algumas palavras espontaneamente rebatidas no calor das perguntas, o atrito
contra o mundo do fazer artístico que em Juçara Marçal capturamos na
tranquilidade das gargalhadas e na seriedade com que dimensiona o lugar no
mundo de sua própria música que opera no “esquema de guerrilha”, quando se
refere a um show que o Metá Metá vai fazer em Fortaleza, organizado por fãs sem
experiência no mercado de produção cultural, o que significa abrir mão de um
cachê para que o som atinja lugares do país onde nem mesmo a iniciativa privada
tomou conhecimento da penetração que o projeto tem entre novas safras de
consumidores de música que só conhecem a realidade do download, enquanto a
indústria tradicional agoniza e os produtores seguem apostando as mesmas
fichas.
Juçara destaca que foi descobrir a
imensidão e as minúcias da música popular brasileira, ampliando
irreversivelmente os horizontes quando
rodou o Brasil nos seus interiores com A Barca, a partir de 1998, e nessas andanças, que também tinham
propósito documental, pôde imergir no jongo, nas cantigas e levadas de Orixá,
danças circulares e tudo o mais que o Brasil oculta debaixo de tapetes
portugueses. Nessa mesma época foi apresentada a Kiko Dinucci, cujas
composições lhe impressionaram de cara e, desde então, eles vêm afinando
parcerias que teve um primeiro grande momento com o disco Padê, de 2007,
em que Juçara interpreta um repertório predominantemente composto por ele, além
de clássicos de Candeia e Batatinha.
Exu abre os caminhos, torna possível
a comunicação, tudo o que Juçara cria parte das vivências, palavra que prefere
usar antes de se considerar uma pesquisadora de música. Ainda que não seja
iniciada em terreiro, lhe impressiona o olhar africano para o sagrado e a
tradução que essas narrativas milenares alcançam da natureza humana.
Juçara acaba de lançar ENCARNADO, primeiro disco que assina sozinha,
passados dois meses já é um clássico, a grande surpresa que não é surpresa do
ano. O Metá Metá tem se apresentado com Os Mulheres Negras, além de retrabalhar
a obra de Itamar Assumpção, dois enormes faróis da música paulistana década de
80; recentemente gravaram Let's Play That, de Jards Macalé, após convite para
participar de coletânea. Thiago França lança mais ou menos um disco por semana,
além de tocar com Criolo, Rodrigo Campos, MarginalS, enquanto Kiko encabeça
outro grupo de extrema relevância para a mesma cena, que tem a voz de Romulo
Fróes, o Passo Torto. A constância e compulsão criativa que os entrelaça não
deixa escapar que, aliás, Metá Metá significa, em iorubá, a fusão de três em
um.
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