:: txt :: Aurélio Munhoz ::
Incendiários debates marcam a vida agitada no universo virtual do Facebook há algumas semanas. Entre tantos, o antagonismo das posições dos usuários sobre a escatologia verbal de Rachel Sheherazade a respeito da agressão da comunidade a um adolescente nas ruas do Rio de Janeiro, o circo de horrores exibido pelas empreiteiras/ clubes de futebol na execução das obras da Copa do Mundo de 2014, bem como o beijo gay que marcou a última novela da principal emissora de TV do País.
O alto grau de octanagem destes debates e sua amplitude confirmam a relevância dos três temas para a sociedade (violência, sexualidade e escândalos na esfera pública), mas vão muito além disso. Comprovam o inacreditável sucesso da rede social que, com apenas dez anos de existência, é dona de um portfólio formado por um bilhão de almas no planeta e mais de 80 milhões no Brasil. O Facebook é, com toda justiça, a jóia da coroa do mundo virtual.
É com estas credenciais que o império construído por Mark Zuckerberg se consolida como uma espécie de versão virtual – elevada, porém, à milionésima potência – do Speakers’ Corner, o despojado pedaço de chão localizado em uma das muitas curvas do famoso Hyde Park, em Londres.
Lá, postados em banquetas trêmulas de madeira ou em escadinhas de metal, malucos de todos os matizes falam (quase) tudo o que querem a uma platéia 99% interessada em ouvir suas chorumelas, mas apenas 1% disposta a empunhar suas bandeiras.
No Speakers’ Corner planetário em que se constitui o FB, o limite é o infinito. Talvez seja justamente esta capacidade de garantir visibilidade em escala inimaginável a cidadãos ignorados pelo mass media que, somada à sanha verborrágica da Nação, explique seu sucesso no Brasil e ajude a entender porque os usuários postam em suas páginas uma paleta de propósitos com tons tão variados: fofocas, desabafos, brincadeiras, confissões, ofensas, desejos, cretinices, medos, frustrações, provocações, cantadas, sacanagens, mentiras e, enfim, verdades e grandezas profundas da condição humana.
Neste rol infindável de motivações, o Facebook tanto pode ser um divã de psicanalista virtual quanto um diário de bordo que os usuários fazem questão de compartilhar com seus iguais (e muitas vezes também com os diferentes) na tentativa de perpetuar suas conquistas, expor convicções, amenizar as dores provocadas pelas chagas da alma que a vida lhes impõe ou apenas exercer uma pretensa vocação para a chacota.
Mundo paralelo
Pois bem. Este artigo sugere que exatamente porque a linguagem escrita é a forma de expressão maior do FB – e que fazemos uso dela com tamanha e tão difusa profusão – a rede social criada por Zuckerberg ganha status da tradução contemporânea mais fidedigna da Nação que somos. Ou que queremos ser.
Mais curioso ainda é que os perfis de muitos usuários brasileiros do Facebook tornam atualíssima a principal contribuição teórica do avô dos historiadores brasileiros, Sérgio Buarque de Hollanda. No clássico dos clássicos “Raízes do Brasil”, obra que completa 74 anos em 2014, Sérgio discorre sobre os brasileiros e foca sua análise em uma característica intrínseca ao seu modo de ser: a cordialidade.
Para o autor, porém, cordial nada tem a ver com fidalguia, mas com a palavra latina cor, cordis; coração, em bom Português. O que significa que, para Sérgio, o tal do homem cordial não é exatamente um sujeito gentil, mas uma pessoa movida a emoções, não aos ditames da razão. A gangorra dos sentimentos, em suma, tão característica dos passionais brasileiros.
Na extensão desta linha de raciocínio, antecipando o que o antropólogo Roberto da Matta sentenciaria quase 50 anos depois em “a Casa e a Rua”, o autor considera ainda que o homem cordial mistura público e privado no mesmo tacho e não é muito afeto a esta tantas vezes desprezada civilidade nacional.
Dito isso e considerando sua teoria como válida, impossível não pensar que o perfil de boa parte do público que navega pelo Facebook – até pela abordagem dos temas citados – nada mais é que a reprodução destes tantos aspectos difusos dos brasileiros, dissecados pelo mestre Sérgio Buarque de Hollanda.
É assim, por exemplo, quando brasileiros de todas as regiões e classes (comprovando que a passionalidade não tem divisas, nem faz distinções de saldos bancários) substituem o cérebro pelo fígado no trato de questões sociais complexas, como os temas citados: violência, sexualidade e corrupção. E, ao fazê-lo, cometem frequentemente o equívoco de tomar suas opiniões como expressões da verdade e, ainda, de ignorar, satanizar ou ridicularizar as posições divergentes.
Isto ocorre porque, inaptos para reunir todos os elementos da vida social capazes de lhes propiciar uma análise realista e objetiva do mundo, rendem-se às emoções e bebem de fontes contaminadas pelo senso comum mais raso possível (não raro os “hoaxes”, boatos de internet reproduzidos à exaustão) e que, por isso mesmo, são incapazes de traduzir uma realidade per si profundamente densa. É um achismo temperado com uma vocação irresistível à intolerância.
Deste cenário ao equívoco da contradição é um pulo. E, para chegar a esta conclusão, basta um exemplo: a abordagem de muitos usuários do Facebook sobre a criminalidade. Muitas das pessoas que condenam a violência nas grandes cidades e a ação muitas vezes truculenta da polícia são as mesmas que defendem seu uso amplo contra todos os que destoam das regras sociais e das leis penais, inclusive com o uso da Pena de Talião e da pena de morte como formas mais eficazes de combate à criminalidade.
Porém, note-se: defendem o uso da violência não pelas próprias mãos, mas pelas dos outros, já que pouquíssimos são os que se dispõem a fazer o trabalho sujo de, por exemplo, trucidar marginais em praça pública. Menos ainda quando são desafiados a fazê-lo, por exemplo, caso o marginal em questão seja um filho ou amigo. Ou seja: a violência que este grupo defende é apenas contra o outro; contra a própria família e os amigos, nunca.
Não falta quem guarde um desapreço crônico ao esforço de praticar os fundamentos que a vida em sociedade exige. É que dá muito trabalho fazer a lição de casa: pensar, debater, reconhecer erros. É duro mudar condutas. Muito mais fácil e divertido é condenar, ignorar, satirizar e hostilizar os que pensam de modo diferente e que ao pertencem ao nosso grupo de interesse.
É o que temos na República Federativa do Brasil. E, por extensão, no nosso mundo virtual paralelo, a República Federativa do Facebook. O segundo não exatamente feito sob medida para o primeiro. Mas com a sua cara. A mesma que precisamos reinventar (começando por nós mesmos) para sermos a Nação socialmente desenvolvida e igualitária que, um dia, queremos – e precisamos – ser.
Incendiários debates marcam a vida agitada no universo virtual do Facebook há algumas semanas. Entre tantos, o antagonismo das posições dos usuários sobre a escatologia verbal de Rachel Sheherazade a respeito da agressão da comunidade a um adolescente nas ruas do Rio de Janeiro, o circo de horrores exibido pelas empreiteiras/ clubes de futebol na execução das obras da Copa do Mundo de 2014, bem como o beijo gay que marcou a última novela da principal emissora de TV do País.
O alto grau de octanagem destes debates e sua amplitude confirmam a relevância dos três temas para a sociedade (violência, sexualidade e escândalos na esfera pública), mas vão muito além disso. Comprovam o inacreditável sucesso da rede social que, com apenas dez anos de existência, é dona de um portfólio formado por um bilhão de almas no planeta e mais de 80 milhões no Brasil. O Facebook é, com toda justiça, a jóia da coroa do mundo virtual.
É com estas credenciais que o império construído por Mark Zuckerberg se consolida como uma espécie de versão virtual – elevada, porém, à milionésima potência – do Speakers’ Corner, o despojado pedaço de chão localizado em uma das muitas curvas do famoso Hyde Park, em Londres.
Lá, postados em banquetas trêmulas de madeira ou em escadinhas de metal, malucos de todos os matizes falam (quase) tudo o que querem a uma platéia 99% interessada em ouvir suas chorumelas, mas apenas 1% disposta a empunhar suas bandeiras.
No Speakers’ Corner planetário em que se constitui o FB, o limite é o infinito. Talvez seja justamente esta capacidade de garantir visibilidade em escala inimaginável a cidadãos ignorados pelo mass media que, somada à sanha verborrágica da Nação, explique seu sucesso no Brasil e ajude a entender porque os usuários postam em suas páginas uma paleta de propósitos com tons tão variados: fofocas, desabafos, brincadeiras, confissões, ofensas, desejos, cretinices, medos, frustrações, provocações, cantadas, sacanagens, mentiras e, enfim, verdades e grandezas profundas da condição humana.
Neste rol infindável de motivações, o Facebook tanto pode ser um divã de psicanalista virtual quanto um diário de bordo que os usuários fazem questão de compartilhar com seus iguais (e muitas vezes também com os diferentes) na tentativa de perpetuar suas conquistas, expor convicções, amenizar as dores provocadas pelas chagas da alma que a vida lhes impõe ou apenas exercer uma pretensa vocação para a chacota.
Mundo paralelo
Pois bem. Este artigo sugere que exatamente porque a linguagem escrita é a forma de expressão maior do FB – e que fazemos uso dela com tamanha e tão difusa profusão – a rede social criada por Zuckerberg ganha status da tradução contemporânea mais fidedigna da Nação que somos. Ou que queremos ser.
Mais curioso ainda é que os perfis de muitos usuários brasileiros do Facebook tornam atualíssima a principal contribuição teórica do avô dos historiadores brasileiros, Sérgio Buarque de Hollanda. No clássico dos clássicos “Raízes do Brasil”, obra que completa 74 anos em 2014, Sérgio discorre sobre os brasileiros e foca sua análise em uma característica intrínseca ao seu modo de ser: a cordialidade.
Para o autor, porém, cordial nada tem a ver com fidalguia, mas com a palavra latina cor, cordis; coração, em bom Português. O que significa que, para Sérgio, o tal do homem cordial não é exatamente um sujeito gentil, mas uma pessoa movida a emoções, não aos ditames da razão. A gangorra dos sentimentos, em suma, tão característica dos passionais brasileiros.
Na extensão desta linha de raciocínio, antecipando o que o antropólogo Roberto da Matta sentenciaria quase 50 anos depois em “a Casa e a Rua”, o autor considera ainda que o homem cordial mistura público e privado no mesmo tacho e não é muito afeto a esta tantas vezes desprezada civilidade nacional.
Dito isso e considerando sua teoria como válida, impossível não pensar que o perfil de boa parte do público que navega pelo Facebook – até pela abordagem dos temas citados – nada mais é que a reprodução destes tantos aspectos difusos dos brasileiros, dissecados pelo mestre Sérgio Buarque de Hollanda.
É assim, por exemplo, quando brasileiros de todas as regiões e classes (comprovando que a passionalidade não tem divisas, nem faz distinções de saldos bancários) substituem o cérebro pelo fígado no trato de questões sociais complexas, como os temas citados: violência, sexualidade e corrupção. E, ao fazê-lo, cometem frequentemente o equívoco de tomar suas opiniões como expressões da verdade e, ainda, de ignorar, satanizar ou ridicularizar as posições divergentes.
Isto ocorre porque, inaptos para reunir todos os elementos da vida social capazes de lhes propiciar uma análise realista e objetiva do mundo, rendem-se às emoções e bebem de fontes contaminadas pelo senso comum mais raso possível (não raro os “hoaxes”, boatos de internet reproduzidos à exaustão) e que, por isso mesmo, são incapazes de traduzir uma realidade per si profundamente densa. É um achismo temperado com uma vocação irresistível à intolerância.
Deste cenário ao equívoco da contradição é um pulo. E, para chegar a esta conclusão, basta um exemplo: a abordagem de muitos usuários do Facebook sobre a criminalidade. Muitas das pessoas que condenam a violência nas grandes cidades e a ação muitas vezes truculenta da polícia são as mesmas que defendem seu uso amplo contra todos os que destoam das regras sociais e das leis penais, inclusive com o uso da Pena de Talião e da pena de morte como formas mais eficazes de combate à criminalidade.
Porém, note-se: defendem o uso da violência não pelas próprias mãos, mas pelas dos outros, já que pouquíssimos são os que se dispõem a fazer o trabalho sujo de, por exemplo, trucidar marginais em praça pública. Menos ainda quando são desafiados a fazê-lo, por exemplo, caso o marginal em questão seja um filho ou amigo. Ou seja: a violência que este grupo defende é apenas contra o outro; contra a própria família e os amigos, nunca.
Não falta quem guarde um desapreço crônico ao esforço de praticar os fundamentos que a vida em sociedade exige. É que dá muito trabalho fazer a lição de casa: pensar, debater, reconhecer erros. É duro mudar condutas. Muito mais fácil e divertido é condenar, ignorar, satirizar e hostilizar os que pensam de modo diferente e que ao pertencem ao nosso grupo de interesse.
É o que temos na República Federativa do Brasil. E, por extensão, no nosso mundo virtual paralelo, a República Federativa do Facebook. O segundo não exatamente feito sob medida para o primeiro. Mas com a sua cara. A mesma que precisamos reinventar (começando por nós mesmos) para sermos a Nação socialmente desenvolvida e igualitária que, um dia, queremos – e precisamos – ser.
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