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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

[tabaré] CUIDADO COM ESSA PUTA SAGRADA

:: txt :: Leonardo Bomfim ::

  Na segunda metade do século dezenove, toma corpo em boa parte dos escritos dos artistas um drama que, de certa forma, possibilita (e justifica) a existência da pintura impressionista: a relação entre o artista e o mundo, aquilo que estava entre a sensibilidade do artista e o mundo em seu aspecto virginal. Esse era o sonho. A realidade que vemos nas obras é justamente a impossibilidade de fazer da arte a relação entre o artista e o mundo. Era inevitável que o pôr em obra escancarasse a sensibilidade do artista no jogo de forças com o mundo, este objeto tão sagrado quanto utópico dentro de uma trajetória moderna. Em seu famoso ensaio sobre uma arte ignorada, publicado em 1959, o crítico francês Michel Mourlet destaca a questão com uma precisão cirúrgica:

  A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo, ou seja, uma chance dada à realidade contingente e inacabada de se locupletar, de um golpe preciso, segundo os desejos do homem. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio termo, era preciso recriá-lo em uma matéria indireta, transpô-lo, proceder por alusões e convenções, na impossibilidade de uma possessão imediata.

  A impossibilidade de uma possessão imediata era o grande drama do impressionismo – mas não somente dele. Seria um engano pensar que o problema moderno que resultará (ou encontrará) o cinema começa ali. Erwin Panofsky o identifica como a questão anunciada (mas não consumada) pelo Renascimento: o problema sujeito-objeto, o eu e o mundo, a espontaneidade e a receptividade, o dado material e a atividade formal. No século dezenove, ela se intensifica, até chegarmos ao impasse claro em suas últimas décadas: está em Cézanne, está em Van Gogh, está em Gauguin, quando já encontramos a recusa da arte como uma imitação da natureza a partir da ideia de que a imaginação é a principal matéria-prima do artista, o único meio de subir em direção a Deus. Em abordagens diferentes (Cézanne devoto da natureza, Van Gogh em crise com a natureza e Gauguin rompendo com a natureza), os três revelam uma progressiva mudança de pensamento na relação entre o artista e o que está diante dele. É sempre perigoso determinar uma linearidade na história da arte (que de fato não existe), mas é sintomático que a angústia revelada por Cézanne em cartas renove basicamente os anseios que apareciam no Renascimento: a ideia de que se deve fugir dos mestres (no caso do pintor francês, do Louvre) e encarar a natureza. Fazer da pintura uma atitude do olhar. Trata-se de um impasse que, como antecipa Gauguin, resultaria na catarse libertária do século vinte. Não havia opção: ou a arte acabava ali, com o naufrágio impressionista, ou a questão da arte deveria mudar.

  E de fato muda. A ruptura está bem ilustrada na mítica frase de Picasso: “eu não procuro, encontro”. A procura, o grande drama do impressionismo, se torna uma página virada (a procura ganha uma sobrevida com Marcel Duchamp, mas agora num sentido intelectual). André Bazin dirá que a fotografia e o cinema são os grandes culpados, libertam a pintura para abstração, para que ela se torne apenas o fruto da sensibilidade do homem. Não seremos tão eufóricos, o cinema é apenas contemporâneo de um esgotamento da impossibilidade da relação sujeito-objeto que se consuma justamente na pintura impressionista. De qualquer forma, Bazin não fala ao vento: é notável que Gauguin defenda uma pintura primitivista em resposta à presença da reprodução fotográfica no final do século dezenove, citando inclusive as experiências de Edward Muybridge, um dos mais célebres pré-cinemas.

  Dois exemplos extremos do impressionismo que demonstram esse esgotamento: Claude Monet, como observa o ensaísta inglês David Sylvester, fazia do ato de pintar um meio de se perder na natureza. Novamente: a relação é o que interessa, quando o artista e natureza se tornam uma coisa só. Mas Monet não via o acaso, importante destacar, seu famoso jardim de Giverny, das grandes musas de sua pintura, era cuidadosamente construído, arranjado, arquitetado. Cito Sylvester: “ele não remodelava aquilo que via: modelava aquilo que iria ver”. É uma trapaça tipicamente impressionista. Ou seja, para tentar imprimir a relação sujeito-objeto na obra, Monet criava o seu objeto. Cito agora John Rewald, estudioso do impressionismo, sobre o procedimento de Pierre-Auguste Renoir:

  Essa nova abordagem da natureza pouco a pouco levou os pintores a estabelecer uma nova paleta e a criar uma nova técnica, apropriada a seus esforços para captar a fugacidade dos jogos de luz. (…) Como a mão é mais lenta do que o olho, que é rápido na percepção dos efeitos instantâneos, uma técnica que permitisse que os pintores trabalhassem com rapidez era essencial se quiserem acompanhar suas percepções. Ao aludir a esses problemas, Renoir costumava dizer: “Ao ar livre trapaceia-se todo o tempo”. Contudo, sua “trapaça” consistia apenas em escolher entre a multiplicidade de aspectos oferecidos pela natureza, a fim de traduzir os milagres da luz em uma linguagem de cores bidimensional e também de transmitir o aspecto escolhido com as cores e a execução que mais se aproximassem da impressão recebida.

 As malandragens de Monet e Renoir na tentativa de “acompanhar suas percepções” explicam por que Lumière foi colocado como o último pintor impressionista. Porque depois de Lumière (poderíamos dizer depois do cinema caso Méliès não mudasse seu rumo radicalmente introduzindo a rigidez cênica à coisa toda), toda essa procura, a possessão imediata que Mourlet cita em sua observação, se torna inútil. Retorno à frase de Picasso: o artista apenas encontra. O mundo está nele. Nesse sentido, Lumière é citado muitas vezes como o último pintor impressionista porque, mesmo que timidamente, seus pequenos filmes apresentam justamente o sonho impossível da pintura moderna: o mundo sendo olhado ao mesmo tempo em que se olha o mundo.


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