::txt::Jucazito::
Todo dia 31 de october é o mesmo mimimi nas redes sociais: que devemos festejar o saci, e não o dia das bruxas, pois isso fere nossas tradições nacionais ao alimentar uma imposição cultural americana. Vamos lembrar alguns fatos. Essa comemoração vem de longa data, antes mesmo do descobrimento da América. Sua origem é celta, não é americana. E as bruxas, é bom lembrar, foram uma das inúmeras vítimas do cristianismo, até hoje o uso do termo bruxa tem conotação perojativa.
Essas manifestações na rede trazem à tona um nacionalismo xenófabo e um fundamentalismo religioso. Não esqueçamos que as línguas originárias do Brasil deixaram de ser faladas, a não ser, claro, por pouquíssimas aldeias que resistem ao progresso, porque no Império proibiu-se de usar esses idiomas, estabelecendo-se uma lei onde obrigava-se a falar somente português. Trago essa lembraça, pois há algum tempo, um deputado do PSEUdoB queria proibir expressões estrangeiras.
Pra quem se proclama libertário sem fronteiras, aderir a esse nacionalismo e ao fundamentalismo religioso é da mais pura contradição. Assim como querer pular num pé só, pra se dizer brasileiro, mas ao mesmo tempo prefere ouvir Beatles ao invés de Luan Santana, ambos crias da indústria cultural. Porque não larga o Marlboro, o iPad, o Bob Dylan, a Heinecken e passa a consumir somente produtos nacionais? Coerência, antes de sair por aí com esse papo furado de extrema direita, xenófabo e preconceituoso.
E que as bruxas tenham seu dia lembrado de outra forma, talvez, trazendo pra luz do debate todo mal causado desde há tempos pela Igreja Católica a tudo aquilo que não está dentro do seu padrão imposto como sagrado. E, só pra provocar, hoje nasceram Dunga e Van Basten, dois renomados atletas do futebol. É claro que meu louvor fica com o holandês, muito mais craque e cidadão do que esse babaca mal humorado que tem nome de um personagem estrangeiro!
#CADÊ MEU CHINELO?
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
[...] MORRI
::txt::Jucazito::
morri
faz um ano
não me engano
ouvi
num abano
cão beltrano
comi
sob um pano
pão vegano
corri
de um insano
são caetano
morri
faz um ano
não me engano
ouvi
num abano
cão beltrano
comi
sob um pano
pão vegano
corri
de um insano
são caetano
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
[a vida como ela noé] CONFISSÕES
:: txt :: Paulo Wainberg ::
Eu confesso que não sou cem por cento uma boa pessoa. Muitas vezes, sou mau.
Eu confesso que a maioria dos meus amores não foram correspondidos, mas o que foram valeram a pena.
Eu confesso que o dinheiro nunca foi uma prioridade, e isto foi um erro.
Eu confesso que fui preguiçoso, desleixado e irresponsável, mas sempre me preocupei.
Eu confesso que quando estou escrevendo, sempre paro para jogar paciência Spider.
Eu confesso que todas as minhas paixões sempre foram proibidas.
Eu confesso que chupei bico até os oito anos, mas nunca suportei leite.
Eu confesso que tenho seis personalidades conhecidas e noventa incontroláveis.
Eu confesso que nunca confessei nada que fosse verdade.
Eu confesso que não sou cem por cento uma boa pessoa. Muitas vezes, sou mau.
Eu confesso que a maioria dos meus amores não foram correspondidos, mas o que foram valeram a pena.
Eu confesso que o dinheiro nunca foi uma prioridade, e isto foi um erro.
Eu confesso que fui preguiçoso, desleixado e irresponsável, mas sempre me preocupei.
Eu confesso que quando estou escrevendo, sempre paro para jogar paciência Spider.
Eu confesso que todas as minhas paixões sempre foram proibidas.
Eu confesso que chupei bico até os oito anos, mas nunca suportei leite.
Eu confesso que tenho seis personalidades conhecidas e noventa incontroláveis.
Eu confesso que nunca confessei nada que fosse verdade.
domingo, 27 de outubro de 2013
[...] LOU REED
:: txt :: Júlio Freitas::
O padrinho do punk se foi. Aquela pequena cena artística da qual fez parte na década de 60 tornou-se um momento revolucionário da música. Velvet Underground, Ramones, MC5, Stooges, New York Dolls, Patti Smith Group, além da Factory, de Andy Warhol, local de experimentações artísticas regadas a drogas pesadas.
Venus in Furs, tratamento de choque, cabeças em alto-falantes, shows em conveções psiquiátricas, lobotomias frontais. Hey babe, take a walk on the wild side!
"Rock & roll é tão fabuloso, as pessoas deveriam começar a morrer por ele. Você não está entendendo. A música te pôs de novo no ritmo pra que você pudesse sonhar. Uma geração inteira no embalo de um baixo Fender...
As pessoas simplesmente devem morrer pela música. As pessoas estão morrendo por tudo o mais, então por que não pela música? Morrer por ela. Não é bárbaro? Você não morreria por algo bárbaro?
Talvez eu deva morrer. Além do mais, todos os grandes cantores de blues morreram. Mas a vida está ficando melhor agora.
Não quero morrer. Quero?"
Lou Reed
O padrinho do punk se foi. Aquela pequena cena artística da qual fez parte na década de 60 tornou-se um momento revolucionário da música. Velvet Underground, Ramones, MC5, Stooges, New York Dolls, Patti Smith Group, além da Factory, de Andy Warhol, local de experimentações artísticas regadas a drogas pesadas.
Venus in Furs, tratamento de choque, cabeças em alto-falantes, shows em conveções psiquiátricas, lobotomias frontais. Hey babe, take a walk on the wild side!
"Rock & roll é tão fabuloso, as pessoas deveriam começar a morrer por ele. Você não está entendendo. A música te pôs de novo no ritmo pra que você pudesse sonhar. Uma geração inteira no embalo de um baixo Fender...
As pessoas simplesmente devem morrer pela música. As pessoas estão morrendo por tudo o mais, então por que não pela música? Morrer por ela. Não é bárbaro? Você não morreria por algo bárbaro?
Talvez eu deva morrer. Além do mais, todos os grandes cantores de blues morreram. Mas a vida está ficando melhor agora.
Não quero morrer. Quero?"
Lou Reed
terça-feira, 22 de outubro de 2013
[bolo'bolo] CRONOGRAMA PROVISÓRIO
Nós mesmos somos responsáveis pelos atrasos. O roteiro seguinte pode
ser útil para julgar nosso progresso:
1984 - Panfletos de bolo'bolo, selos, posters e marcas estão
espalhados pelo mundo nas principais línguas. Nós-dysco-ABC se
desenvolvem em muitas vizinhanças, cidades e regiões, são feitos
contratos de auto-suficiência. Surgem os primeiros trico-nós. Alguns
dyscos se transformam em pioneiros bolos experimentais. Em alguns
bairros pessoas estudam a utilidade prédios e espaços para os bolos,
centros de troca e coisas assim, e fazem outros planos provisórios.
Mais e mais ruas são bloqueadas ao trânsito de automóveis. A Máquina
política passa em toda parte por crises de legitimidade, e tem
problemas para manter o controlo. Órgãos do Estado cumprem suas
funções repressivas desatentos e relaxados.
1985 - Existem redes dysco e trico, cumprindo tarefas cada vez mais
práticas e cotidianas: ajuda mútua para comida, ajuda planetária, a
criação de relações de troca entre fazendeiros e dyscos rurais. Em
algumas regiões pequenas a Máquina perde sua influência e áreas
bolo'bolo independentes crescem despercebidas. Os aparatos do Estado
sofrem ataques substrutivos.
1986 - Regiões maiores se tornam independentes, entre outras, no
Oregon, Tadjiquistão, Saxônia, Gales, Suíça, Austrália, Gana, Bocaina,
Goiás, Nessas áreas a agricultura é modelada pela auto-suficiência,
constroem-se estruturas de bolo'bolo, o intercâmbio planetário se
fortalece. Até o fim do ano existe um mosaico planetário de regiões e
cidades autônomas (vudo), bolos independentes, sucatas da Máquina, de
Estados amputados e de bases militares. Estouram desordens
generalizadas. A Máquina tenta esmagar os bolos militarmente, mas as
tropas se amotinam. Os dois Superpoderes desistem do seu joguinho de
blocos e se unem na EERU (Estados Estáveis e Repúblicas Unidas). A
EERU constrói uma nova e descontaminada base industrial, Monomat, na
Ásia interior.
1987 - Os sistemas internacionais de transportes e comunicação entram
em colapso. Duzentas regiões autônomas promovem sua primeira convenção
planetária (asa'dala) em Beirute. Elas concordam em restabelecer o
sistema de comunicações em novas bases. A EERU fica limitada a
Monomat, e o resto do mundo sai fora do seu controle. No outono haverá
auto-suficiência por toda parte e sistemas planetários de ajuda mútua
em emergências. A fome e o Estado são abolidos. Até o final do ano os
trabalhadores de Monomat desertam e escapam para a zona bolo. A EERU
desaparece sem dissolução formal e sem ter queimado a sua bandeira
vermelha e branca com a estrela azul.
1988 - bolo'bolo
2345
2346 - bolo'bolo perde sua força à medida que "os brancos" (um tipo
de epidemia cultural) se espalham e substituem todos os outros tipos
de bolos. bolo'bolo cai numa era de caos e contemplação.
2764 - Início de Yuvuo. Todos os registros da pré- história (até
2763) foram perdidos. Tawhuac põe outro disquete no drive.
* A edição original de bolo'bolo, suíça, é de 1983.
segunda-feira, 21 de outubro de 2013
domingo, 20 de outubro de 2013
[...] NO BAR
:: txt :: Itamar Ifarraguirre Neto ::
Ao bar de sempre numa noite envolvente de sexta-feira. A meia luz da lua com um sorriso, num céu escuríssimo. Várias pessoas vão a algum lugar estratégico para se distrair: esquecer os empecilhos da vida e esvaziar os balões da imaginação. ''Cada vez mais meios para viver, mas nenhuma razão pela qual viver’’. Grita um homem ‘’alto’’ perto do banheiro, encostado na parede quase babando e desinteressado em voltar para casa. Aí, sorvo a minha cerveja bem gelada e aperto os lábios molhados. Isto, sim, uma sensação de alívio, o peso do corpo parece que evapora como uma velha melodia de música nos ouvidos. E, olhos ocupados assistindo a tv; o ouvido acompanhando zunido das conversas em vários ângulos do estabelecimento.
Todos meus amigos da empresa bebem e sorriem e berram. Parece um ritual primitivo sob um conjunto de símbolos interpretativos repetitivos sem nenhuma informação, ou algo não louvável. Todavia, ninguém é obrigado entender as mensagens subtendidas do seu cotidiano, inúmeras mensagens recebem sem ao mesmo pensá-las. Portanto acaba-se a perda de significado de sua própria existência de espaço, tempo e mente.
Ao bar de sempre numa noite envolvente de sexta-feira. A meia luz da lua com um sorriso, num céu escuríssimo. Várias pessoas vão a algum lugar estratégico para se distrair: esquecer os empecilhos da vida e esvaziar os balões da imaginação. ''Cada vez mais meios para viver, mas nenhuma razão pela qual viver’’. Grita um homem ‘’alto’’ perto do banheiro, encostado na parede quase babando e desinteressado em voltar para casa. Aí, sorvo a minha cerveja bem gelada e aperto os lábios molhados. Isto, sim, uma sensação de alívio, o peso do corpo parece que evapora como uma velha melodia de música nos ouvidos. E, olhos ocupados assistindo a tv; o ouvido acompanhando zunido das conversas em vários ângulos do estabelecimento.
Todos meus amigos da empresa bebem e sorriem e berram. Parece um ritual primitivo sob um conjunto de símbolos interpretativos repetitivos sem nenhuma informação, ou algo não louvável. Todavia, ninguém é obrigado entender as mensagens subtendidas do seu cotidiano, inúmeras mensagens recebem sem ao mesmo pensá-las. Portanto acaba-se a perda de significado de sua própria existência de espaço, tempo e mente.
sábado, 19 de outubro de 2013
[...] BLACK BLOCK
:: psy :: Chacal ::
o capitalismo aderna e naufraga. o capitalismo faz água. baumaniemos: o neoliberalismo, forma terminal do capitalismo, se baseia no consumo, na concentração de renda e na exclusão. qual o papel do estado? vigiar e punir (nenhuma “autoridade” se manifesta contra a violência da polícia. muito menos a mídia). as mega incorporações (bancos, indústrias, empreiteiras, etc) dão as ordens. elas não tem cara. seu maior disfarce. a mídia e a segurança pública, seus paus mandados.
o mundo se globalizou faz tempo. tanto a ação quanto a reação. brasil, turquia, países árabes, espanha, new york, tudo a mesma luta contra o neoliberalismo excludente terminal. as armas e os métodos da polícia, a estratégia da mídia, criadora de mentiras q viram verdades, são transnacionais. de outro lado, os governos populares da américa latina, os sit-ins, os black blocks, a descentralização do comando, as redes sociais, tudo se espalhando pelo mundo.
gostaria de calar e dormir, mas como astrofísicos, quando descobrem que a luz pode ser onda e partícula ao mesmo tempo e que a linguagem, baseada no isso ou aquilo, não dá conta de expressar, astrofísicos que não conseguem calar, querendo anunciar paratodos suas descobertas.
a polícia apresenta suas armas. não sei bem como driblá-las. a união de milhares de pessoas e as urnas são nossas poucas armas. a vida combatendo a morte. faz bem se alimentar bem para manter a saúde, o discernimento, o entusiasmo. e vamos pra cima. a vida pode mais que a morte.
o capitalismo aderna e naufraga. o capitalismo faz água. baumaniemos: o neoliberalismo, forma terminal do capitalismo, se baseia no consumo, na concentração de renda e na exclusão. qual o papel do estado? vigiar e punir (nenhuma “autoridade” se manifesta contra a violência da polícia. muito menos a mídia). as mega incorporações (bancos, indústrias, empreiteiras, etc) dão as ordens. elas não tem cara. seu maior disfarce. a mídia e a segurança pública, seus paus mandados.
o mundo se globalizou faz tempo. tanto a ação quanto a reação. brasil, turquia, países árabes, espanha, new york, tudo a mesma luta contra o neoliberalismo excludente terminal. as armas e os métodos da polícia, a estratégia da mídia, criadora de mentiras q viram verdades, são transnacionais. de outro lado, os governos populares da américa latina, os sit-ins, os black blocks, a descentralização do comando, as redes sociais, tudo se espalhando pelo mundo.
gostaria de calar e dormir, mas como astrofísicos, quando descobrem que a luz pode ser onda e partícula ao mesmo tempo e que a linguagem, baseada no isso ou aquilo, não dá conta de expressar, astrofísicos que não conseguem calar, querendo anunciar paratodos suas descobertas.
a polícia apresenta suas armas. não sei bem como driblá-las. a união de milhares de pessoas e as urnas são nossas poucas armas. a vida combatendo a morte. faz bem se alimentar bem para manter a saúde, o discernimento, o entusiasmo. e vamos pra cima. a vida pode mais que a morte.
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
[agência pirata] ABC DA DESINFORMAÇÃO
:: txt :: Olavo De Carvalho ::
Psicologicamente, Pearl Harbor é ainda hoje um símbolo aglutinador do patriotismo americano, mas, em termos substantivos, foi uma tremenda vitória da
desinformação soviética.
Para quem zela pela sobrevivência do seu cérebro num tempo de naufrágio universal da inteligência, nada mais urgente do que compreender o que é realmente “desinformação”. O uso corrente da palavra como rótulo infamante para denegrir qualquer opinião adversa é garantia segura de que as verdadeiras operações de desinformação passarão despercebidas, condição necessária e quase suficiente do seu sucesso.
Só há dois tipos de desinformação genuína, e cada um deles requer muito mais planejamento e execução cuidadosa do que o mero vício jornalístico de espalhar mentirinhas ideologicamente sedutoras.
O primeiro tipo – e, de longe, o mais importante – é aquele que tem como alvo não o público em geral, a massa ignara, e sim os homens do poder, os que tomam decisões de grande alcance. Dificilmente uma dessas criaturas se deixa orientar pelo que sai na mídia popular. Para influenciá-las é preciso colocar no seu entourage (ou conquistar mediante suborno, chantagem etc.) assessores técnicos que sejam da sua plena confiança. E mesmo estes têm de ser muito
prudentes no manejo do fluxo de informações que levará seus chefes a tomar as decisões erradas, favoráveis ao inimigo que controla de longe a situação. A importância dessas operações é imensurável, muito mais do que o cidadão comum pode imaginar, e ninguém foi (e é ainda) mais hábil em manejá-las do que a boa e velha KGB (atual FSB). Graças à pletora de documentos secretos revelados após a queda da URSS, hoje sabe-se que desde os anos 40 os agentes soviéticos moldaram a seu belprazer algumas das principais decisões estratégicas do governo de Washington no cenário internacional, induzindo-o a trabalhar contra os interesses mais vitais da nação americana.
O exemplo mais claro e didático está no livro Operation Snow: How a Soviet Mole in FDR’s White House Triggered Pearl Harbor, de John Koster (Regnery, 2012). “Mole” (toupeira) é, no jargão dos serviços de inteligência, o termo técnico que designa o agente infiltrado. A toupeira, no caso, foi Harry Dexter White, alto funcionário do Tesouro, homem de confiança de Franklin Delano Roosevelt e, como os documentos comprovam, agente soviético.
A situação era a seguinte em 1941. O governo militarista e expansionista do Japão estava dividido entre duas correntes: uma queria retormar a velha guerra com a Rússia. A outra queria ajudar os nazistas contra as potências ocidentais. A Rússia, sob ataque alemão desde junho, não podia oferecer resistência eficaz aos japoneses do outro lado do território. Profundo conhecedor da língua, da cultura e da política japonesas, e colocado, ademais, numa posição desde a qual podia facilmente influenciar as decisões econômicas do governo Roosevelt, Harry Dexter White foi contratado pelos soviéticos para criar artificialmente um conflito entre o Japão e os EUA. A seqüência de memorandos e estudos estratégicos com que ele remoldou para pior as relações econômicas entre os dois países foi uma obra de gênio, levando Roosevelt a impor às importacões japonesas de petróleo limitações drásticas que do ponto de vista americano pareciam simplesmente razoáveis, mas que no contexto japonês, e em língua japonesa, soavam como verdadeiras declarações de guerra. O Japão respondeu com o ataque a Pearl Harbor em 7
de dezembro de 1941 – não por coincidência, um dia depois que a Rússia, livre da ameaça nipônica, lançava aos alemães um contra-ataque maciço.
Psicologicamente, Pearl Harbor é ainda hoje um símbolo aglutinador do patriotismo americano, mas, em termos substantivos, foi uma tremenda vitória da desinformação soviética.
O outro tipo de desinformação é antes uma obra de engenharia social. Não se dirige ao governo para moldar suas decisões, mas, ao contrário, vem do governo e de seus centros de poder associados e desce para a massa popular, depois que as decisões já estão tomadas e é preciso, para implementá-las, conquistar o apoio do eleitorado, mantê-lo na total ignorância do que os altos círculos estão fazendo ou ajustar sua conduta aos padrões exigidos pela nova política.
Pode-se chamar esses dois tipos de micro e macrodesinformação. As dificuldades são consideráveis em ambos os casos, mas de natureza bem diversa. Se o primeiro é inviável sem o máximo de sigilo e o manejo fino do fluxo de informações, o segundo requer o controle completo dos meios maiores e mais prestigiosos de difusão, podendo no entanto coexistir com alguma contestação menor – ou marginal -- que, estatisticamente, não afete os sentimentos da massa popular.
No Brasil essa condição é facílima de alcançar, pois a grande mídia foi sempre dependente de verbas governamentais e não se atreve a morder a mão que a alimenta. Foi assim que os maiores jornais e canais de TV consentiram em ocultar a existência do Foro de São Paulo até o momento em que, dominador completo da situação continental, este já podia se exibir em público sem maiores riscos.
Nos EUA a coisa teve de ser precedida de um longo e complexo processo de concentração da mídia nas mãos dos grupos globalistas que hoje disputam com a Rússia as afeições do bloco islâmico. Quando esses grupos colocaram Barack Hussein Obama no governo para minar o poder nacional dos EUA e operar um giro de 180 graus na política externa americana, fazendo do antigo aliado de Israel o maior protetor que os radicais muçulmanos já tiveram no Ocidente, a mídia já estava preparada para ocultar não somente a biografia altamente comprometedora do presidente, mas até algumas das suas executive orders mais ambiciosas e daninhas, que entram em vigor sem que a população fique sabendo de nada.
Psicologicamente, Pearl Harbor é ainda hoje um símbolo aglutinador do patriotismo americano, mas, em termos substantivos, foi uma tremenda vitória da
desinformação soviética.
Para quem zela pela sobrevivência do seu cérebro num tempo de naufrágio universal da inteligência, nada mais urgente do que compreender o que é realmente “desinformação”. O uso corrente da palavra como rótulo infamante para denegrir qualquer opinião adversa é garantia segura de que as verdadeiras operações de desinformação passarão despercebidas, condição necessária e quase suficiente do seu sucesso.
Só há dois tipos de desinformação genuína, e cada um deles requer muito mais planejamento e execução cuidadosa do que o mero vício jornalístico de espalhar mentirinhas ideologicamente sedutoras.
O primeiro tipo – e, de longe, o mais importante – é aquele que tem como alvo não o público em geral, a massa ignara, e sim os homens do poder, os que tomam decisões de grande alcance. Dificilmente uma dessas criaturas se deixa orientar pelo que sai na mídia popular. Para influenciá-las é preciso colocar no seu entourage (ou conquistar mediante suborno, chantagem etc.) assessores técnicos que sejam da sua plena confiança. E mesmo estes têm de ser muito
prudentes no manejo do fluxo de informações que levará seus chefes a tomar as decisões erradas, favoráveis ao inimigo que controla de longe a situação. A importância dessas operações é imensurável, muito mais do que o cidadão comum pode imaginar, e ninguém foi (e é ainda) mais hábil em manejá-las do que a boa e velha KGB (atual FSB). Graças à pletora de documentos secretos revelados após a queda da URSS, hoje sabe-se que desde os anos 40 os agentes soviéticos moldaram a seu belprazer algumas das principais decisões estratégicas do governo de Washington no cenário internacional, induzindo-o a trabalhar contra os interesses mais vitais da nação americana.
O exemplo mais claro e didático está no livro Operation Snow: How a Soviet Mole in FDR’s White House Triggered Pearl Harbor, de John Koster (Regnery, 2012). “Mole” (toupeira) é, no jargão dos serviços de inteligência, o termo técnico que designa o agente infiltrado. A toupeira, no caso, foi Harry Dexter White, alto funcionário do Tesouro, homem de confiança de Franklin Delano Roosevelt e, como os documentos comprovam, agente soviético.
A situação era a seguinte em 1941. O governo militarista e expansionista do Japão estava dividido entre duas correntes: uma queria retormar a velha guerra com a Rússia. A outra queria ajudar os nazistas contra as potências ocidentais. A Rússia, sob ataque alemão desde junho, não podia oferecer resistência eficaz aos japoneses do outro lado do território. Profundo conhecedor da língua, da cultura e da política japonesas, e colocado, ademais, numa posição desde a qual podia facilmente influenciar as decisões econômicas do governo Roosevelt, Harry Dexter White foi contratado pelos soviéticos para criar artificialmente um conflito entre o Japão e os EUA. A seqüência de memorandos e estudos estratégicos com que ele remoldou para pior as relações econômicas entre os dois países foi uma obra de gênio, levando Roosevelt a impor às importacões japonesas de petróleo limitações drásticas que do ponto de vista americano pareciam simplesmente razoáveis, mas que no contexto japonês, e em língua japonesa, soavam como verdadeiras declarações de guerra. O Japão respondeu com o ataque a Pearl Harbor em 7
de dezembro de 1941 – não por coincidência, um dia depois que a Rússia, livre da ameaça nipônica, lançava aos alemães um contra-ataque maciço.
Psicologicamente, Pearl Harbor é ainda hoje um símbolo aglutinador do patriotismo americano, mas, em termos substantivos, foi uma tremenda vitória da desinformação soviética.
O outro tipo de desinformação é antes uma obra de engenharia social. Não se dirige ao governo para moldar suas decisões, mas, ao contrário, vem do governo e de seus centros de poder associados e desce para a massa popular, depois que as decisões já estão tomadas e é preciso, para implementá-las, conquistar o apoio do eleitorado, mantê-lo na total ignorância do que os altos círculos estão fazendo ou ajustar sua conduta aos padrões exigidos pela nova política.
Pode-se chamar esses dois tipos de micro e macrodesinformação. As dificuldades são consideráveis em ambos os casos, mas de natureza bem diversa. Se o primeiro é inviável sem o máximo de sigilo e o manejo fino do fluxo de informações, o segundo requer o controle completo dos meios maiores e mais prestigiosos de difusão, podendo no entanto coexistir com alguma contestação menor – ou marginal -- que, estatisticamente, não afete os sentimentos da massa popular.
No Brasil essa condição é facílima de alcançar, pois a grande mídia foi sempre dependente de verbas governamentais e não se atreve a morder a mão que a alimenta. Foi assim que os maiores jornais e canais de TV consentiram em ocultar a existência do Foro de São Paulo até o momento em que, dominador completo da situação continental, este já podia se exibir em público sem maiores riscos.
Nos EUA a coisa teve de ser precedida de um longo e complexo processo de concentração da mídia nas mãos dos grupos globalistas que hoje disputam com a Rússia as afeições do bloco islâmico. Quando esses grupos colocaram Barack Hussein Obama no governo para minar o poder nacional dos EUA e operar um giro de 180 graus na política externa americana, fazendo do antigo aliado de Israel o maior protetor que os radicais muçulmanos já tiveram no Ocidente, a mídia já estava preparada para ocultar não somente a biografia altamente comprometedora do presidente, mas até algumas das suas executive orders mais ambiciosas e daninhas, que entram em vigor sem que a população fique sabendo de nada.
terça-feira, 15 de outubro de 2013
[nem te conto] ZÉ PRETO
:: txt :: Aleilton Fonseca ::
Ninguém dava atenção a Zé Preto, mas ele e seu cachorro insistiam em me reconquistar com seus olhos penitentes. Tudo, no entanto, havia mudado. Eu já não dispunha de tempo livre como antes. Adulto, agora eu vivia apressado, cheio de tarefas no escritório. Mas insistiam, como se eu pudesse interceder por eles, em busca de um lugar em que ainda coubessem no mundo. Sempre juntos, o velho manso, com seus passos miúdos, e o triste escudeiro, de olhos não ferozes e cauda intranqüila, que nem se atrevia a latir. Guardavam-se de maiores maltratos, de maus olhos, certas pedradas e quais descasos. Pior: agora estavam ameaçados de despejo. Queriam pôr Zé Preto no hospício e o cachorro porta afora. Entretanto, como separar tais criaturas que só sabiam existir um para o outro?
A vizinhança, totalmente renovada, agora os desconhecia. Queriam varrer os pobres da tapera triste, em plenas formas arruinadas por chuva, sol e janeiros. Eles eram considerados uma mancha feia naquela rua que cada vez mais se tornava chique. Os novos moradores os rejeitavam, pois que eram, muitos deles, bem empregados, alguns cheios de empáfia aos ventos. De fato, não era mais uma rua de gente pobre, como durante tantos anos, desde que Zé Preto se amoitara naquele canto. Ele era de outras datas, na época das velhas vizinhanças. Desde sempre bem aceito e tratado, davam-lhe de comer, beber, vestir e remediar. Até sorrisos lhe sobravam. Minha mãe, enquanto viveu, esteve atenta a esses cuidados. Para ela, zelosa dos vizinhos mais humildes, Zé Preto era uma devoção diária. Como fornecia marmita, mandava-me levar o almoço e a janta dele. Eu entregava o embrulho, com dois pratos fechados, um contra o outro, enrodilhados num pano de cozinha.
Zé Preto também recebia atenção de outros vizinhos. Tanto que não precisei continuar os cuidados; ele se arranjava com outras pessoas. Daí que fui esquecendo dos velhos tratos e, raramente, o via. E eram cada vez mais remotas suas aparições na rua. O cachorro certamente era outro, mas parecia o de sempre. Se me avistavam, insistiam em chamar minha atenção. Eu, no entanto, desviava deles os olhos e os passos. Cuidava de minha vida. Esse homem, eis um ser discreto. Naquele tempo, ninguém triscava num sequer detalhe de sua história. Era sempre assim, de seu jeito, sem nenhum motivo que se comentasse. Provado manso, era circunspecto, por vez risonho, sobretudo divertido com as crianças. Ele gostava de brincar. Fazia carrinhos de madeira, toscos, desengonçados, que arrastava pela rua, barulhando. Ora engendrava algo como se parecesse um avião, um catavento de lata, que, se não voava, ao menos divertia ao rodopiar pelo terreiro.
Certas vezes, Zé Preto saía correndo pelas ruas, nas mãos uma tampa de lata, qual fosse um volante; buzinava e fazia ruído de motor com a boca. Era o perfeito homem acriançado, bom de se gostar, sem travos nem receios. Os meninos íamos colher balas para guerra nas mamoneiras do seu quintal, sem que isso somasse riscos ao zelo das mães. Zé Preto era ajuizado, de confiança, incapaz de malfeitos ou abusos. Todos gostavam dele. Dia a dia, o tempo salta e as pedras rolam. Os meninos da vizinhança crescemos, os velhos morreram. Muitos se mudaram, venderam as posses, foram-se embora. A cidade crescendo sempre, a rua foi ganhando novos donos, outras feições, pontos de comércio, asfalto, carros e transeuntes; uma gente estranha e apressada, em busca de outros tratos de viver e morar. Diante dos novos jeitos da rua, Zé Preto e sua casa foram-se tornando estranhos, exóticos, — ruínas indesejáveis.
Um boato ganhou as esquinas, correu a rua de ponta a ponta. Não achavam certo semelhante pessoa enfear a paisagem, ali morador, no horrível casebre em ruínas, cercado de mato. Aquilo desvalorizava a rua e as casas vizinhas. Era algo ruim de se ver, conviver e aceitar. Diante do caso, voltei a me preocupar com o velho amigo. Dei-me conta de que eu era o único remanescente dos jogos de gude, das brincadeiras de bola, picula e empinações de arraia, agora impossíveis na rua movimentada. Daqueles tempos, só eu e Zé Preto restávamos. Entretanto, mantive-me discreto, ao largo dos comentários. Mas os mentores da campanha vieram me pedir apoio para desalojar o homem dali. Ora, eu não podia compartilhar uma ação contra Zé Preto. Discordei, defendi seu direito de permanecer no lugar. Eu trazia do tempo de infância uma atenção silenciosa pelo velho, e agora indesejado, morador da rua.
O fato me avivou a memória. De vagos registros, em calças curtas, me lembrava de haver brincado em seu terreiro, em seu quintal aberto. E mais: eu me via em seu colo, minha mãe perto, mas nem aflita, pedindo, com muita calma, que ele me pusesse no chão. Ze Preto, então jovem, ria de me haver em seus braços. Um dia me levou para sua casa, para desespero discreto de minha mãe. Eu tinha uma vaga idéia de seu estranho lar por dentro, onde havia latas dependuradas, pequenas caixas de papelão, trastes espalhados — que me pareciam uma arte de fazer ruídos. Brinquei com aquelas coisas; bati lata com lata, juntei pedra com pedra, armei pilhas de gravetos, combinei cacos de vidro. Ele, muito atento, quase sempre calado, só me olhando e rindo. No seu tom encabulado, me dizia baixinho: "Oh, Zefizim".
Minha mãe tinha muito cuidado. Preenchia os tratos comigo, limitava meus vôos, vigiava-me os passos, quedas, cismas e vontades. Era rígida no trato, e firme nos exemplos. Mas aceitava que eu errasse, desde que soubesse o quanto, como então me explicava. Eu crescia pelos terreiros, de rua a rua. Zé Preto de vez em quando me tomava pelo braço, me dava os estranhos brinquedos de lata e de madeira, sem nenhum sentido de uso que eu imaginasse. Eram só mesmo de se pegar ou fazer barulhos. Minha mãe procurava evitar, escondia-me dele, dizia que eu estava na escola. Mas o vizinho acercava-se de nossa janela e me chamava pelo apelido inventado: — Oh, Zefizim, vecê vem cá, vem brincar com eu, vecê vem... O bom amigo, de voz e passos mansos, flagrava às vezes a inverdade. Seus olhos brilhavam, quando me descobriam. E eu, sem saber que minha mãe reprovava nossos encontros, até gostava de entrar naquelas ruínas. Eu tomava bons borrifos de chuva, boa aragem de vento, naquela ex-casa, quase mesmo a céu aberto.
O tempo agora era outro. Mas como eu poderia ser contra Zé Preto? Jamais. Ignorei o problema, embora notasse que as pessoas estavam determinadas a expulsá-los dali. Só espreitavam um pretexto, um deslize assim que fosse. Insinuavam que eram perigosos, que ameaçavam os passantes. Mentiras! O velho e o cachorro, amoitados no casebre, vigiavam a rua de longe, adivinhando os perigos através das frinchas das paredes arruinadas. Um dia aconteceu o pior. Eu estava no escritório quando recebi um telefonema revelando o inexato. Eu fosse até lá urgente. Davam conta de que Zé Preto havia seqüestrado o filho da nova vizinha, levando-o para sua casa. As pessoas, instigadas contra ele, posicionavam-se em atitudes agressivas. Chamaram a polícia e reclamaram providências para, segundo diziam, salvar a criança das garras do doido perigoso. Eu corri de imediato para acudir Zé Preto. Era urgente livrá-lo daquele apuro. Eu sabia que ele, certamente revivendo estórias, queria apenas agradar o menino. Talvez sentisse saudade de brincar comigo.
Infelizmente, cheguei na hora máxima do tumulto. E não consegui evitar a tragédia. Alguém havia visto o cano de uma arma apontada para a rua, desde as ruínas. Houve correria, gritavam que Zé Preto ia atirar. Na confusão, ouviram-se dois tiros. E depois só silêncio e sobressalto. Imediatamente, corri para o casebre e vi a mesma cena que eu, em criança, também protagonizara. O menino, de uns cinco anos, entretido com os estranhos objetos, empunhava a velha arma de brinquedo. Ele havia apontado a arma para a rua pela grande frincha da parede. De imediato, vi Zé Preto caído, seus frangalhos de roupa tingiam-se de vermelho. Na aflição, gritei que o tinham matado. Mas ele ainda estava morrendo. Corri para tentar ajudá-lo, em vão. Ele se apagava rápido. Ainda olhou piedoso para mim e para a criança, e murmurou sua velha frase, quase inaudível: "Oh, Zefizim". E calou, sem expressão nos olhos úmidos.
Ajoelhei-me sobre ele, angustiado, e fechei seu olhar vazio. Zé Preto, morto. Eu fiquei perplexo, uma vida inteira ia repassando em minha memória. De pé, eu olhava o seu corpo, custava-me acreditar. O cachorro, num canto, acuado, rosnava baixinho. Apanhei o menino, trouxe-o para fora das ruínas. A mãe, em prantos, arrebatou o filho de meus braços e o apertou ao peito. A multidão em volta estava em silêncio, depois irrompeu, num vozerio abafado, com diversos comentários. Zé Preto estava morto. A pior coisa estava feita, por dúvidas de um ato suspeitoso ou premeditado. Voltei às ruínas, e vi o velho cachorro junto ao dono. Lá fora, os curiosos se dispersavam. Eu me sentia num viés, entre uma grande perda e uma enorme culpa. Eu me atrasara por longos anos ou por um eterno minuto? Zé Preto foi declarado morto em tumulto, num crime de autoria desconhecida. Fui ao centro, falei com autoridades e nada obtive de certo. Apenas aceleraram os papéis e dispensaram outras praxes. Um ser humano, morto de modo tão mesquinho, e constou que era apenas um doente mental sem dono. Eu, único vizinho do tempo em que Zé Preto era bem-quisto, sentia agora o dever de cuidar dele como se fosse gente minha. Tomei as providências normais para o seu enterro.
Entretanto, não fiquei sozinho nessa missão. Um homem grisalho, de jeito muito humilde, apareceu para cuidar do morto. Chegou trazendo um caixão simples numa carroça. Eu o acompanhei. Ele parou, me olhou fundo, apertou os olhos e indagou:
0. Eu conheço o senhor de algum lugar?
1. Creio que não — respondi convicto.
Ao ver o morto, o homem murmurou:
0. Coitado de meu irmão.
Surpreso, examinei bem os seus traços. De fato, ele se parecia com Ze Preto, só que normal, sem aquele ar vago e manso, embora fosse um tipo circunspecto, sem dar trela a conversas compridas. Com minha ajuda, limpou o corpo do irmão, vestiu- lhe um traje que trouxera num embrulho. Daí fez a barba do morto, aparou seus cabelos, dando-lhe uma feição nova que me pareceu estranhamente familiar. Em silêncio, preparamos o corpo e o ajeitamos no caixão. Ficamos ali, de guarda, durante algumas horas, num estranho e solitário velório. Sem uma palavra. Ele rezava em silêncio, e eu apenas recordava as boas passagens da vida.
No fim da tarde, colocamos o esquife na carroça e nos dirigimos ao cemitério. Tantas vezes eu levara alimento a Zé Preto. Agora uma prece lhe bastava. No fim do ato, quando acabamos de juntar terra à cova, o homem estendeu-me a mão. Ele me agradecia e, por fim, me indagava: — O senhor sabe o que é feito do filho de José de Arimatéia de Jesus? — De quem? — eu estranhei. Ele repetiu seu olhar para mim, firme, apontando para a sepultura com o queixo:
- De meu irmão.
- E ele teve um filho? — eu me espantava.
— Sim... Quando moço, ele teve um filho com uma vizinha. Engoli em seco; balancei a cabeça negativamente. Ali mesmo nos despedimos. E eu prossegui minha vida, sempre calado, até que as palavras começaram a ressurgir com sutis insinuações. Aquelas ruínas me chamam, e eu preciso juntar pedra com pedra, arrumar os gravetos, combinar os cacos de vidro.
Ninguém dava atenção a Zé Preto, mas ele e seu cachorro insistiam em me reconquistar com seus olhos penitentes. Tudo, no entanto, havia mudado. Eu já não dispunha de tempo livre como antes. Adulto, agora eu vivia apressado, cheio de tarefas no escritório. Mas insistiam, como se eu pudesse interceder por eles, em busca de um lugar em que ainda coubessem no mundo. Sempre juntos, o velho manso, com seus passos miúdos, e o triste escudeiro, de olhos não ferozes e cauda intranqüila, que nem se atrevia a latir. Guardavam-se de maiores maltratos, de maus olhos, certas pedradas e quais descasos. Pior: agora estavam ameaçados de despejo. Queriam pôr Zé Preto no hospício e o cachorro porta afora. Entretanto, como separar tais criaturas que só sabiam existir um para o outro?
A vizinhança, totalmente renovada, agora os desconhecia. Queriam varrer os pobres da tapera triste, em plenas formas arruinadas por chuva, sol e janeiros. Eles eram considerados uma mancha feia naquela rua que cada vez mais se tornava chique. Os novos moradores os rejeitavam, pois que eram, muitos deles, bem empregados, alguns cheios de empáfia aos ventos. De fato, não era mais uma rua de gente pobre, como durante tantos anos, desde que Zé Preto se amoitara naquele canto. Ele era de outras datas, na época das velhas vizinhanças. Desde sempre bem aceito e tratado, davam-lhe de comer, beber, vestir e remediar. Até sorrisos lhe sobravam. Minha mãe, enquanto viveu, esteve atenta a esses cuidados. Para ela, zelosa dos vizinhos mais humildes, Zé Preto era uma devoção diária. Como fornecia marmita, mandava-me levar o almoço e a janta dele. Eu entregava o embrulho, com dois pratos fechados, um contra o outro, enrodilhados num pano de cozinha.
Zé Preto também recebia atenção de outros vizinhos. Tanto que não precisei continuar os cuidados; ele se arranjava com outras pessoas. Daí que fui esquecendo dos velhos tratos e, raramente, o via. E eram cada vez mais remotas suas aparições na rua. O cachorro certamente era outro, mas parecia o de sempre. Se me avistavam, insistiam em chamar minha atenção. Eu, no entanto, desviava deles os olhos e os passos. Cuidava de minha vida. Esse homem, eis um ser discreto. Naquele tempo, ninguém triscava num sequer detalhe de sua história. Era sempre assim, de seu jeito, sem nenhum motivo que se comentasse. Provado manso, era circunspecto, por vez risonho, sobretudo divertido com as crianças. Ele gostava de brincar. Fazia carrinhos de madeira, toscos, desengonçados, que arrastava pela rua, barulhando. Ora engendrava algo como se parecesse um avião, um catavento de lata, que, se não voava, ao menos divertia ao rodopiar pelo terreiro.
Certas vezes, Zé Preto saía correndo pelas ruas, nas mãos uma tampa de lata, qual fosse um volante; buzinava e fazia ruído de motor com a boca. Era o perfeito homem acriançado, bom de se gostar, sem travos nem receios. Os meninos íamos colher balas para guerra nas mamoneiras do seu quintal, sem que isso somasse riscos ao zelo das mães. Zé Preto era ajuizado, de confiança, incapaz de malfeitos ou abusos. Todos gostavam dele. Dia a dia, o tempo salta e as pedras rolam. Os meninos da vizinhança crescemos, os velhos morreram. Muitos se mudaram, venderam as posses, foram-se embora. A cidade crescendo sempre, a rua foi ganhando novos donos, outras feições, pontos de comércio, asfalto, carros e transeuntes; uma gente estranha e apressada, em busca de outros tratos de viver e morar. Diante dos novos jeitos da rua, Zé Preto e sua casa foram-se tornando estranhos, exóticos, — ruínas indesejáveis.
Um boato ganhou as esquinas, correu a rua de ponta a ponta. Não achavam certo semelhante pessoa enfear a paisagem, ali morador, no horrível casebre em ruínas, cercado de mato. Aquilo desvalorizava a rua e as casas vizinhas. Era algo ruim de se ver, conviver e aceitar. Diante do caso, voltei a me preocupar com o velho amigo. Dei-me conta de que eu era o único remanescente dos jogos de gude, das brincadeiras de bola, picula e empinações de arraia, agora impossíveis na rua movimentada. Daqueles tempos, só eu e Zé Preto restávamos. Entretanto, mantive-me discreto, ao largo dos comentários. Mas os mentores da campanha vieram me pedir apoio para desalojar o homem dali. Ora, eu não podia compartilhar uma ação contra Zé Preto. Discordei, defendi seu direito de permanecer no lugar. Eu trazia do tempo de infância uma atenção silenciosa pelo velho, e agora indesejado, morador da rua.
O fato me avivou a memória. De vagos registros, em calças curtas, me lembrava de haver brincado em seu terreiro, em seu quintal aberto. E mais: eu me via em seu colo, minha mãe perto, mas nem aflita, pedindo, com muita calma, que ele me pusesse no chão. Ze Preto, então jovem, ria de me haver em seus braços. Um dia me levou para sua casa, para desespero discreto de minha mãe. Eu tinha uma vaga idéia de seu estranho lar por dentro, onde havia latas dependuradas, pequenas caixas de papelão, trastes espalhados — que me pareciam uma arte de fazer ruídos. Brinquei com aquelas coisas; bati lata com lata, juntei pedra com pedra, armei pilhas de gravetos, combinei cacos de vidro. Ele, muito atento, quase sempre calado, só me olhando e rindo. No seu tom encabulado, me dizia baixinho: "Oh, Zefizim".
Minha mãe tinha muito cuidado. Preenchia os tratos comigo, limitava meus vôos, vigiava-me os passos, quedas, cismas e vontades. Era rígida no trato, e firme nos exemplos. Mas aceitava que eu errasse, desde que soubesse o quanto, como então me explicava. Eu crescia pelos terreiros, de rua a rua. Zé Preto de vez em quando me tomava pelo braço, me dava os estranhos brinquedos de lata e de madeira, sem nenhum sentido de uso que eu imaginasse. Eram só mesmo de se pegar ou fazer barulhos. Minha mãe procurava evitar, escondia-me dele, dizia que eu estava na escola. Mas o vizinho acercava-se de nossa janela e me chamava pelo apelido inventado: — Oh, Zefizim, vecê vem cá, vem brincar com eu, vecê vem... O bom amigo, de voz e passos mansos, flagrava às vezes a inverdade. Seus olhos brilhavam, quando me descobriam. E eu, sem saber que minha mãe reprovava nossos encontros, até gostava de entrar naquelas ruínas. Eu tomava bons borrifos de chuva, boa aragem de vento, naquela ex-casa, quase mesmo a céu aberto.
O tempo agora era outro. Mas como eu poderia ser contra Zé Preto? Jamais. Ignorei o problema, embora notasse que as pessoas estavam determinadas a expulsá-los dali. Só espreitavam um pretexto, um deslize assim que fosse. Insinuavam que eram perigosos, que ameaçavam os passantes. Mentiras! O velho e o cachorro, amoitados no casebre, vigiavam a rua de longe, adivinhando os perigos através das frinchas das paredes arruinadas. Um dia aconteceu o pior. Eu estava no escritório quando recebi um telefonema revelando o inexato. Eu fosse até lá urgente. Davam conta de que Zé Preto havia seqüestrado o filho da nova vizinha, levando-o para sua casa. As pessoas, instigadas contra ele, posicionavam-se em atitudes agressivas. Chamaram a polícia e reclamaram providências para, segundo diziam, salvar a criança das garras do doido perigoso. Eu corri de imediato para acudir Zé Preto. Era urgente livrá-lo daquele apuro. Eu sabia que ele, certamente revivendo estórias, queria apenas agradar o menino. Talvez sentisse saudade de brincar comigo.
Infelizmente, cheguei na hora máxima do tumulto. E não consegui evitar a tragédia. Alguém havia visto o cano de uma arma apontada para a rua, desde as ruínas. Houve correria, gritavam que Zé Preto ia atirar. Na confusão, ouviram-se dois tiros. E depois só silêncio e sobressalto. Imediatamente, corri para o casebre e vi a mesma cena que eu, em criança, também protagonizara. O menino, de uns cinco anos, entretido com os estranhos objetos, empunhava a velha arma de brinquedo. Ele havia apontado a arma para a rua pela grande frincha da parede. De imediato, vi Zé Preto caído, seus frangalhos de roupa tingiam-se de vermelho. Na aflição, gritei que o tinham matado. Mas ele ainda estava morrendo. Corri para tentar ajudá-lo, em vão. Ele se apagava rápido. Ainda olhou piedoso para mim e para a criança, e murmurou sua velha frase, quase inaudível: "Oh, Zefizim". E calou, sem expressão nos olhos úmidos.
Ajoelhei-me sobre ele, angustiado, e fechei seu olhar vazio. Zé Preto, morto. Eu fiquei perplexo, uma vida inteira ia repassando em minha memória. De pé, eu olhava o seu corpo, custava-me acreditar. O cachorro, num canto, acuado, rosnava baixinho. Apanhei o menino, trouxe-o para fora das ruínas. A mãe, em prantos, arrebatou o filho de meus braços e o apertou ao peito. A multidão em volta estava em silêncio, depois irrompeu, num vozerio abafado, com diversos comentários. Zé Preto estava morto. A pior coisa estava feita, por dúvidas de um ato suspeitoso ou premeditado. Voltei às ruínas, e vi o velho cachorro junto ao dono. Lá fora, os curiosos se dispersavam. Eu me sentia num viés, entre uma grande perda e uma enorme culpa. Eu me atrasara por longos anos ou por um eterno minuto? Zé Preto foi declarado morto em tumulto, num crime de autoria desconhecida. Fui ao centro, falei com autoridades e nada obtive de certo. Apenas aceleraram os papéis e dispensaram outras praxes. Um ser humano, morto de modo tão mesquinho, e constou que era apenas um doente mental sem dono. Eu, único vizinho do tempo em que Zé Preto era bem-quisto, sentia agora o dever de cuidar dele como se fosse gente minha. Tomei as providências normais para o seu enterro.
Entretanto, não fiquei sozinho nessa missão. Um homem grisalho, de jeito muito humilde, apareceu para cuidar do morto. Chegou trazendo um caixão simples numa carroça. Eu o acompanhei. Ele parou, me olhou fundo, apertou os olhos e indagou:
0. Eu conheço o senhor de algum lugar?
1. Creio que não — respondi convicto.
Ao ver o morto, o homem murmurou:
0. Coitado de meu irmão.
Surpreso, examinei bem os seus traços. De fato, ele se parecia com Ze Preto, só que normal, sem aquele ar vago e manso, embora fosse um tipo circunspecto, sem dar trela a conversas compridas. Com minha ajuda, limpou o corpo do irmão, vestiu- lhe um traje que trouxera num embrulho. Daí fez a barba do morto, aparou seus cabelos, dando-lhe uma feição nova que me pareceu estranhamente familiar. Em silêncio, preparamos o corpo e o ajeitamos no caixão. Ficamos ali, de guarda, durante algumas horas, num estranho e solitário velório. Sem uma palavra. Ele rezava em silêncio, e eu apenas recordava as boas passagens da vida.
No fim da tarde, colocamos o esquife na carroça e nos dirigimos ao cemitério. Tantas vezes eu levara alimento a Zé Preto. Agora uma prece lhe bastava. No fim do ato, quando acabamos de juntar terra à cova, o homem estendeu-me a mão. Ele me agradecia e, por fim, me indagava: — O senhor sabe o que é feito do filho de José de Arimatéia de Jesus? — De quem? — eu estranhei. Ele repetiu seu olhar para mim, firme, apontando para a sepultura com o queixo:
- De meu irmão.
- E ele teve um filho? — eu me espantava.
— Sim... Quando moço, ele teve um filho com uma vizinha. Engoli em seco; balancei a cabeça negativamente. Ali mesmo nos despedimos. E eu prossegui minha vida, sempre calado, até que as palavras começaram a ressurgir com sutis insinuações. Aquelas ruínas me chamam, e eu preciso juntar pedra com pedra, arrumar os gravetos, combinar os cacos de vidro.
sábado, 12 de outubro de 2013
sexta-feira, 11 de outubro de 2013
[agência pirata] TULA PILAR, ENTRE A POESIA E O BOLSA FAMÍLIA
:: txt :: Ana Aranha ::
Tula Pilar Ferreira gosta de se arrumar para sair de casa. Afivela a sandália, passa hidratante nos braços e nas pernas, combina o par de brincos com as cores da saia ou da faixa no cabelo.
Uma vez por mês, porém, o rito se inverte. Pilar escolhe uma camiseta surrada, calça o sapato mais velho (pisando o calcanhar na parte de trás), prende o cabelo e puxa alguns fios para cima, como se estivessem desleixadamente soltos.
O ritual às avessas começou no início do ano, quando ela foi recusada pelo posto de atendimento do programa Bolsa Família. Pilar recebe R$ 64 mensais como complemento de renda para criar a filha de 7 anos e o filho de 16. “A mulher me olhou de cima a baixo”, lembra, imitando a surpresa que viu no rosto da funcionária. “Primeiro, disse que ali era o Bolsa Família, como se eu tivesse no lugar errado. Quando eu expliquei que era cadastrada, ela disse que o posto estava fechado”.
Pilar foi embora. Voltou no dia seguinte, no mesmo horário, mas vestida com roupas velhas. Foi atendida. Desde então, ela usa o “disfarce” sempre que precisa verificar o seu cadastro. Disfarce porque, embora tenha dificuldades para pagar as contas da casa, a sua figura é o avesso do estereótipo procurado pelos olhos da funcionária.
Pilar é uma poetisa de sorriso largo. Faz sucesso nos saraus da periferia de São Paulo e comanda alguns deles no centro da cidade. Nesses eventos, ela recita seus versos preferidos (alguns deles parte dos seus escritos da “poesia erótica”) e dança ao som de percussão.
Seus poemas foram publicados em um livro artesanal: Palavras Inacadêmicas. Uma coletânea de poemas provocadores, como a autora. Vaidosa, esconde a idade. Depois de alguma insistência, e tentativas de cálculo a partir do nascimento da filha mais velha, ela concede: “sim, mais de 40”.
Pilar começou a escrever aos trinta, depois de trabalhar por mais de duas décadas como empregada doméstica e passadeira. Ela não via futuro nas casas de família e lavanderias, mas levou alguns anos tomando coragem para dar o salto e deixar o emprego fixo.
Hoje, apesar do espaço conquistado, ela paga um preço alto por sua escolha. Nesse momento, deve dois meses de telefone e energia. Se não pagar, a família ficará no escuro de novo – já ficaram seis meses sem luz. Para as refeições semanais, Pilar garante arroz, feijão e legumes. Carne só no fim-de-semana. Eles moram em Taboão da Serra, divisa com a capital paulista. A casa alugada tem uma varanda, cozinha, sala, banheiro e um quarto, que ela divide com os filhos.
A fase mais difícil foi no começo da mudança, quando tentava entrar no mercado da produção cultural. Pilar fazia bicos como vendedora de jazigo e de ingresso de teatro, mas não conseguia pagar o aluguel. Enquanto a proprietária ameaçava despejo, ela perambulava pela cidade com uma maçã no estômago, tomando água para “inchar a fruta na barriga”, ensinamento da sua mãe para enganar a fome.
Foi em uma dessas saídas que, no auge do desalento, encontrou um caminho. Exausta, sentou sob o vão do MASP e se deixou “chorar como uma criança”. Entre as lágrimas, viu um sujeito distribuindo algo e foi até ele: “Moço, essa empresa paga pra distribuir?”
Assim descobriu a revista Ocas , publicação produzida por jornalistas e escritores voluntários para ser vendida por moradores de rua, que ganham R$ 3 por edição. Convidada a participar do projeto, esclareceu que não era moradora de rua, mas ouviu do vendedor: “não é agora, mas logo vai ser”.
A frase lhe chacoalhou e Pilar agarrou a chance. Passou a ser vendedora e, depois, coautora de textos da revista, o que projetou seu nome no meio da chamada cultura alternativa. Com talento, e graças à nova rede, passou a ser convidada para cursos e saraus remunerados. Assim, conheceu a África do Sul durante a Homeless World Cup (Copa Mundial Sem-Teto) e foi entrevistada no programa Provocações, conduzido por Antônio Abujamra, na TV Cultura.
A escolha lhe dá satisfação pessoal e profissional, mas ainda rende sérias dificuldades financeiras. Por isso, conta com os 64 reais mensais do Bolsa Família. Não sem conflito. Na primeira vez que lhe perguntei sobre o benefício, Pilar achou que seria melhor não falar do assunto. “Não é que eu tenha vergonha, mas não queria receber, tem gente que pode precisar mais”.
A sua justificativa para continuar no programa pode ser uma boa reflexão para os críticos, aqueles que acham que o benefício acomoda e faz as pessoas tomarem um “caminho fácil”, abandonando a vida economicamente produtiva. “Prefiro ficar no programa, por enquanto, para poder correr atrás do que acredito, a pegar um emprego qualquer. Não quero ser como essa gente que faz o trabalho meia boca pra esperar a aposentadoria”.
O programa federal e o projeto social ajudam Pilar na batalha para construir uma carreira diferente daquela que lhe foi atribuída aos oito anos. Nessa idade, ela começou a trabalhar como babá e doméstica para uma família de Belo Horizonte, Minas Gerais, onde viveu durante a infância. Ela cresceu levando beliscões e puxões de cabelo dos patrões quando insistia em brincar. “A patroa rasgava os meus desenhos, aquilo me dava uma raiva”.
Cansada, certa vez se recusou a engraxar os sapatos e se trancou no banheiro. “Fiquei umas duas horas lá dentro. A patroa chamou o marido e ele disse bem assim: ‘sua negrinha, dê graças a Deus que a gente te dá casa e escola’”. Pilar, que estudava em um colégio público, respondeu com um grito, por trás da porta: “Eu quero voltar pra favela!”.
E voltou. Mas os patrões da infância deixaram uma marca. Desde então, ela sente as mãos tremerem quando os chefes levantavam a voz ou usam um tom mais duro. Mesmo assim, ela continuou reagindo às situações que considerava injustas, o que lhe obrigou a trocar de emprego diversas vezes.
Aos 17, mudou-se para o Rio de Janeiro, para trabalhar como babá em um apartamento na Avenida Vieira Souto, a rua da praia de Ipanema e um dos metros quadrados mais caros da América Latina. Com essa família, conheceu a Argentina e o Chile e viveu seus primeiros momentos de “glamour”, como ela gosta dizer. “Quando eu entrava nos salões com a menina no colo, todo mundo olhava. Eu era bem preta do sol, e ela ruiva, dava aquele contraste bonito. As pessoas olhavam como se eu fosse uma artista”.
Hoje, quando sente a energia dos aplausos ao fim de uma apresentação, deseja intimamente que as antigas patroas estivessem na plateia. “Queria que vissem onde cheguei”. Os aplausos são uma consagração, parte importante da vitória de sua escolha, mas Pilar sabe que sua arte ainda precisa atravessar outras fronteiras. Principalmente as cotidianas, que são as mais difíceis de alcançar.
Na semana passada, ela foi visitar a filha mais velha, que mudou-se para um apartamento no centro, deixando saudades. Dormiu na casa da filha e, no fim da manhã, não encontrou o ânimo habitual para se produzir antes de sair. No elevador, foi recebida com surpresa por uma moradora do prédio.
- Nossa, você já terminou o serviço? Que beleza. A minha leva o dia todo, coitada, está velha.
Pilar sentiu o tremor nas mãos que não experimentava há anos. Suspirou fundo e achou melhor não criar polêmica no prédio da filha.
Tula Pilar Ferreira gosta de se arrumar para sair de casa. Afivela a sandália, passa hidratante nos braços e nas pernas, combina o par de brincos com as cores da saia ou da faixa no cabelo.
Uma vez por mês, porém, o rito se inverte. Pilar escolhe uma camiseta surrada, calça o sapato mais velho (pisando o calcanhar na parte de trás), prende o cabelo e puxa alguns fios para cima, como se estivessem desleixadamente soltos.
O ritual às avessas começou no início do ano, quando ela foi recusada pelo posto de atendimento do programa Bolsa Família. Pilar recebe R$ 64 mensais como complemento de renda para criar a filha de 7 anos e o filho de 16. “A mulher me olhou de cima a baixo”, lembra, imitando a surpresa que viu no rosto da funcionária. “Primeiro, disse que ali era o Bolsa Família, como se eu tivesse no lugar errado. Quando eu expliquei que era cadastrada, ela disse que o posto estava fechado”.
Pilar foi embora. Voltou no dia seguinte, no mesmo horário, mas vestida com roupas velhas. Foi atendida. Desde então, ela usa o “disfarce” sempre que precisa verificar o seu cadastro. Disfarce porque, embora tenha dificuldades para pagar as contas da casa, a sua figura é o avesso do estereótipo procurado pelos olhos da funcionária.
Pilar é uma poetisa de sorriso largo. Faz sucesso nos saraus da periferia de São Paulo e comanda alguns deles no centro da cidade. Nesses eventos, ela recita seus versos preferidos (alguns deles parte dos seus escritos da “poesia erótica”) e dança ao som de percussão.
Seus poemas foram publicados em um livro artesanal: Palavras Inacadêmicas. Uma coletânea de poemas provocadores, como a autora. Vaidosa, esconde a idade. Depois de alguma insistência, e tentativas de cálculo a partir do nascimento da filha mais velha, ela concede: “sim, mais de 40”.
Pilar começou a escrever aos trinta, depois de trabalhar por mais de duas décadas como empregada doméstica e passadeira. Ela não via futuro nas casas de família e lavanderias, mas levou alguns anos tomando coragem para dar o salto e deixar o emprego fixo.
Hoje, apesar do espaço conquistado, ela paga um preço alto por sua escolha. Nesse momento, deve dois meses de telefone e energia. Se não pagar, a família ficará no escuro de novo – já ficaram seis meses sem luz. Para as refeições semanais, Pilar garante arroz, feijão e legumes. Carne só no fim-de-semana. Eles moram em Taboão da Serra, divisa com a capital paulista. A casa alugada tem uma varanda, cozinha, sala, banheiro e um quarto, que ela divide com os filhos.
A fase mais difícil foi no começo da mudança, quando tentava entrar no mercado da produção cultural. Pilar fazia bicos como vendedora de jazigo e de ingresso de teatro, mas não conseguia pagar o aluguel. Enquanto a proprietária ameaçava despejo, ela perambulava pela cidade com uma maçã no estômago, tomando água para “inchar a fruta na barriga”, ensinamento da sua mãe para enganar a fome.
Foi em uma dessas saídas que, no auge do desalento, encontrou um caminho. Exausta, sentou sob o vão do MASP e se deixou “chorar como uma criança”. Entre as lágrimas, viu um sujeito distribuindo algo e foi até ele: “Moço, essa empresa paga pra distribuir?”
Assim descobriu a revista Ocas , publicação produzida por jornalistas e escritores voluntários para ser vendida por moradores de rua, que ganham R$ 3 por edição. Convidada a participar do projeto, esclareceu que não era moradora de rua, mas ouviu do vendedor: “não é agora, mas logo vai ser”.
A frase lhe chacoalhou e Pilar agarrou a chance. Passou a ser vendedora e, depois, coautora de textos da revista, o que projetou seu nome no meio da chamada cultura alternativa. Com talento, e graças à nova rede, passou a ser convidada para cursos e saraus remunerados. Assim, conheceu a África do Sul durante a Homeless World Cup (Copa Mundial Sem-Teto) e foi entrevistada no programa Provocações, conduzido por Antônio Abujamra, na TV Cultura.
A escolha lhe dá satisfação pessoal e profissional, mas ainda rende sérias dificuldades financeiras. Por isso, conta com os 64 reais mensais do Bolsa Família. Não sem conflito. Na primeira vez que lhe perguntei sobre o benefício, Pilar achou que seria melhor não falar do assunto. “Não é que eu tenha vergonha, mas não queria receber, tem gente que pode precisar mais”.
A sua justificativa para continuar no programa pode ser uma boa reflexão para os críticos, aqueles que acham que o benefício acomoda e faz as pessoas tomarem um “caminho fácil”, abandonando a vida economicamente produtiva. “Prefiro ficar no programa, por enquanto, para poder correr atrás do que acredito, a pegar um emprego qualquer. Não quero ser como essa gente que faz o trabalho meia boca pra esperar a aposentadoria”.
O programa federal e o projeto social ajudam Pilar na batalha para construir uma carreira diferente daquela que lhe foi atribuída aos oito anos. Nessa idade, ela começou a trabalhar como babá e doméstica para uma família de Belo Horizonte, Minas Gerais, onde viveu durante a infância. Ela cresceu levando beliscões e puxões de cabelo dos patrões quando insistia em brincar. “A patroa rasgava os meus desenhos, aquilo me dava uma raiva”.
Cansada, certa vez se recusou a engraxar os sapatos e se trancou no banheiro. “Fiquei umas duas horas lá dentro. A patroa chamou o marido e ele disse bem assim: ‘sua negrinha, dê graças a Deus que a gente te dá casa e escola’”. Pilar, que estudava em um colégio público, respondeu com um grito, por trás da porta: “Eu quero voltar pra favela!”.
E voltou. Mas os patrões da infância deixaram uma marca. Desde então, ela sente as mãos tremerem quando os chefes levantavam a voz ou usam um tom mais duro. Mesmo assim, ela continuou reagindo às situações que considerava injustas, o que lhe obrigou a trocar de emprego diversas vezes.
Aos 17, mudou-se para o Rio de Janeiro, para trabalhar como babá em um apartamento na Avenida Vieira Souto, a rua da praia de Ipanema e um dos metros quadrados mais caros da América Latina. Com essa família, conheceu a Argentina e o Chile e viveu seus primeiros momentos de “glamour”, como ela gosta dizer. “Quando eu entrava nos salões com a menina no colo, todo mundo olhava. Eu era bem preta do sol, e ela ruiva, dava aquele contraste bonito. As pessoas olhavam como se eu fosse uma artista”.
Hoje, quando sente a energia dos aplausos ao fim de uma apresentação, deseja intimamente que as antigas patroas estivessem na plateia. “Queria que vissem onde cheguei”. Os aplausos são uma consagração, parte importante da vitória de sua escolha, mas Pilar sabe que sua arte ainda precisa atravessar outras fronteiras. Principalmente as cotidianas, que são as mais difíceis de alcançar.
Na semana passada, ela foi visitar a filha mais velha, que mudou-se para um apartamento no centro, deixando saudades. Dormiu na casa da filha e, no fim da manhã, não encontrou o ânimo habitual para se produzir antes de sair. No elevador, foi recebida com surpresa por uma moradora do prédio.
- Nossa, você já terminou o serviço? Que beleza. A minha leva o dia todo, coitada, está velha.
Pilar sentiu o tremor nas mãos que não experimentava há anos. Suspirou fundo e achou melhor não criar polêmica no prédio da filha.
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
domingo, 6 de outubro de 2013
[noéditorial] POBREMA
:: txt :: Fausto Erjili ::
Querida pomba e prezado urubu, estamos com problemas técnicos e não pude compartilhar um gíf convosco, não estou aqui para falar dos deputados federais que trocaram de partido nas últimas duas semanas motivados pela disputa eleitoral do ano que vem, ou sobre os atentados no Iraque, a destruição do arsenal de armas químicas na Síria, a liberação das vendas de iPhone 5s e 5c no Brasil, a soltura da Lauryn Hill, o Sunrise Arctic, sobre as Forças dos EUA que atacaram líder terrorista na Somália ou o que quer que seja, nem mesmo sobre a minha lendária cobertura de uma corrida de charretes na Restinga, em Porto Alegre.
Estou aqui simplesmente para mandar tudo à merda.
Fiquem em paz, irmãozinhos.
Querida pomba e prezado urubu, estamos com problemas técnicos e não pude compartilhar um gíf convosco, não estou aqui para falar dos deputados federais que trocaram de partido nas últimas duas semanas motivados pela disputa eleitoral do ano que vem, ou sobre os atentados no Iraque, a destruição do arsenal de armas químicas na Síria, a liberação das vendas de iPhone 5s e 5c no Brasil, a soltura da Lauryn Hill, o Sunrise Arctic, sobre as Forças dos EUA que atacaram líder terrorista na Somália ou o que quer que seja, nem mesmo sobre a minha lendária cobertura de uma corrida de charretes na Restinga, em Porto Alegre.
Estou aqui simplesmente para mandar tudo à merda.
Fiquem em paz, irmãozinhos.
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