#CADÊ MEU CHINELO?
segunda-feira, 25 de março de 2013
sexta-feira, 22 de março de 2013
[noé leva a dor] ARTE-SABOTAGEM
:: txt :: Hakim Bey ::
Queima pública de livros – porque caipiras reacionários & funcionários das alfândegas devem monopolizar essa arma? Livros sobre crianças possuídas pelo demônio; a lista de best sellers do The New York Times; tratados feministas contra a pornografia; livros escolares (especialmente de estudos Sociais, Educação Moral e Cívica & Saúde); pilhas do New York Post, Village Voice & outros jornais de supermercado; uma compilação de editoras cristãs; alguns romances populares – uma atmosfera festiva, garrafas de vinho & baseados numa tarde clara de outono.
Se certas galerias & museus merecem, de vez em quando, receber uma tijolada pela janela – não a destruição, mas sim uma sacudida na sua complacência -, então o que dizer dos BANCOS? Galerias transformam beleza em mercadoria, mas bancos transmutam a Imaginação em vezes & dívida. O mundo não ganharia um pouco mais de beleza com cada banco que tremesse... ou caísse?
Não faça piquetes – vandalize. Não proteste – desfigure. Quando feiúra, design podre & desperdícios estúpidos estiverem sendo impostos a você, transforme-se num ludita, jogue o sapato no mecanismo, retalie. Esmague os símbolos do Império, mas não o faça em nome de nada que não seja a busca do coração pela graça.
Queima pública de livros – porque caipiras reacionários & funcionários das alfândegas devem monopolizar essa arma? Livros sobre crianças possuídas pelo demônio; a lista de best sellers do The New York Times; tratados feministas contra a pornografia; livros escolares (especialmente de estudos Sociais, Educação Moral e Cívica & Saúde); pilhas do New York Post, Village Voice & outros jornais de supermercado; uma compilação de editoras cristãs; alguns romances populares – uma atmosfera festiva, garrafas de vinho & baseados numa tarde clara de outono.
Se certas galerias & museus merecem, de vez em quando, receber uma tijolada pela janela – não a destruição, mas sim uma sacudida na sua complacência -, então o que dizer dos BANCOS? Galerias transformam beleza em mercadoria, mas bancos transmutam a Imaginação em vezes & dívida. O mundo não ganharia um pouco mais de beleza com cada banco que tremesse... ou caísse?
Não faça piquetes – vandalize. Não proteste – desfigure. Quando feiúra, design podre & desperdícios estúpidos estiverem sendo impostos a você, transforme-se num ludita, jogue o sapato no mecanismo, retalie. Esmague os símbolos do Império, mas não o faça em nome de nada que não seja a busca do coração pela graça.
quinta-feira, 21 de março de 2013
[over12] PINTURAS DE LUZ DO PABLO PICASSO
:: phts :: Gjon Mili ::
Para quem achava que a técnica do light painting era recente na fotografia, o magrão fez isso em 1949.
Para quem achava que a técnica do light painting era recente na fotografia, o magrão fez isso em 1949.
quarta-feira, 20 de março de 2013
[...] SANTA VONTADE DE NÃO SER
:: psy :: Ira Buscacio ::
Sou santa
Doida, outra oscilação
Caio do andor
Porque não me amarro
Em por
Os pés nessa inclinação
De pau oco, torto, tosco
Santa, nenhum pouco, não!
Sou abatida
Faz tempo, vento, inundação
De tristeza lambida
Que dá as caras
As cartas na minha feição
De frente pro crime
Regime, lama, façanha
Abatida vontade de ser não!
Tento morrer uma vez, duas, três
Da melhor maneira impossível
Cacos, nacos, parcos négligés
Sou freguês do suicídio plausível
Que é viver um dia de cada vez
terça-feira, 19 de março de 2013
[overmundo] MEU PRIMEIRO MORTO
:: txt :: Daniel Valentim ::
Pegava restos de papel de jornal de grandes carretéis pra fazer folha de rascunho. O secretário da redação sempre fazia cara feia quando eu pedia caneta nova, mas me dava, “vai regular bic, bicho?”. Terceiro período na faculdade de comunicação, queria trabalhar na editoria de cultura mas o editor chefe me mandou pra polícia. Tudo nas internas: estágio em reportagem era proibido pelo Sindicato. Era arquivista (função inexistente nas redações em que trabalhei), mas fazia ronda policial de segunda a segunda com exceção de dois fins de semana por mês.
Meu primeiro morto estava escondido num ramal lá pros lados do Tarumã. Estava rodando pela cidade quando o editor passou um rádio dando as direções. Poucos segundos depois a freqüência virou uma festa: “aê, Daniel, vai perder o cabaço”, alguém disse. Há dois cabaços ditos importantes a se perder numa editoria policial: achar um corpo ainda intacto no local do crime (ou onde foi abandonado) e cobrir uma rebelião numa penitenciária ou cadeia. Diz que endurece. Bobagem. É no dia-a-dia que a inocência vai sendo perdida, nas conversas, nos bastidores de redações e delegacias.
Não apenas inocência, mas o respeito. Pelas instituições, pelos homens, pela própria profissão. Já fiz uma matéria sobre um cara que supostamente havia estuprado uma criança na rua onde morava. Reportagem de topo de página, com foto e entrevista com o sujeito, que se dizia inocente. Meses depois descobriram o verdadeiro culpado e o antigo acusado foi pedir nova matéria no jornal (que saiu), mas nem isso impediu que todos os seus pertences fossem destruídos, nem que ele fosse espancado ao tentar retornar para casa.
Conversando com o diretor de um presídio, ele me relatou que um rapaz preso por estupro foi reclamar em sua sala que havia sido estuprado por outro presidiário. A piada era que o tal do sujeito mostrou a orelha toda mordiscada como prova. Cobrindo uma festa de Natal na penitenciária Raimundo Vidal Pessoa, fiquei conversando com um cara de trinta e poucos anos, preso pela terceira vez (sempre por latrocínio), que entendia tudo de direito penal e se dizia satisfeito com o atual diretor da penitenciária. O anterior, de acordo com o detento, era tão escroto que no último Natal, ganhou um “presunto” de presente. Ele e outros presos se juntaram, escolheram um “zé buceta” qualquer, mataram-no e penduraram o corpo na cela. Só para o diretor ter que voltar de casa e passar a noite na Raimundo.
Certa vez estava no Oitavo Distrito, na Compensa, quando uma viatura da Polícia Militar entrou trazendo um acusado de roubo. Os PMs tinham batido tanto no cara que ele estava desacordado. O investigador da civil disse para os policiais o levarem logo para o hospital, mas um PM interveio falando que aquilo era onda, que ele estava fingindo. “Quer ver?”. Segurou, então, a cabeça do homem (que estava deitado no chão) e a levantou até a altura de seu coldre. “Olha só!”. E largou. Sem reação alguma, o corpo caiu direto. Baque surdo, cabeça no concreto, sangue no nariz.
Em Manaus, o problema de falta de leitores de jornal é um dos mais graves do país. Numa capital de mais de 1,5 milhões de habitantes, o diário de maior circulação só consegue vender cerca de 30 mil exemplares (e num domingo!). Desesperadas, as empresas recorrem às editorias de polícia não para reportagens sobre criminalidade, violência ou políticas públicas de segurança, mas para golpes baixos do jornalismo marrom, com manchetes do tipo “Matou por um real”, pra ver se gente que vive com menos de um real por dia, com uma dieta a base de salsicha à granel, faz uma vaquinha e compra um jornal por R$ 1,50, ou R$ 2,50 se for domingo.
Em prol dessa brilhante lógica de linha editorial, lá estava eu, perdendo o cabaço com uma mulher na casa dos trinta, com um saco de papel com três furos de .38 cobrindo a cabeça que há três dias não se reconhecia, adorada por zumbidos de moscas gordas, verdes; ela também inchada, se esverdeando de voltar ao chão do ramal de onde saíra. Não vi seu rosto, não fui assombrado nos dias seguintes por um vulto estranhamente reconhecível, como aconteceu com a experiente repórter policial que durante a primeira semana de trabalho me acompanhou nas rondas, em seu primeiro contato com o aquém. Foi aquele cheiro apodrecido de coisa em transição que se impregnou em minha narina turca, e que às vezes me assaltava a lucidez.
Bem mais tarde, no IML, alguns familiares choravam timidamente, e embora escorados numa parede, pareciam sem encosto. Finalmente o pesar, homenagem mínima que reservamos à memória que nos define. Naquele breve instante – e só naquele breve instante – me dei conta de que meu primeiro morto era alguém (porque tinha alguém que o velasse), pois nada, em nenhum dos casos que contei nesse texto ou nos vários outros que presenciei, havia uma farpa sequer de reconhecimento do outro, da individualidade, idéias tão caras ao pensamento moderno; da modernidade em crise.
Por quanto tempo, pois, aquela mulher faria falta a alguém? “Sem ti, tudo correrá sem ti”, escreveu um dos heterônimos de Pessoa.
O cheiro dela era o cheiro de qualquer morto.
Pegava restos de papel de jornal de grandes carretéis pra fazer folha de rascunho. O secretário da redação sempre fazia cara feia quando eu pedia caneta nova, mas me dava, “vai regular bic, bicho?”. Terceiro período na faculdade de comunicação, queria trabalhar na editoria de cultura mas o editor chefe me mandou pra polícia. Tudo nas internas: estágio em reportagem era proibido pelo Sindicato. Era arquivista (função inexistente nas redações em que trabalhei), mas fazia ronda policial de segunda a segunda com exceção de dois fins de semana por mês.
Meu primeiro morto estava escondido num ramal lá pros lados do Tarumã. Estava rodando pela cidade quando o editor passou um rádio dando as direções. Poucos segundos depois a freqüência virou uma festa: “aê, Daniel, vai perder o cabaço”, alguém disse. Há dois cabaços ditos importantes a se perder numa editoria policial: achar um corpo ainda intacto no local do crime (ou onde foi abandonado) e cobrir uma rebelião numa penitenciária ou cadeia. Diz que endurece. Bobagem. É no dia-a-dia que a inocência vai sendo perdida, nas conversas, nos bastidores de redações e delegacias.
Não apenas inocência, mas o respeito. Pelas instituições, pelos homens, pela própria profissão. Já fiz uma matéria sobre um cara que supostamente havia estuprado uma criança na rua onde morava. Reportagem de topo de página, com foto e entrevista com o sujeito, que se dizia inocente. Meses depois descobriram o verdadeiro culpado e o antigo acusado foi pedir nova matéria no jornal (que saiu), mas nem isso impediu que todos os seus pertences fossem destruídos, nem que ele fosse espancado ao tentar retornar para casa.
Conversando com o diretor de um presídio, ele me relatou que um rapaz preso por estupro foi reclamar em sua sala que havia sido estuprado por outro presidiário. A piada era que o tal do sujeito mostrou a orelha toda mordiscada como prova. Cobrindo uma festa de Natal na penitenciária Raimundo Vidal Pessoa, fiquei conversando com um cara de trinta e poucos anos, preso pela terceira vez (sempre por latrocínio), que entendia tudo de direito penal e se dizia satisfeito com o atual diretor da penitenciária. O anterior, de acordo com o detento, era tão escroto que no último Natal, ganhou um “presunto” de presente. Ele e outros presos se juntaram, escolheram um “zé buceta” qualquer, mataram-no e penduraram o corpo na cela. Só para o diretor ter que voltar de casa e passar a noite na Raimundo.
Certa vez estava no Oitavo Distrito, na Compensa, quando uma viatura da Polícia Militar entrou trazendo um acusado de roubo. Os PMs tinham batido tanto no cara que ele estava desacordado. O investigador da civil disse para os policiais o levarem logo para o hospital, mas um PM interveio falando que aquilo era onda, que ele estava fingindo. “Quer ver?”. Segurou, então, a cabeça do homem (que estava deitado no chão) e a levantou até a altura de seu coldre. “Olha só!”. E largou. Sem reação alguma, o corpo caiu direto. Baque surdo, cabeça no concreto, sangue no nariz.
Em Manaus, o problema de falta de leitores de jornal é um dos mais graves do país. Numa capital de mais de 1,5 milhões de habitantes, o diário de maior circulação só consegue vender cerca de 30 mil exemplares (e num domingo!). Desesperadas, as empresas recorrem às editorias de polícia não para reportagens sobre criminalidade, violência ou políticas públicas de segurança, mas para golpes baixos do jornalismo marrom, com manchetes do tipo “Matou por um real”, pra ver se gente que vive com menos de um real por dia, com uma dieta a base de salsicha à granel, faz uma vaquinha e compra um jornal por R$ 1,50, ou R$ 2,50 se for domingo.
Em prol dessa brilhante lógica de linha editorial, lá estava eu, perdendo o cabaço com uma mulher na casa dos trinta, com um saco de papel com três furos de .38 cobrindo a cabeça que há três dias não se reconhecia, adorada por zumbidos de moscas gordas, verdes; ela também inchada, se esverdeando de voltar ao chão do ramal de onde saíra. Não vi seu rosto, não fui assombrado nos dias seguintes por um vulto estranhamente reconhecível, como aconteceu com a experiente repórter policial que durante a primeira semana de trabalho me acompanhou nas rondas, em seu primeiro contato com o aquém. Foi aquele cheiro apodrecido de coisa em transição que se impregnou em minha narina turca, e que às vezes me assaltava a lucidez.
Bem mais tarde, no IML, alguns familiares choravam timidamente, e embora escorados numa parede, pareciam sem encosto. Finalmente o pesar, homenagem mínima que reservamos à memória que nos define. Naquele breve instante – e só naquele breve instante – me dei conta de que meu primeiro morto era alguém (porque tinha alguém que o velasse), pois nada, em nenhum dos casos que contei nesse texto ou nos vários outros que presenciei, havia uma farpa sequer de reconhecimento do outro, da individualidade, idéias tão caras ao pensamento moderno; da modernidade em crise.
Por quanto tempo, pois, aquela mulher faria falta a alguém? “Sem ti, tudo correrá sem ti”, escreveu um dos heterônimos de Pessoa.
O cheiro dela era o cheiro de qualquer morto.
segunda-feira, 18 de março de 2013
[agência pirata] AS DUAS RENÚNCIAS DO PAPA ALEMÃO
:: txt :: Antonio Negri ::
Há mais de vinte anos, saiu a encíclicia Centesimus Annus, do Papa polonês Wojtyla, por ocasião do centenário da Rerum Novarum. Era o manifesto reformista, fortemente inovador, de uma Igreja que se pretendia, dali em diante, única representante dos pobres, depois da queda do império soviético. Àquele documento, meus companheiros parisienses do Futur Antérieur e eu dedicamos um comentário que era também o reconhecimento de um desafio. Teve por título “A V Internacional de João Paulo II”.
Vinte anos depois, o Papa alemão renuncia. Declara-se não só esgotado no corpo, e incapaz de se opor aos imbroglios e à corrupção da Cúria Romana, mas também impotente no ânimo para enfrentar o mundo. Esta abdicação, porém, só pode surpreender os curiais. Todos os que estão atentos aos assuntos da Igreja romana sabem que outra renúncia, bem mais profunda, dera-se antes. Ocorrera em parte sob João Paulo II, quando, com o apoio fervoroso de Ratzinger, a abertura aos pobres e o empenho por uma Igreja renovada pela libertação dos homens da violência capitalista e da miséria terminaram.
Fora pura mistificação, a encíclica de 1991? Hoje, devemos reconhecer que, provavelmente, sim. De fato, na América Latina a Igreja católica destruiu cada foco da Teologia da Libertação. Na Europa, voltou a reivindicar o ordo-liberalismus. Na Rússia e Ásia viu-se quase incapaz de desenvolver o discurso que a nova ordem mundial permitia. E nos países árabes e Irã viu os muçulmanos – em suas diversas seitas e facções – assumir o posto do socialismo árabe (e frequentemente cristão) e do comunismo ortodoxo, na defesa dos pobres e no desenvolvimento de lutas de libertação.
A própria reaproximação com Israel não foi feita em nome do anti-fascismo e da denúncia dos crimes nazistas, mas… em nome da defesa do Ocidente. O paradoxo mais significativo é que o grande impulso missionário (desenvolvido de modo autônomo depois do Concílio Vaticano II) refluiu em favor de ONGs católicas, rigidamente especializadas e depuradas de qualquer característica genericamente “franciscana” Estas ONGs terminaram dedicadas à prática dos “direitos do homem” que a Igreja (e dois Papas: o polaco e o alemão) recusava-se a reconhecer nos países europeus ou na América do Norte, onde ainda expressavam, com ressonância anticlerical e republicana, as conquistas (residuais, ainda que eficazes) da laicidade humanista e iluminista. Ao invés de se colocar à esquerda da social-democracia, como a Centesimus Annus propunha, o papado situou-se à direita, no cenário social, e junto a uma direita política próxima aos Tea Parties (inclusive os europeus).
Agora, o Papa alemão abdica. É quase divertido ouvir a mídia do mundo que ainda se interessa pelo assunto (muito limitado, se considerarmos o espaço global). Ela pede ao novo Papa que reconheça o ministério eclesiástico das mulheres; que estabeleça uma administração colegiada burguesa da Igreja, que assegure uma posição de independência em relação à política… propostas banais. Mas tocam o essencial? Seguramente, não: é a pobreza, o que falta à Igreja. Seria enfim o momento de compreender que o Papa não é um Rei: deve ser pobre, só pode ser pobre.
Tentarão mascarar o problema promovendo um africano, ou um filipino, ao papado? Que horrível gesto racista seria, se o Vaticano e os seus ouros e os seus bancos e a sua dogmática política a favor da propriedade privada e do capitalismo permanecessem brancos e ocidentais! Pedem conceder às mulheres o sacerdócio: não é pura hipocrisia, quando não lhes passa nem pela antecâmera do cérebro que Deus possa ser declinado ao feminino? Querem gestão colegiada da Igreja: mas já Francisco ensinou que o compartilhamento só poderia se dar na caridade. Etc, etc.
A Igreja do Papa polaco e do alemão concluiu o processo de aniquilação do Concílio Vaticano II, e esta liquidação infelizmente não representou jamais uma “guerra civil” no interior da instituição, mas apenas um torneio de esgrima entre prelados – ainda que sangrenta, como no caso da neutralização do cardeal Martini – mas sempre esgrima. Ao colocarem uma pedra sobre aquele Concílio, os dois últimos Papas bloquearam um impetuoso movimento de renovação religiosa. Sobretudo, confundiram a Igreja com o Ocidente, o cristianismo com o capitalismo. Era justamente o que a Centesimus Annus prometia não voltar a fazer, uma vez acabada a histeria anti-soviética.
Não bastava, porém, proclamar a pobreza, para subordinar à cristandade as formas de vida do Ocidente capitalista. Era preciso praticar a pobreza, alimentá-la, como uma revolução. Diante das crises monetárias, de produção e sociais, os cristãos teriam desejado da Igreja uma definição nova e adequada de “caridade”, de “amor pelo próximo”, da “potência da pobreza”. Não a obtiveram. No entanto, muitos militantes cristãos refutam o declínio que o Vaticano e o Ocidente parecem percorrer juntos.
Alguns pensam agora que “a renúncia de Bento poderia finalmente tirar a Igreja do século XIX”; outros ,que haverá uma reflexão profunda e o reconhecimento da necessidade de uma reforma. Mas, ao contrário, não terão razão aqueles para os quais estamos diante da “agonia de um império doente?”. E que o gesto de Bento não é outra coisa além de um álibi oportunista, uma tentativa extrema para fugir da crise? A única coisa de que estamos certos é que qualquer reforma doutrinária será inteiramente inútil se não for precedida, acompanhada e realizada por meio de uma reforma radical das formas de presença social da Igreja, de suas mulheres e homens. Se estes desistirem de associar a esperança celeste e a terrena. Se voltarem a falar da “ressurreição dos mortos”, ocupando-se dos corpos, do alimento, das paixões dos homens que vivem. Significa romper com a função que o Ocidente capitalista confiou à Igreja – pacificar, com esperanças vazias, o espírito de quem sofre; tornar culpada a alma que se rebela.
A descontinuidade produzida pela renúncia de Bento suscitará efeitos de renovação se a ela se associar a recusa a representar a “Igreja do Ocidente”. Talvez tenha chegado o momento de realizar o que havia proposto a Centesimus Annus há vinte anos, e reconhecer aos trabalhadores a condição de explorados, no Ocidente, pelo Ocidente. Mas se o Papa polonês de então não conseguiu, é dúbio que possa fazê-lo um aluno seu, de frágil carisma. A obra está confiada, portanto, aos cristãos. E a nós todos.
Há mais de vinte anos, saiu a encíclicia Centesimus Annus, do Papa polonês Wojtyla, por ocasião do centenário da Rerum Novarum. Era o manifesto reformista, fortemente inovador, de uma Igreja que se pretendia, dali em diante, única representante dos pobres, depois da queda do império soviético. Àquele documento, meus companheiros parisienses do Futur Antérieur e eu dedicamos um comentário que era também o reconhecimento de um desafio. Teve por título “A V Internacional de João Paulo II”.
Vinte anos depois, o Papa alemão renuncia. Declara-se não só esgotado no corpo, e incapaz de se opor aos imbroglios e à corrupção da Cúria Romana, mas também impotente no ânimo para enfrentar o mundo. Esta abdicação, porém, só pode surpreender os curiais. Todos os que estão atentos aos assuntos da Igreja romana sabem que outra renúncia, bem mais profunda, dera-se antes. Ocorrera em parte sob João Paulo II, quando, com o apoio fervoroso de Ratzinger, a abertura aos pobres e o empenho por uma Igreja renovada pela libertação dos homens da violência capitalista e da miséria terminaram.
Fora pura mistificação, a encíclica de 1991? Hoje, devemos reconhecer que, provavelmente, sim. De fato, na América Latina a Igreja católica destruiu cada foco da Teologia da Libertação. Na Europa, voltou a reivindicar o ordo-liberalismus. Na Rússia e Ásia viu-se quase incapaz de desenvolver o discurso que a nova ordem mundial permitia. E nos países árabes e Irã viu os muçulmanos – em suas diversas seitas e facções – assumir o posto do socialismo árabe (e frequentemente cristão) e do comunismo ortodoxo, na defesa dos pobres e no desenvolvimento de lutas de libertação.
A própria reaproximação com Israel não foi feita em nome do anti-fascismo e da denúncia dos crimes nazistas, mas… em nome da defesa do Ocidente. O paradoxo mais significativo é que o grande impulso missionário (desenvolvido de modo autônomo depois do Concílio Vaticano II) refluiu em favor de ONGs católicas, rigidamente especializadas e depuradas de qualquer característica genericamente “franciscana” Estas ONGs terminaram dedicadas à prática dos “direitos do homem” que a Igreja (e dois Papas: o polaco e o alemão) recusava-se a reconhecer nos países europeus ou na América do Norte, onde ainda expressavam, com ressonância anticlerical e republicana, as conquistas (residuais, ainda que eficazes) da laicidade humanista e iluminista. Ao invés de se colocar à esquerda da social-democracia, como a Centesimus Annus propunha, o papado situou-se à direita, no cenário social, e junto a uma direita política próxima aos Tea Parties (inclusive os europeus).
Agora, o Papa alemão abdica. É quase divertido ouvir a mídia do mundo que ainda se interessa pelo assunto (muito limitado, se considerarmos o espaço global). Ela pede ao novo Papa que reconheça o ministério eclesiástico das mulheres; que estabeleça uma administração colegiada burguesa da Igreja, que assegure uma posição de independência em relação à política… propostas banais. Mas tocam o essencial? Seguramente, não: é a pobreza, o que falta à Igreja. Seria enfim o momento de compreender que o Papa não é um Rei: deve ser pobre, só pode ser pobre.
Tentarão mascarar o problema promovendo um africano, ou um filipino, ao papado? Que horrível gesto racista seria, se o Vaticano e os seus ouros e os seus bancos e a sua dogmática política a favor da propriedade privada e do capitalismo permanecessem brancos e ocidentais! Pedem conceder às mulheres o sacerdócio: não é pura hipocrisia, quando não lhes passa nem pela antecâmera do cérebro que Deus possa ser declinado ao feminino? Querem gestão colegiada da Igreja: mas já Francisco ensinou que o compartilhamento só poderia se dar na caridade. Etc, etc.
A Igreja do Papa polaco e do alemão concluiu o processo de aniquilação do Concílio Vaticano II, e esta liquidação infelizmente não representou jamais uma “guerra civil” no interior da instituição, mas apenas um torneio de esgrima entre prelados – ainda que sangrenta, como no caso da neutralização do cardeal Martini – mas sempre esgrima. Ao colocarem uma pedra sobre aquele Concílio, os dois últimos Papas bloquearam um impetuoso movimento de renovação religiosa. Sobretudo, confundiram a Igreja com o Ocidente, o cristianismo com o capitalismo. Era justamente o que a Centesimus Annus prometia não voltar a fazer, uma vez acabada a histeria anti-soviética.
Não bastava, porém, proclamar a pobreza, para subordinar à cristandade as formas de vida do Ocidente capitalista. Era preciso praticar a pobreza, alimentá-la, como uma revolução. Diante das crises monetárias, de produção e sociais, os cristãos teriam desejado da Igreja uma definição nova e adequada de “caridade”, de “amor pelo próximo”, da “potência da pobreza”. Não a obtiveram. No entanto, muitos militantes cristãos refutam o declínio que o Vaticano e o Ocidente parecem percorrer juntos.
Alguns pensam agora que “a renúncia de Bento poderia finalmente tirar a Igreja do século XIX”; outros ,que haverá uma reflexão profunda e o reconhecimento da necessidade de uma reforma. Mas, ao contrário, não terão razão aqueles para os quais estamos diante da “agonia de um império doente?”. E que o gesto de Bento não é outra coisa além de um álibi oportunista, uma tentativa extrema para fugir da crise? A única coisa de que estamos certos é que qualquer reforma doutrinária será inteiramente inútil se não for precedida, acompanhada e realizada por meio de uma reforma radical das formas de presença social da Igreja, de suas mulheres e homens. Se estes desistirem de associar a esperança celeste e a terrena. Se voltarem a falar da “ressurreição dos mortos”, ocupando-se dos corpos, do alimento, das paixões dos homens que vivem. Significa romper com a função que o Ocidente capitalista confiou à Igreja – pacificar, com esperanças vazias, o espírito de quem sofre; tornar culpada a alma que se rebela.
A descontinuidade produzida pela renúncia de Bento suscitará efeitos de renovação se a ela se associar a recusa a representar a “Igreja do Ocidente”. Talvez tenha chegado o momento de realizar o que havia proposto a Centesimus Annus há vinte anos, e reconhecer aos trabalhadores a condição de explorados, no Ocidente, pelo Ocidente. Mas se o Papa polonês de então não conseguiu, é dúbio que possa fazê-lo um aluno seu, de frágil carisma. A obra está confiada, portanto, aos cristãos. E a nós todos.
domingo, 17 de março de 2013
quarta-feira, 13 de março de 2013
[nem te conto] PA-LARVAS
:: txt :: Paulo Wainberg ::
Croquis não parava de coçar os tímbalos. Uma comichão simplesmente invernal. De tanto coçar com as cunhas arranhou e estrembelhou o baco que ficou uma coisa assim, uma querida aguardente repleta de cus.
Depois de muito emprenhar, vendo que nem com vespúcio bromo nem com palco nem com água esborrifada a cocheira cedia, resolveu consultar um epidérmico amigo seu.
Na hora marcada, Croquis entrou no menstruário do dr. Vitupério e foi atendido por uma panfletária loura cujo chafariz, de tão arrebitado mais lembrava uma pomada de parede. Ou um forninho de porco.
Preencheu o cadarço e sentou ao lado de um sujeito que tirara um capacho e coçava doidivanamente os entre-dedos do pé direito.
- Fimose – esclareceu, diante do olhar espanado de Croquis.
Para não puxar defunto, Croquis pegou uma revista Taras que repolhou distraído. Sua cocheira não dava éguas e a querida ardia tanto que mal podia encostar um dedo. O cáspite que conseguia era embocanhar o baco com a mão para que o calor, mesmo por cima das valsas, desse um pequeno olívio.
Quando a panfletária mandou Croquis entrar, Vitupério esperava por ele com os braços albertos e um sorriso nos fábios:
- Croquis, meu parido, há quanto tempo – celebrou o ponto facultativo, estardando palmadas nas bostas de Croquis.
Croquis retribuiu o amasso e foi logo dizendo qual era o problema. Vitupério mandou que ele tirasse as valsas, a meleca e deitasse na mama-vaca instalada ali atrás do calombo. Croquis obedeceu e Vitupério iniciou o enxame. Satisfeito, ordenou que Croquis se travestisse porque ele já tinha o agnóstico do caso. Receitou-lhe uma tomada para passar três meses ao dia, durante dez dias e depois voltar lá.
- Tenta não coçar, meu lombrigo, mas se não der não usa as cunhas. Coça apenas com os medos, ocapa?
Croquis entrou na falácia mais próxima e comprou o promédio. Pediu licença para usar o ranheiro e imediatamente aplicou a primeira pose. Surrou de dor. Como cardia aquela tomada!!! O bagana do sádico não avisara nada, se toda a vez fosse assim ele estava florido.
Saiu para a rua com os tímbalos engodo, mas a cocheira cassou, felizmente. Aos poucos a aderência diminuiu e Croquis, depois de muitas semânticas, sentiu seu baco em paz.
Naquela noite, depois de um ranho quente, entulhou cuidadosamente o baco e preparou-se paraplegicamente parar passar a tomada.
Melhorou. No dia seguinte o cus havia secado e no décimo dia as queridas também. Quando retornou ao sádico, perguntou o que, afinal, ele tivera. Vitupério revelou que ele havia combalido harpias gentalhas, provavelmente de alguma colher.
Encuscado, Croquis mal falou com sua raposa, naquela noite. Há muitos anus que só mantinha retaliações sexuais com ela, seria ela a papel transmissora? E de quem ela perquirira a dolência? Por acaso ela teria um calmante e ele, nesse caso, era um forno?
Foi uma noite pesada, durante a qual foi acometido por forte nocturia que, para quem desconhece, é mijar mais do que o líquido invertido.
Passaram pias e ele evitando focar no presunto, com medo da rebosta. Mesmo após tanto tempo de castrado, ele ainda amava sua colher.
Até que, não suportando mais o suspense, na hora da janta perguntou à raposa, assim como quem não quer nada:
- Ferida, acaso tens harpias gentalhas?
Sobremesa com a pergunta, Lasciva ficou sem palarvas por alguns sextantes. Depois, rarefeita, perguntou:
- De onde tiraste essa mucreia, me trem? Sou eu lá colher de ter harpias? E ainda por cima gentalhas?
- É que eu peguei – disse Croquis – e segundo o Vitupério, recortas dele?, foi de uma colher.
- Pegaste harpias gentalhas de uma colher? Mas que cacife! E ainda tens voragem de me contar, assim, na latrina? Quem é ela, catralha? Quem é essa sirifole, essa sacristã, essa…essa pastachuta com quem bandas me arlindo?
- Mas meu banjo, não tem nenhuma potra. Desde o nosso castramento tu és a única colher da minha brida. Vai ver o Vitupério berrou. Amanhã vou lá entumecer esso.
- Vou adjunto, infantil! Tu não me empanas mais. A lambância que eu tinha, desmunhecou, meu milho, desmunhecou!
Ultra e ajada, Lasciva retirou-se para o parto, clorando às pândegas e sentindo-se a múltipla das colheres. Mais tarde, quando Broquis dormia, deu graças aos léos por ter currado suas harpias genitálias e anotou mentecaptamente para conferir com o vizinho, seu calmante, se ele havia currado as dele.
Broquis dormiu o sono dos banjos ao ver que não era um forno e que sua colher ainda tinha cumes dele.
Quando, dois anus depois, chegou mais cedo em casa e tragou a colher com o vizinho na lama de casal, entrentidos em purulenta carnificina nexual, retirou-se sem alpiste e tingiu nada ter visto.
Confrontou-se: era um forno sim, e ainda por cima ranso.
Croquis não parava de coçar os tímbalos. Uma comichão simplesmente invernal. De tanto coçar com as cunhas arranhou e estrembelhou o baco que ficou uma coisa assim, uma querida aguardente repleta de cus.
Depois de muito emprenhar, vendo que nem com vespúcio bromo nem com palco nem com água esborrifada a cocheira cedia, resolveu consultar um epidérmico amigo seu.
Na hora marcada, Croquis entrou no menstruário do dr. Vitupério e foi atendido por uma panfletária loura cujo chafariz, de tão arrebitado mais lembrava uma pomada de parede. Ou um forninho de porco.
Preencheu o cadarço e sentou ao lado de um sujeito que tirara um capacho e coçava doidivanamente os entre-dedos do pé direito.
- Fimose – esclareceu, diante do olhar espanado de Croquis.
Para não puxar defunto, Croquis pegou uma revista Taras que repolhou distraído. Sua cocheira não dava éguas e a querida ardia tanto que mal podia encostar um dedo. O cáspite que conseguia era embocanhar o baco com a mão para que o calor, mesmo por cima das valsas, desse um pequeno olívio.
Quando a panfletária mandou Croquis entrar, Vitupério esperava por ele com os braços albertos e um sorriso nos fábios:
- Croquis, meu parido, há quanto tempo – celebrou o ponto facultativo, estardando palmadas nas bostas de Croquis.
Croquis retribuiu o amasso e foi logo dizendo qual era o problema. Vitupério mandou que ele tirasse as valsas, a meleca e deitasse na mama-vaca instalada ali atrás do calombo. Croquis obedeceu e Vitupério iniciou o enxame. Satisfeito, ordenou que Croquis se travestisse porque ele já tinha o agnóstico do caso. Receitou-lhe uma tomada para passar três meses ao dia, durante dez dias e depois voltar lá.
- Tenta não coçar, meu lombrigo, mas se não der não usa as cunhas. Coça apenas com os medos, ocapa?
Croquis entrou na falácia mais próxima e comprou o promédio. Pediu licença para usar o ranheiro e imediatamente aplicou a primeira pose. Surrou de dor. Como cardia aquela tomada!!! O bagana do sádico não avisara nada, se toda a vez fosse assim ele estava florido.
Saiu para a rua com os tímbalos engodo, mas a cocheira cassou, felizmente. Aos poucos a aderência diminuiu e Croquis, depois de muitas semânticas, sentiu seu baco em paz.
Naquela noite, depois de um ranho quente, entulhou cuidadosamente o baco e preparou-se paraplegicamente parar passar a tomada.
Melhorou. No dia seguinte o cus havia secado e no décimo dia as queridas também. Quando retornou ao sádico, perguntou o que, afinal, ele tivera. Vitupério revelou que ele havia combalido harpias gentalhas, provavelmente de alguma colher.
Encuscado, Croquis mal falou com sua raposa, naquela noite. Há muitos anus que só mantinha retaliações sexuais com ela, seria ela a papel transmissora? E de quem ela perquirira a dolência? Por acaso ela teria um calmante e ele, nesse caso, era um forno?
Foi uma noite pesada, durante a qual foi acometido por forte nocturia que, para quem desconhece, é mijar mais do que o líquido invertido.
Passaram pias e ele evitando focar no presunto, com medo da rebosta. Mesmo após tanto tempo de castrado, ele ainda amava sua colher.
Até que, não suportando mais o suspense, na hora da janta perguntou à raposa, assim como quem não quer nada:
- Ferida, acaso tens harpias gentalhas?
Sobremesa com a pergunta, Lasciva ficou sem palarvas por alguns sextantes. Depois, rarefeita, perguntou:
- De onde tiraste essa mucreia, me trem? Sou eu lá colher de ter harpias? E ainda por cima gentalhas?
- É que eu peguei – disse Croquis – e segundo o Vitupério, recortas dele?, foi de uma colher.
- Pegaste harpias gentalhas de uma colher? Mas que cacife! E ainda tens voragem de me contar, assim, na latrina? Quem é ela, catralha? Quem é essa sirifole, essa sacristã, essa…essa pastachuta com quem bandas me arlindo?
- Mas meu banjo, não tem nenhuma potra. Desde o nosso castramento tu és a única colher da minha brida. Vai ver o Vitupério berrou. Amanhã vou lá entumecer esso.
- Vou adjunto, infantil! Tu não me empanas mais. A lambância que eu tinha, desmunhecou, meu milho, desmunhecou!
Ultra e ajada, Lasciva retirou-se para o parto, clorando às pândegas e sentindo-se a múltipla das colheres. Mais tarde, quando Broquis dormia, deu graças aos léos por ter currado suas harpias genitálias e anotou mentecaptamente para conferir com o vizinho, seu calmante, se ele havia currado as dele.
Broquis dormiu o sono dos banjos ao ver que não era um forno e que sua colher ainda tinha cumes dele.
Quando, dois anus depois, chegou mais cedo em casa e tragou a colher com o vizinho na lama de casal, entrentidos em purulenta carnificina nexual, retirou-se sem alpiste e tingiu nada ter visto.
Confrontou-se: era um forno sim, e ainda por cima ranso.
terça-feira, 12 de março de 2013
segunda-feira, 11 de março de 2013
domingo, 10 de março de 2013
[agência pirata] UM POUCO DE JUSTIÇA
:: txt :: Luciano Martins Costa ::
A morte de Hugo Chávez Frías, presidente da Venezuela eleito seguidamente por quatro mandatos, obriga os jornais brasileiros a lhe fazer alguma justiça. Os cadernos especiais que engordam as edições dos diários na quarta-feira (6/3) trazem conteúdos tão diferentes da imagem que a imprensa nacional construiu para ele ao longo dos últimos anos, que o leitor distraído haverá de pensar que se trata de personagens diferentes. Vivo, Chávez era pintado como um ditador populista; morto, é quase um estadista revolucionário.
Articulistas dos grandes jornais lhe fazem epitáfios generosos nos mesmos espaços onde costumavam demonizar seu projeto de governo. Tabelas e infográficos revelam que, ao contrário do que se dizia, ele não afundou a Venezuela num abismo econômico; ao contrário: reduziu a pobreza, conteve o desemprego, controlou a inflação e deslocou seu país de uma posição subalterna em geopolítica e o colocou como protagonista de grandes questões mundiais. Não é pouco para quem, enquanto viveu, foi apresentado como irresponsável, autoritário, inimigo das liberdades e incompetente como chefe de Estado.
Uma comparação entre os jornais oferece alguma vantagem à Folha de S. Paulo, por duas razões muito simples: o jornal paulista trocou parte do opiniário por informações objetivas e a principal articulista convidada a fazer o perfil de Chávez, Julia Sweig, teve a humildade de reconhecer, em seu texto, que ainda é cedo para análises mais corretas do que ele representou para a Venezuela e a América Latina. “Os historiadores que se debruçarem sobre o período dentro de algumas décadas vão dispor de ferramentas mais amplas para avaliar mais profundamente o legado de Chávez”, diz a articulista.
E qual seria esse legado? Segundo o Estado de S.Paulo, antes de Chávez o Produto Interno Bruto da Venezuela era de menos de US$ 200 bilhões; em 2012, o PIB venezuelano chegou a US$ 400 bilhões. De acordo com a Folha, a inflação, que Chávez herdou num patamar acima de 35% ao ano, baixou para 23,2%, apesar da crise de 2008. E o desemprego, que era de 11,3% quando ele assumiu, caiu para 8%.
A dívida pública subiu e a violência, vista pelo número de homicídios por cem mil habitantes, aumentou muito, mas há controvérsias derivadas da melhoria nos registros policiais nesse período.
Conquistas sociais
De acordo com a visão oferecida pela Folha, Hugo Chávez foi um homem do seu tempo, radicalmente fiel ao conjunto de valores que dominaram a política latino-americana neste início de século: crescimento com inclusão social, consenso em defesa da democracia, e independência em relação à diplomacia condicionada aos interesses de segurança dos Estados Unidos.
Por conta dessa política que se opunha aos dogmas do chamado liberalismo econômico, a imprensa se vê obrigada a registrar que, em seus três mandatos integrais, a pobreza extrema caiu de 20,3% para apenas 7% da população venezuelana, um resultado superior ao fenômeno do resgate social obtido pelo Brasil no mesmo período.
Outro aspecto interessante nos indicadores apresentados pela Folha é o conjunto de gráficos sobre o crescimento do PIB nas principais economias sul-americanas, que mostram como a Venezuela, por depender exclusivamente do petróleo, sofreu o maior impacto da crise financeira de 2008, mas reagiu de maneira mais consistente do que a maioria dos países da região.
Os gráficos publicados pelo Estadão não deixam tão claras as conquistas do líder controverso e o Globo apenas cita alguns desses números em um texto de sua correspondente. O jornal carioca destaca a estatização da economia venezuelana, mas admite que “em termos de indicadores, de fato, a revolução bolivariana conseguiu reduzir de forma expressiva a pobreza”.
No mais, a imprensa brasileira discute se ele foi um caudilho, um líder populista ou um revolucionário; destaca seu temperamento histriônico, relata sua guerra com os grandes conglomerados de comunicação da Venezuela e investe em adivinhações sobre o futuro do chavismo.
Restam, então, algumas questões. Uma delas: se Chávez produziu mudanças tão radicais e positivas na economia e na sociedade venezuelanas, por que suas conquistas foram ocultadas pela imprensa brasileira enquanto ele viveu?
Se o objetivo do desenvolvimento econômico é promover crescimento com redução das desigualdades – e ele conseguiu isso sem ameaçar a democracia, como destacam os jornais –, por que razão foi demonizado desde que chegou ao poder?
A imprensa só faz justiça nos obituários?
A morte de Hugo Chávez Frías, presidente da Venezuela eleito seguidamente por quatro mandatos, obriga os jornais brasileiros a lhe fazer alguma justiça. Os cadernos especiais que engordam as edições dos diários na quarta-feira (6/3) trazem conteúdos tão diferentes da imagem que a imprensa nacional construiu para ele ao longo dos últimos anos, que o leitor distraído haverá de pensar que se trata de personagens diferentes. Vivo, Chávez era pintado como um ditador populista; morto, é quase um estadista revolucionário.
Articulistas dos grandes jornais lhe fazem epitáfios generosos nos mesmos espaços onde costumavam demonizar seu projeto de governo. Tabelas e infográficos revelam que, ao contrário do que se dizia, ele não afundou a Venezuela num abismo econômico; ao contrário: reduziu a pobreza, conteve o desemprego, controlou a inflação e deslocou seu país de uma posição subalterna em geopolítica e o colocou como protagonista de grandes questões mundiais. Não é pouco para quem, enquanto viveu, foi apresentado como irresponsável, autoritário, inimigo das liberdades e incompetente como chefe de Estado.
Uma comparação entre os jornais oferece alguma vantagem à Folha de S. Paulo, por duas razões muito simples: o jornal paulista trocou parte do opiniário por informações objetivas e a principal articulista convidada a fazer o perfil de Chávez, Julia Sweig, teve a humildade de reconhecer, em seu texto, que ainda é cedo para análises mais corretas do que ele representou para a Venezuela e a América Latina. “Os historiadores que se debruçarem sobre o período dentro de algumas décadas vão dispor de ferramentas mais amplas para avaliar mais profundamente o legado de Chávez”, diz a articulista.
E qual seria esse legado? Segundo o Estado de S.Paulo, antes de Chávez o Produto Interno Bruto da Venezuela era de menos de US$ 200 bilhões; em 2012, o PIB venezuelano chegou a US$ 400 bilhões. De acordo com a Folha, a inflação, que Chávez herdou num patamar acima de 35% ao ano, baixou para 23,2%, apesar da crise de 2008. E o desemprego, que era de 11,3% quando ele assumiu, caiu para 8%.
A dívida pública subiu e a violência, vista pelo número de homicídios por cem mil habitantes, aumentou muito, mas há controvérsias derivadas da melhoria nos registros policiais nesse período.
Conquistas sociais
De acordo com a visão oferecida pela Folha, Hugo Chávez foi um homem do seu tempo, radicalmente fiel ao conjunto de valores que dominaram a política latino-americana neste início de século: crescimento com inclusão social, consenso em defesa da democracia, e independência em relação à diplomacia condicionada aos interesses de segurança dos Estados Unidos.
Por conta dessa política que se opunha aos dogmas do chamado liberalismo econômico, a imprensa se vê obrigada a registrar que, em seus três mandatos integrais, a pobreza extrema caiu de 20,3% para apenas 7% da população venezuelana, um resultado superior ao fenômeno do resgate social obtido pelo Brasil no mesmo período.
Outro aspecto interessante nos indicadores apresentados pela Folha é o conjunto de gráficos sobre o crescimento do PIB nas principais economias sul-americanas, que mostram como a Venezuela, por depender exclusivamente do petróleo, sofreu o maior impacto da crise financeira de 2008, mas reagiu de maneira mais consistente do que a maioria dos países da região.
Os gráficos publicados pelo Estadão não deixam tão claras as conquistas do líder controverso e o Globo apenas cita alguns desses números em um texto de sua correspondente. O jornal carioca destaca a estatização da economia venezuelana, mas admite que “em termos de indicadores, de fato, a revolução bolivariana conseguiu reduzir de forma expressiva a pobreza”.
No mais, a imprensa brasileira discute se ele foi um caudilho, um líder populista ou um revolucionário; destaca seu temperamento histriônico, relata sua guerra com os grandes conglomerados de comunicação da Venezuela e investe em adivinhações sobre o futuro do chavismo.
Restam, então, algumas questões. Uma delas: se Chávez produziu mudanças tão radicais e positivas na economia e na sociedade venezuelanas, por que suas conquistas foram ocultadas pela imprensa brasileira enquanto ele viveu?
Se o objetivo do desenvolvimento econômico é promover crescimento com redução das desigualdades – e ele conseguiu isso sem ameaçar a democracia, como destacam os jornais –, por que razão foi demonizado desde que chegou ao poder?
A imprensa só faz justiça nos obituários?
sábado, 9 de março de 2013
[gonzo níus] MACEDUSSS LANÇA DVD
:: txt :: Macedusss ::
Macedusss & As Desajustados Bando lança DVD de grátis (free, pode pegar).
O conjunto de música, laboratório experimental e grupo de estudos de produção (anti)musical acaba de lançar no mercado das gratuidades a sua nova peça de divulgação de amor por São Leopoldo (pelo Rio Grande do Sul, São Paulo, Santos, Rio Claro, mundo) e pelo clube de futebol da cidade, campeão da terceira divisão do campeonato gaúcho, nosso colono/índio Aimoré. Para pegar o DVD é simples e fácil: basta alguns cliques e algumas impressões. E bem vindo ao mundo do amor pela música bem tocada e anarquista. O dvd é seu, afinal você precisa de Macedusss para a existência plena.
Baixe o mesmo em:
A capa segue anexada aqui.
Macedusss & As Desajustados Bando lança DVD de grátis (free, pode pegar).
O conjunto de música, laboratório experimental e grupo de estudos de produção (anti)musical acaba de lançar no mercado das gratuidades a sua nova peça de divulgação de amor por São Leopoldo (pelo Rio Grande do Sul, São Paulo, Santos, Rio Claro, mundo) e pelo clube de futebol da cidade, campeão da terceira divisão do campeonato gaúcho, nosso colono/índio Aimoré. Para pegar o DVD é simples e fácil: basta alguns cliques e algumas impressões. E bem vindo ao mundo do amor pela música bem tocada e anarquista. O dvd é seu, afinal você precisa de Macedusss para a existência plena.
Baixe o mesmo em:
A capa segue anexada aqui.
sexta-feira, 8 de março de 2013
[jota péguiz] PORTO ALEGRE EM LOMO
:: phts :: Wladymir Ungaretti ::
Imagens (em lomographia) para melhor imaginar. Não anotei nada. Nenhuma especificação técnica. O “aparelho” é uma Diana F+, filme asa 400 P&B, 120mm, negativos 6×6 escaneados com leve aumento do brilho.
Imagens (em lomographia) para melhor imaginar. Não anotei nada. Nenhuma especificação técnica. O “aparelho” é uma Diana F+, filme asa 400 P&B, 120mm, negativos 6×6 escaneados com leve aumento do brilho.
quinta-feira, 7 de março de 2013
[noéntrevista] ZÉ RAMALHO
:: ntrvst :: Cristiano Bastos ::
Camuflado numa alameda do bairro do Flamengo, o ex-cadete do exército José Ramalho Neto encravou em solo fluminense um QG de raízes paraibanas: a produtora Jerimum. As simbologias agrestes são marcas constantes e profundas na obra de Zé Ramalho.
Sob a umidade tropical do Rio de Janeiro, a aridez do sertão ainda é metáfora-chave para ingressar nos numerosos códigos – místicos, psicodélicos, ufológicos e de velhos ícones do rock'n'roll – cifrados em suas composições.
Ele conta que "desceu ao mundo" em março de 1949, em Brejo do Cruz, nos confins da Paraíba. Depois da morte do pai, poeta, afogado num açude do sertão, foi criado pelo avô para ser médico.O avô-pai, após uma viagem lisérgica do neto envolvendo cogumelos, extraterrestres e mensagens telepáticas, virou a canção-hino "Avôhai".
Numa conversa animada que levou a tarde inteira de uma segunda-feira, Zé Ramalho falou sobre o disco novo, Canta Bob Dylan – Tá Tudo Mudando e a facilidade que encontrou para liberar canções do velho Zimmermann – o exato oposto ocorreu com as canções assinadas pela dupla Raul Seixas e Paulo Coelho no projeto Zé Ramalho Canta Raul Seixas.
O paraibano abriu suas vivências químicas, sem pudores e em dois capítulos: primeiro, com os cogumelos alucinógenos; depois, com a cocaína. E explicou sua negação para se manifestar sobre o álbum que fez com o Lula Côrtes, Paêbirú: "Por que tantos anos depois? Deviam ter falado sobre isso há 30 anos!"
Onde sua história começa?
Zé Ramalho - Apesar de eu ter nascido em Brejo do Cruz, e não "da" Cruz, como muita gente confunde, por causa da música do Chico Buarque, depois de dois meses meu avô conduziu a família pra Campina Grande, onde ficamos até 1960. É lá que, pela primeira vez, eu escuto rádio, com 5 anos de idade. As rádios AM eram a única novidade, as novelas do rádio e os programas de auditório ao vivo. Na Rádio Borborema vi show de Marinês e sua Gente, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Lembro que tivemos que ir pra João Pessoa, porque meu avô sofria de pressão alta e Campina Grande fica em cima da Serra da Borborema. Aos 13 anos, quando o intelecto foi se abrindo, a música ganhou mais força. A Jovem Guarda começou a aparecer para mim. Especialmente, Roberto Carlos e Renato & Seus Blue Caps. Eu estudava no colégio Pio X, dos Irmãos Maristas, em João Pessoa. E, nesse colégio, de educação extremamente fina, nos jograis que a gente tinha que fazer uma vez por mês, um dos trabalhos era organizar um grupo musical em cada classe. Depois fazer uma espécie de concurso entre os alunos. Eu já sabia dar três acordes no violão. Juntaram outros dois colegas. Fizemos uma apresentação que fez muito sucesso. Aquilo criou uma chispa. Acendeu em mim a chama dos grupos de baile, pode-se dizer. Dali, logo depois passei a procurar os músicos que tocavam nos bailes pela cidade de João Pessoa. Eram muitos.
Como era esse grupo de baile?
Zé Ramalho - Fundamos uma banda chamada Elis & os Demônios, com mais três colegas da escola. Começamos a ser contratados para tocar em bailes, para as pessoas dançarem. Bailes de quatro horas. Eu tocava guitarra e, aos poucos, fui me incumbindo dos solos. Eu copiava. Isso me trouxe uma riqueza muito grande. Porque você toca de tudo. A formação mais famosa que integrei tinha um vocal fenomenal: Os Quatro Loucos, que, antes, se chamava Four Crazy's, numa tradução errada – o certo seria Crazy Four. A gente tocava músicas em inglês, então eu levava as letras pro professor traduzir, pra entendermos o que estávamos cantando. Foram experiências importantes pra me dar noção sobre comportamento de palco, remuneração e profissionalismo. Comecei a pensar nessas coisas.
Você era muito jovem?
Zé Ramalho - Muito. Eu tinha 16, 17 anos. Agora, encostei nos 60. Estou em "cinco ponto nove", companheiro. São 42 anos de carreira. Mas as coisas ainda estão muito frescas na minha cabeça. Os grupos de baile tocavam, basicamente, Jovem Guarda, e quase nada de forró, quase nada de samba. A gente tocava guitarra pra conquistar as meninas e ter uma chance de colar nelas. Até que, com 18 anos, chegou a hora de servir o quartel. Pior que eu tinha fama de cabeludo por causa dos grupos.
Fama de cabeludo?
Zé Ramalho - Eu era muito cabeludo! [risos] E era xingado: "Cabeludo! Viado! Vá tomar banho! Vá cortar o cabelo!" Eu ouvia isso o tempo todo. Como me propus a tudo isso, no entanto, aguentei no osso. Hoje em dia quem liga pra isso? Quando o barbeiro do exército me viu, disse: "Vou logo cravar esse cara". Ele me pegou mesmo. Não consegui me livrar. Meus estudos passaram pra parte da noite e, nos fins de semana, eu botava uma peruca pra tocar. Foi nessa fase "militar" que comecei a fazer música.
O que se passava em sua cabeça na época?
Zé Ramalho - Final dos anos 60, contracultura explodindo no mundo: eu estava atento a tudo isso. Woodstock! Quando saí do cinema, depois de ter visto esse filme, minha vida mudou. Vi in loco no Brasil. O cinema lançando pela primeira vez, em 1970, Rio de Janeiro. Depois, vi em Recife, na Paraíba. Em diversos lugares. Woodstock foi importante pra eu ver aquela atitude, o comportamento, a cultura hippie: sexo, drogas, nego fumando sem haver nenhum tipo de confusão. Eu achava aquilo uma espécie de "utopia mágica" – música que dava uma sensação de você estar vivendo num "planeta amor". Em Recife encontrei novo horizonte. Comecei a frequentar shows e, num desses, conheci o grande guitarrista Paulo Rafael, que ainda hoje toca com Alceu Valença. Na época tocava na banda Phetus.
Como você conheceu Alceu?
Zé Ramalho - Ele estava fazendo o filme A Noite do Espantalho. Eu namorava uma menina que morava em Recife, na praia de Boa Viagem. Glauce, o nome dela. Ela me disse: "Se você quiser conhecer um cara legal, Alceu Valença é o nome dele. Ele namora minha irmã. Alceu tem umas músicas ótimas". Uma tarde, fui à casa dela e Alceu estava lá. Nos demos bem de cara. A empatia foi imediata. Foi daí que também conheci Geraldo Azevedo, que tocava com ele. Isso era 1974. Em 1975, chega a história do Festival Abertura da Rede Globo, em São Paulo, produção do Augusto César Vanucci. O Alceu reuniu os melhores músicos que tocavam em Recife, na época, caras da banda Ave Sangria. Um bandão.
Era a abertura política?
Zé Ramalho - O Festival Abertura já era uma sugestão do General Figueiredo pra abertura política que se prenunciava. Os artistas do festival estavam sendo lançados pela Som Livre. Quase todo o cast do festival, na verdade, era da gravadora: Alceu, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Hermeto Pascoal. Um festival de luxo. Iniciante, me encantei vendo aquele povo todo e comecei a ficar por aqui, no Rio, depois que passou a coisa toda com o Alceu. Como eu ainda não tinha as músicas que estreei no meu primeiro disco, fiz algumas tentativas pelo Sul que não deram em nada. O repertório era basicamente de músicas de rock, mas não chamava público. Sem ter disco gravado, uma carreira, na vida artística você é considerado aspirante. Contudo, tive de voltar ao Nordeste e preparar-me mais. Nessa volta, fiz um trabalho com a cineasta Tânia Quaresma, importantíssimo para encorpar de vez meus conhecimentos. Ela filmou Nordeste, Cordel, Repente e Canção e me convidou pra participar do projeto. Eu conhecia o universo dos cantadores e violeiros, mas ainda não tinha me aprofundado. Tânia me contratou para servir como espécie de rastreador de violeiros, nas locações das filmagens.
Você atuaria no filme?
Zé Ramalho - Caso necessário, eu completaria algumas passagens tocando viola. Eu já era muito elogiado pela minha técnica. Nos shows do Alceu eu tocava viola de 12 e de dez [cordas]. A experiência do filme foi importante demais, pois veio uma camada de cultura popular, legítima, invadindo meu corpo e cérebro inteiros. Foram 17 dias de viagem a bordo de uma Kombi: Ceará, Pernambuco, Paraíba e uma parte de Sergipe. Fomos às varandas das casas dos violeiros, onde tinha as pelejas, nas oficinas dos cordelistas. Eu estava absorvendo essa cultura de uma maneira que nunca eu tinha pensado ser possível.
O que aprendeu?
Zé Ramalho - Entendi algo muito preciso: as leis da cantoria, principalmente, a fórmula de se fazer os versos. Uma forma que você tem que entender. Não adianta decorar. Quando volto para a Paraíba, também faço minhas primeiras experiências com outra turma: a dos cogumelos alucinógenos. Preciso contar essa história pra explicar o link que, depois, acontece na minha vida. Pra começar: acho que nem deveria chamar cogumelo de droga. Não há o contato da mão humana. É tudo direto. Quando descobriram que tinha isso nos pastos do Nordeste houve uma espécie de busca por parte de minha geração. Tem um tipo de cogumelo específico que não vai intoxicá-lo. Nós, porém, éramos loco ma non troppo – antes, realizamos estudos com fotografias dos cogumelos para saber quais eram comestíveis e quais eram venenosos. No meu caso, foi uma coisa que me deu uma iluminação muito grande. Foi quando recebi a mensagem do "Avôhai".
Como foi isso?
Zé Ramalho - Eu descrevo na música uma parte dessa experiência: "Amanita matutina / E que transparente cortina ao meu redor" [canta]. Amanita é nome científico dos cogumelos. Quando senti isso, eu estava numa fazenda linda, pasto maravilhoso. Sensação de liberdade – "Transparente cortina ao meu redor" [recita]. Era como se fosse a aurora boreal. Seu olho fica muito preciso. Todas essas coisas estão muito presentes na música: o encantamento, a espiritualidade que as pessoas sentem de imediato. "Avôhai" é minha única música que posso dizer que teve uma espécie de mediunidade envolvida. Porque eu não pensei nela, ela me foi soprada: "Avôhai... Avôhai..." [sussurra]. E a forma como a letra veio, veloz. Depois, voltando pra casa, nessas ondas de psicodelia, num retrato da parede tinha a imagem de uma pedra de turmalina. Saiu a letra todinha: "O Velho cruza a soleira" – "Avôhai, avô e pai". Escrevendo os acordes sem parar, eu sabia pra onde ir, cara. Foi de uma rapidez impressionante e nunca mais aconteceu algo parecido em minha vida. O que é "Avôhai"? Por toda a minha vida, eu tenho que responder essa pergunta quase semanalmente. Tenho o maior prazer em falar sobre isso. Nunca me cansarei.
Você acha que a lisergia desabrochou tudo isso?
Zé Ramalho - Essas experiências eu chamo de "A Semana da Iluminação", os dias que sucederam "Avôhai". Eu morava em João Pessoa numa casa chamada Vila do Sossego, tinha uma plaquinha na porta. Nos dias que se seguiram a essa viagem aconteceram todas essas músicas: "Chão de Giz", "Vila do Sossego", "Jardins das Acácias". Meu primeiro disco é muito espiritualista. E muito lisérgico. Não há conotação política nas músicas. Separei as que tinham e deixei de lado pra preservar esse lado viajante e, principalmente, meio regional. É um disco sem bateria. Tem a participação do [tecladista] inglês Patrick Moraz, do Yes. Só "Avôhai" pra conseguir uma coisa dessas.
Como foram as gravações de "Avôhai"?
Zé Ramalho - Foram de uma precisão incrível. Moraz estava no Brasil gravando o disco The Story of Eye com o Carlos Alberto Sion. Calhou que o destino configurou Sion pra ser produtor do meu primeiro álbum. Chegou na hora de gravar algumas partes instrumentais e perguntei quem iria fazer. E ele: "Patrick Moraz. Vamos mandar uma fitinha sua pra ele". Enviamos uma fita cassete pra ele ouvir. Na época, ele estava substituindo Rick Wakeman no Yes. Quando escutou a música, bateu algo nele. E eu fiquei bobo na hora em que entramos no estúdio. Ele me pediu pra passar alguns acordes a fim de completar o arranjo. Eu, ingênuo, ao lado daquele cara, side by side: "Rapaz, como é que pode?!" Patrick observando os movimentos de minha mão. Sacando os acordes. Chegou o Ivinho e fez aquela viola ultrarrápida. Até o final de 1977, quando eu registrei meu primeiro álbum, foi uma sobrevivência séria que passei no Rio. Eu não tinha dinheiro. Não tinha onde ficar.
E você foi se virar como michê?
Zé Ramalho - Não cheguei a ser michê, mas tinha umas meninas que dormiam comigo. A canção "Garoto de Aluguel" é autobiográfica por causa disso. Essas meninas eram estudantes que eu conhecia do tempo em que tocava com o Alceu. Eu era rato de show aqui no Rio de Janeiro. Elas gostavam dos cantores nordestinos, do jeitão da gente, meio desengonçados. Era mais a inspiração da música. Elas viam a situação em que a gente estava. Eu passei fome. Várias vezes dormi em frente ao Copacabana Palace. Mas teve uma camarada lá no Bar da Glória que, durante uns quatro meses, me deixou dormir num quarto de empregada, aquele cubículo miudinho. Era o tempo dos militares, em que assassinos, estupradores e bandidos não existiam. Existiam hippies e malucos, mas eles diziam: "Esse pessoal deixa em paz porque não é subversivo". "Nordestino sofredor" – chamavam a gente assim. Depois de servir o quartel, cheguei ao Rio preparado. As coisas que eu passei no quartel não foram moles. Antes de partir fui pra frente do espelho e disse: "Olha, cara, se você acha que é tão espertinho, vá pro Rio de Janeiro, sozinho, sem depender de ninguém". Fui com isso na cabeça. Sabia, no entanto, que com o pacote de canções alguma coisa iria acontecer. Disso eu tinha plena certeza, senão não viria.
Você já tinha essas músicas no bolso?
Zé Ramalho - O Augusto Cesar Vanucci fez muito esforço pra me colocar na Som Livre, só que não houve como. Percorri um longo caminho. O Durval Ferreira, após ouvir a letra de "Avôhai", fez uma cara de quem não gostou e a atirou no chão. Ele dizia que uma letra daquelas nunca iria funcionar. Talvez, apenas, se eu a mudasse. "Se você mudar para uma coisa mais comercial..." Sempre eles faziam uma proposta. Eu nunca aceitei. Passei pela Odeon, Fonogram, depois Polygram. Até que cheguei na CBS. Era final de 1977. Raimundo Fagner tinha um disco que havia saído pela gravadora e começava a fazer sucesso para um artista nordestino. Na CBS só existia o Roberto Carlos que vendia. Notaram que havia uma coisa expressiva: os nordestinos vendiam discos. Foi o que aconteceu. Alceu já estava despontando.
Vanusa gravou "Avôhai" antes de você, não é?
Zé Ramalho - Gravou. Não chegou a estourar, mas eu participo da gravação, por conta do Vanucci. Ele chegou pra mim: "Tem uma pessoa que eu gostaria que gravasse uma canção sua. Você autoriza? Quer participar?" Eu: "Claro que quero". Os arranjos de viola sou eu que faço. O fato é que a minha gravação teve uma magia pessoal que a Vanusa não tinha como passar, afinal era uma experiência muito pessoal. Mais a participação de músicos como Dominguinhos passando pelo estúdio, com sua sanfona, foi um feitiço. Altamiro Carrilho, sumidade de flauta da época de ouro do choro. E também Paulo Moura. Havia uma configuração de músicos. Tudo acontecia de maneira muito espontânea. Pela primeira vez, tive a chance de ficar no Rio de Janeiro, confortavelmente, sem precisar dormir ao relento. Me colocaram num hotel. Ô, como adorei! Foi maravilhoso poder comer e dormir.
Sua geração revelou um Nordeste musical moderno ao Brasil.
Zé Ramalho - Certamente, sem aquela coisa tradicionalista-purista do Nordeste. Essa reciclagem da música nordestina aconteceu por aquela geração – ou seja, o forró elétrico, como chamavam, os "violétricos", mistura dos violeiros com o rock de guitarras. As pessoas estavam acostumadas com a música nordestina por causa da dimensão muito forte que Gonzaga, Jackson, Martinez e Genival Lacerda cravaram. Historicamente, algo bem pouco referendado. Verdade. Nunca tive vergonha de dizer minhas influências, meus mestres. Quem são meus mestres? Começando pela primeira camada que veio: aqueles astros de Woodstock, Jovem Guarda, Renato & Seus Blue Caps, Roberto e Erasmo. Aí entra a descoberta do Nordeste: Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, os violeiros Otacílio Batista e Oliveira de Panelas, que foram mestres profundos que tiveram paciência e uma generosidade muito grande pra me passar as leis e obrigações da cantoria. Isto é, onde a rima entra. Doze modalidades da cantoria de viola que me foram ministradas por esses dois mestres, um já falecido. O Oliveira de Panelas ainda está vivo. O Otacílio me permitiu musicar: [recita] "Mulher Nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor". Depois Beatles, Stones, Dylan, Santana. Tudo isso absorvi profundamente. Não só de botar um disco e ficar ouvindo. Eu procurava tirar a harmonia das canções, queria entender a arquitetura musical. E olhe só: estou falando do privilégio da minha geração que era o de comprar esses discos quando eles estavam saindo. No tempo real desses discos. Este é o caldeirão que estou mexendo até hoje. Quando lanço, vira Zé Ramalho. Não faço cópia de nada.
E a canção "Mistérios da Meia-Noite"?
Zé Ramalho - Novela Roque Santeiro, 1985. Eu tinha me separado do segundo casamento. Morava em Fortaleza, na época, e voltei pro Rio de Janeiro. Me instalo num apartamento no Leblon e recebo um telefonema do Mariozinho Rocha falando dessa novela, que precisava de uma música pra um personagem do Professor Astromar. À meia-noite ele virava lobisomem. Essas crenças populares. Desliguei o telefone, fui pro quarto e fiz a música em meia hora. Liguei de volta: "Tá pronto”. E ele: "Ficou maluco?" E eu: "Escuta aí pra você ver". Daí ele: "Tá ducaralho!" Tem barbado que, até hoje, vem me dizer que quando era menino ouvia a introdução e saía da sala correndo porque ficava com medo. O videoclipe foi ao ar pelo Fantástico. Eu apareço tocando. E tem Luiza Brunet também, esperando. Era um luxo, extremamente sofisticado pra época, o cenário feito no Teatro Fênix. Adorei fazer aquilo.
Você cursou dois anos de medicina em João Pessoa. Se alguém tiver um troço na sua frente, ainda sabe o que tem de fazer?
Zé Ramalho - Até um determinado limite. Dr. Ramalho! [risos]. No 2º ano de medicina minha cabeça latejava de música. Eu tinha que tomar uma atitude. Não suportava mais viver daquele jeito. Fui pra casa e comuniquei: "Vou abandonar a faculdade". Tem que ter muita coragem. Foi a decisão de minha vida."Estou abandonando a faculdade, vou me dedicar só à minha carreira de músico e compositor." Foi um escândalo, mas foi a decisão certa. Eu iria passar mais três anos da faculdade aprendendo cada vez menos e me frustrando cada vez mais. No fim, minha família me deu a passagem pro Rio. Só de ida. "É só o que preciso", disse a eles. Meu avô quase morreu, o velho Avôhai. Quase teve um ataque quando viu que eu estava decidido. Algumas horas na vida você tem que decidir o que quer fazer.
Você enfrentou problemas com a liberação das músicas de Raul Seixas e Paulo Coelho para o disco Zé Ramalho Canta Raul. Como foi com o Dylan?
Zé Ramalho - No disco sobre o Raul houve aquela polêmica toda: o escritor não autorizou que eu gravasse as músicas que ele também assinava. Não sei se foi algum tipo de inveja – inveja de magos, de entidades... Seja como for, a atitude antipática, com certeza, não foi a minha. De qualquer maneira, tive que recomeçar outro álbum. O disco já estava gravado quando houve essa decisão final, irrevogável, dele. Mas eu jamais recuaria. A gravadora quis cancelar o projeto. Eu disse: "Que nada! Vamos fazer o seguinte: 'Vou fazer um disco só de músicas assinadas pelo Raul'". Peguei a discografia inteira dele e escolhi.
É irônico que você não tenha conseguido a autorização do Paulo Coelho, mas tenha conseguido a do Bob Dylan.
Zé Ramalho - Pois é. Foi uma surpresa. O Aluizio Reis, da minha equipe, levou esse pacote de versões, pessoalmente, pra explicar à equipe do Dylan quem era Jackson do Pandeiro, o que é candomblé, o que são "balas perdidas". Tem várias situações brasileiras encaixadas nas versões. Levaram pra Dylan, que lê tudinho e dá uma aprovada geral – sem tirar nada. Pelo contrário, aprovado com louvor.
Como escolher as canções de Dylan, entre as milhares que ele gravou?
Zé Ramalho - Você olha pra cima, fecha os olhos e a lembrança do que gosta de Dylan vem à cabeça. É preciso se apoderar de um canal de sentimento pra colocar num trabalho desses que, certamente, vai bater em vários lugares. Pelo mundo todo, porque os fãs de Dylan vão querer ouvir. Eles ouvem tudo.
Você conheceu a Joan Baez. Como foi?
Zé Ramalho - Com ela, tive um encontro polêmico em 1980, em São Paulo, quando ela estava visitando o Brasil. Eu estava lançando meu disco, A Terceira Lâmina, e a gravadora propôs: "A Baez está em São Paulo. Está fazendo um documentário sobre direitos humanos na América Latina. Você quer fazer uma apresentação do seu show com ela?" Fui pessoalmente ao hotel onde ela estava. Muito simples, ela me recebeu em seu apartamento. Ensaiei eu e essa mulher, sozinho, com um violão. A gente ensaiou a música de Geraldo Vandré, "Vou Caminhando", em português. Mas a censura não liberou. Veio um documento da Polícia Federal impedindo a apresentação dela nesse show: "Proibida de cantar". Isso eu tenho guardado no meu arquivo. Ela estava aqui pra se encontrar com Lula, sindicalista. O Senador Eduardo Suplicy, ainda vereador, foi quem a levou. Com Baez tive a sensação de estar muito próximo ao universo de Dylan. Tenho no meu arquivo uma gravação, eu cantando com ela essa música do Vandré e "Imagine", no quarto do Hotel. Ela foi impedida de cantar, mas subiu ao palco e disse apenas: "Não posso cantar...". A platéia delirando. Ela entrou sem me avisar. Entrou em "Admirável Gado Novo", dançando, e disse: "Não posso cantar. Estoy proibida". Depois que acabou o show filmamos, em seu camarim, essas duas canções. Depois mandamos uma cópia do VHS pra ela. Já faz quase 30 anos. Se eu botar esse vídeo no YouTube pega fogo. Está guardado. Isso não morreu.
Como foi sua experiência com a cocaína?
Zé Ramalho - Como experiência, durou 12 anos de minha vida, até esgotar. Houve um período, no início, que a cocaína me despertou muita criatividade. Por exemplo: "Frevo Mulher", hit há 30 anos. No carnaval de Salvador, não existe uma banda que não toque. Essa música foi feita numa madrugada, num quarto de hotel. De repente dá aquela chispa. Eu estava tão agoniado, a cabeça latejando de tanto pó que tinha entrado, e fui tomar um banho para relaxar. Quando saí do banho, a música saiu junto. E fiz rapidamente. Foi feita para a Amelinha gravar. Eu estava tão excitado, a energia era tanta que eu poderia fazer muito mais músicas nessa madrugada. Mas tem o velho problema: você bebe e fuma muito. No meu caso, sempre teve mais música envolvida. Adorava ficar cantando, tinha essas viradas violentas, ficava a noite inteira e emendava no dia seguinte. Agora, quando você começa a ficar embotado, lhe tira o brilho. Celso Blues Boy, que é a sublimação blues no Brasil, tem uma música que diz: "Cantarei na escuridão / Nessa treva sem fim / As coisas são assim / Pra que se lamentar / Se dentro de nós sempre brilhará". Eu escutava isso e achava uma coisa tão bem-feita. Me identificava. Nessa época, o Rio vivia um inferno de cocaína no ar. A Colômbia colocando pó de grande qualidade a preço de banana, o Cartel de Medellín investindo pesado pra todo mundo gostar e querer mais.
Você se sentia viciado?
Zé Ramalho - Não, me sentia preso. As últimas sensações que eu tive com cocaína foram muito ruins, organicamente falando. O day after era uma coisa cada vez pior. Ao ponto de, na última vez que tentei pegar num canudo, veio um pensamento: "Olhe, cara, você vai começar de novo. Você sabe bem o que sentirá amanhã!" Quando lembrei disso, joguei o canudo fora e nem comecei. Era tão ruim a sensação que deu medo. Depois tive que "desempoeirar" minha carreira. Não havia ninguém sentado no meu lugar. Ele permanecia ali. Empoeirado, mas ainda ali.
Por que você não quer mais falar sobre o álbum Paêbirú?
Zé Ramalho - As coisas são muito simples. Não vou citar aqui razões pessoais, particulares. A minha recusa em falar é assim: quando Paêbirú foi lançado, há mais de 30 anos, na época em que saiu, apesar da cheia que aconteceu, ninguém falou nada sobre ele. Alguns álbuns foram mandados aqui pro Rio de Janeiro. Por que tantos anos depois? Deviam ter falado sobre isso naquela época! Eu acho apenas incrível que se vislumbre tudo isso em torno de um trabalho que já foi feito há muito tempo.
Qual sua relação hoje com a Pedra do Ingá?
Zé Ramalho - De vez em quando faço visitas à Pedra do Ingá. É uma relação curiosa porque ela me dá projeções de como imagino certas coisas: a criação do mundo, os primeiros habitantes da terra, as criaturas do espaço que vieram aqui. Eu sou agnóstico, como John Lennon: imagino o mundo sem religiões. Aceito a explicação, que cada vez é mais permanente, que foram criaturas do espaço que vêm nos visitar. Faço parte dessa legião de ufólogos que têm grande esperança numa revelação. A experiência de "Avôhai", que contei sobre a viagem de cogumelos, "as cortinas", tem uma presença alienígena. A visão que tive das cortinas, na verdade, foi uma nave gigantesca que estava em cima de mim, enorme. Por entre as nuvens dava pra ver a sombra da nave – imensa, gigantesca. Havia uma presença alienígena, com certeza, naquele momento. E, quando olhei pro chão, estava repleto de olhos de gente a me observar. Isso aconteceu perto de Recife, num pasto chamado Rio Botafogo, uma fazenda enorme onde os malucos descobriram as amanitas que nasciam por lá. Essa experiência lisérgicafoi definitiva pra toda minha vida.
Camuflado numa alameda do bairro do Flamengo, o ex-cadete do exército José Ramalho Neto encravou em solo fluminense um QG de raízes paraibanas: a produtora Jerimum. As simbologias agrestes são marcas constantes e profundas na obra de Zé Ramalho.
Sob a umidade tropical do Rio de Janeiro, a aridez do sertão ainda é metáfora-chave para ingressar nos numerosos códigos – místicos, psicodélicos, ufológicos e de velhos ícones do rock'n'roll – cifrados em suas composições.
Ele conta que "desceu ao mundo" em março de 1949, em Brejo do Cruz, nos confins da Paraíba. Depois da morte do pai, poeta, afogado num açude do sertão, foi criado pelo avô para ser médico.O avô-pai, após uma viagem lisérgica do neto envolvendo cogumelos, extraterrestres e mensagens telepáticas, virou a canção-hino "Avôhai".
Numa conversa animada que levou a tarde inteira de uma segunda-feira, Zé Ramalho falou sobre o disco novo, Canta Bob Dylan – Tá Tudo Mudando e a facilidade que encontrou para liberar canções do velho Zimmermann – o exato oposto ocorreu com as canções assinadas pela dupla Raul Seixas e Paulo Coelho no projeto Zé Ramalho Canta Raul Seixas.
O paraibano abriu suas vivências químicas, sem pudores e em dois capítulos: primeiro, com os cogumelos alucinógenos; depois, com a cocaína. E explicou sua negação para se manifestar sobre o álbum que fez com o Lula Côrtes, Paêbirú: "Por que tantos anos depois? Deviam ter falado sobre isso há 30 anos!"
Onde sua história começa?
Zé Ramalho - Apesar de eu ter nascido em Brejo do Cruz, e não "da" Cruz, como muita gente confunde, por causa da música do Chico Buarque, depois de dois meses meu avô conduziu a família pra Campina Grande, onde ficamos até 1960. É lá que, pela primeira vez, eu escuto rádio, com 5 anos de idade. As rádios AM eram a única novidade, as novelas do rádio e os programas de auditório ao vivo. Na Rádio Borborema vi show de Marinês e sua Gente, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Lembro que tivemos que ir pra João Pessoa, porque meu avô sofria de pressão alta e Campina Grande fica em cima da Serra da Borborema. Aos 13 anos, quando o intelecto foi se abrindo, a música ganhou mais força. A Jovem Guarda começou a aparecer para mim. Especialmente, Roberto Carlos e Renato & Seus Blue Caps. Eu estudava no colégio Pio X, dos Irmãos Maristas, em João Pessoa. E, nesse colégio, de educação extremamente fina, nos jograis que a gente tinha que fazer uma vez por mês, um dos trabalhos era organizar um grupo musical em cada classe. Depois fazer uma espécie de concurso entre os alunos. Eu já sabia dar três acordes no violão. Juntaram outros dois colegas. Fizemos uma apresentação que fez muito sucesso. Aquilo criou uma chispa. Acendeu em mim a chama dos grupos de baile, pode-se dizer. Dali, logo depois passei a procurar os músicos que tocavam nos bailes pela cidade de João Pessoa. Eram muitos.
Como era esse grupo de baile?
Zé Ramalho - Fundamos uma banda chamada Elis & os Demônios, com mais três colegas da escola. Começamos a ser contratados para tocar em bailes, para as pessoas dançarem. Bailes de quatro horas. Eu tocava guitarra e, aos poucos, fui me incumbindo dos solos. Eu copiava. Isso me trouxe uma riqueza muito grande. Porque você toca de tudo. A formação mais famosa que integrei tinha um vocal fenomenal: Os Quatro Loucos, que, antes, se chamava Four Crazy's, numa tradução errada – o certo seria Crazy Four. A gente tocava músicas em inglês, então eu levava as letras pro professor traduzir, pra entendermos o que estávamos cantando. Foram experiências importantes pra me dar noção sobre comportamento de palco, remuneração e profissionalismo. Comecei a pensar nessas coisas.
Você era muito jovem?
Zé Ramalho - Muito. Eu tinha 16, 17 anos. Agora, encostei nos 60. Estou em "cinco ponto nove", companheiro. São 42 anos de carreira. Mas as coisas ainda estão muito frescas na minha cabeça. Os grupos de baile tocavam, basicamente, Jovem Guarda, e quase nada de forró, quase nada de samba. A gente tocava guitarra pra conquistar as meninas e ter uma chance de colar nelas. Até que, com 18 anos, chegou a hora de servir o quartel. Pior que eu tinha fama de cabeludo por causa dos grupos.
Fama de cabeludo?
Zé Ramalho - Eu era muito cabeludo! [risos] E era xingado: "Cabeludo! Viado! Vá tomar banho! Vá cortar o cabelo!" Eu ouvia isso o tempo todo. Como me propus a tudo isso, no entanto, aguentei no osso. Hoje em dia quem liga pra isso? Quando o barbeiro do exército me viu, disse: "Vou logo cravar esse cara". Ele me pegou mesmo. Não consegui me livrar. Meus estudos passaram pra parte da noite e, nos fins de semana, eu botava uma peruca pra tocar. Foi nessa fase "militar" que comecei a fazer música.
O que se passava em sua cabeça na época?
Zé Ramalho - Final dos anos 60, contracultura explodindo no mundo: eu estava atento a tudo isso. Woodstock! Quando saí do cinema, depois de ter visto esse filme, minha vida mudou. Vi in loco no Brasil. O cinema lançando pela primeira vez, em 1970, Rio de Janeiro. Depois, vi em Recife, na Paraíba. Em diversos lugares. Woodstock foi importante pra eu ver aquela atitude, o comportamento, a cultura hippie: sexo, drogas, nego fumando sem haver nenhum tipo de confusão. Eu achava aquilo uma espécie de "utopia mágica" – música que dava uma sensação de você estar vivendo num "planeta amor". Em Recife encontrei novo horizonte. Comecei a frequentar shows e, num desses, conheci o grande guitarrista Paulo Rafael, que ainda hoje toca com Alceu Valença. Na época tocava na banda Phetus.
Como você conheceu Alceu?
Zé Ramalho - Ele estava fazendo o filme A Noite do Espantalho. Eu namorava uma menina que morava em Recife, na praia de Boa Viagem. Glauce, o nome dela. Ela me disse: "Se você quiser conhecer um cara legal, Alceu Valença é o nome dele. Ele namora minha irmã. Alceu tem umas músicas ótimas". Uma tarde, fui à casa dela e Alceu estava lá. Nos demos bem de cara. A empatia foi imediata. Foi daí que também conheci Geraldo Azevedo, que tocava com ele. Isso era 1974. Em 1975, chega a história do Festival Abertura da Rede Globo, em São Paulo, produção do Augusto César Vanucci. O Alceu reuniu os melhores músicos que tocavam em Recife, na época, caras da banda Ave Sangria. Um bandão.
Era a abertura política?
Zé Ramalho - O Festival Abertura já era uma sugestão do General Figueiredo pra abertura política que se prenunciava. Os artistas do festival estavam sendo lançados pela Som Livre. Quase todo o cast do festival, na verdade, era da gravadora: Alceu, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Hermeto Pascoal. Um festival de luxo. Iniciante, me encantei vendo aquele povo todo e comecei a ficar por aqui, no Rio, depois que passou a coisa toda com o Alceu. Como eu ainda não tinha as músicas que estreei no meu primeiro disco, fiz algumas tentativas pelo Sul que não deram em nada. O repertório era basicamente de músicas de rock, mas não chamava público. Sem ter disco gravado, uma carreira, na vida artística você é considerado aspirante. Contudo, tive de voltar ao Nordeste e preparar-me mais. Nessa volta, fiz um trabalho com a cineasta Tânia Quaresma, importantíssimo para encorpar de vez meus conhecimentos. Ela filmou Nordeste, Cordel, Repente e Canção e me convidou pra participar do projeto. Eu conhecia o universo dos cantadores e violeiros, mas ainda não tinha me aprofundado. Tânia me contratou para servir como espécie de rastreador de violeiros, nas locações das filmagens.
Você atuaria no filme?
Zé Ramalho - Caso necessário, eu completaria algumas passagens tocando viola. Eu já era muito elogiado pela minha técnica. Nos shows do Alceu eu tocava viola de 12 e de dez [cordas]. A experiência do filme foi importante demais, pois veio uma camada de cultura popular, legítima, invadindo meu corpo e cérebro inteiros. Foram 17 dias de viagem a bordo de uma Kombi: Ceará, Pernambuco, Paraíba e uma parte de Sergipe. Fomos às varandas das casas dos violeiros, onde tinha as pelejas, nas oficinas dos cordelistas. Eu estava absorvendo essa cultura de uma maneira que nunca eu tinha pensado ser possível.
O que aprendeu?
Zé Ramalho - Entendi algo muito preciso: as leis da cantoria, principalmente, a fórmula de se fazer os versos. Uma forma que você tem que entender. Não adianta decorar. Quando volto para a Paraíba, também faço minhas primeiras experiências com outra turma: a dos cogumelos alucinógenos. Preciso contar essa história pra explicar o link que, depois, acontece na minha vida. Pra começar: acho que nem deveria chamar cogumelo de droga. Não há o contato da mão humana. É tudo direto. Quando descobriram que tinha isso nos pastos do Nordeste houve uma espécie de busca por parte de minha geração. Tem um tipo de cogumelo específico que não vai intoxicá-lo. Nós, porém, éramos loco ma non troppo – antes, realizamos estudos com fotografias dos cogumelos para saber quais eram comestíveis e quais eram venenosos. No meu caso, foi uma coisa que me deu uma iluminação muito grande. Foi quando recebi a mensagem do "Avôhai".
Como foi isso?
Zé Ramalho - Eu descrevo na música uma parte dessa experiência: "Amanita matutina / E que transparente cortina ao meu redor" [canta]. Amanita é nome científico dos cogumelos. Quando senti isso, eu estava numa fazenda linda, pasto maravilhoso. Sensação de liberdade – "Transparente cortina ao meu redor" [recita]. Era como se fosse a aurora boreal. Seu olho fica muito preciso. Todas essas coisas estão muito presentes na música: o encantamento, a espiritualidade que as pessoas sentem de imediato. "Avôhai" é minha única música que posso dizer que teve uma espécie de mediunidade envolvida. Porque eu não pensei nela, ela me foi soprada: "Avôhai... Avôhai..." [sussurra]. E a forma como a letra veio, veloz. Depois, voltando pra casa, nessas ondas de psicodelia, num retrato da parede tinha a imagem de uma pedra de turmalina. Saiu a letra todinha: "O Velho cruza a soleira" – "Avôhai, avô e pai". Escrevendo os acordes sem parar, eu sabia pra onde ir, cara. Foi de uma rapidez impressionante e nunca mais aconteceu algo parecido em minha vida. O que é "Avôhai"? Por toda a minha vida, eu tenho que responder essa pergunta quase semanalmente. Tenho o maior prazer em falar sobre isso. Nunca me cansarei.
Você acha que a lisergia desabrochou tudo isso?
Zé Ramalho - Essas experiências eu chamo de "A Semana da Iluminação", os dias que sucederam "Avôhai". Eu morava em João Pessoa numa casa chamada Vila do Sossego, tinha uma plaquinha na porta. Nos dias que se seguiram a essa viagem aconteceram todas essas músicas: "Chão de Giz", "Vila do Sossego", "Jardins das Acácias". Meu primeiro disco é muito espiritualista. E muito lisérgico. Não há conotação política nas músicas. Separei as que tinham e deixei de lado pra preservar esse lado viajante e, principalmente, meio regional. É um disco sem bateria. Tem a participação do [tecladista] inglês Patrick Moraz, do Yes. Só "Avôhai" pra conseguir uma coisa dessas.
Como foram as gravações de "Avôhai"?
Zé Ramalho - Foram de uma precisão incrível. Moraz estava no Brasil gravando o disco The Story of Eye com o Carlos Alberto Sion. Calhou que o destino configurou Sion pra ser produtor do meu primeiro álbum. Chegou na hora de gravar algumas partes instrumentais e perguntei quem iria fazer. E ele: "Patrick Moraz. Vamos mandar uma fitinha sua pra ele". Enviamos uma fita cassete pra ele ouvir. Na época, ele estava substituindo Rick Wakeman no Yes. Quando escutou a música, bateu algo nele. E eu fiquei bobo na hora em que entramos no estúdio. Ele me pediu pra passar alguns acordes a fim de completar o arranjo. Eu, ingênuo, ao lado daquele cara, side by side: "Rapaz, como é que pode?!" Patrick observando os movimentos de minha mão. Sacando os acordes. Chegou o Ivinho e fez aquela viola ultrarrápida. Até o final de 1977, quando eu registrei meu primeiro álbum, foi uma sobrevivência séria que passei no Rio. Eu não tinha dinheiro. Não tinha onde ficar.
E você foi se virar como michê?
Zé Ramalho - Não cheguei a ser michê, mas tinha umas meninas que dormiam comigo. A canção "Garoto de Aluguel" é autobiográfica por causa disso. Essas meninas eram estudantes que eu conhecia do tempo em que tocava com o Alceu. Eu era rato de show aqui no Rio de Janeiro. Elas gostavam dos cantores nordestinos, do jeitão da gente, meio desengonçados. Era mais a inspiração da música. Elas viam a situação em que a gente estava. Eu passei fome. Várias vezes dormi em frente ao Copacabana Palace. Mas teve uma camarada lá no Bar da Glória que, durante uns quatro meses, me deixou dormir num quarto de empregada, aquele cubículo miudinho. Era o tempo dos militares, em que assassinos, estupradores e bandidos não existiam. Existiam hippies e malucos, mas eles diziam: "Esse pessoal deixa em paz porque não é subversivo". "Nordestino sofredor" – chamavam a gente assim. Depois de servir o quartel, cheguei ao Rio preparado. As coisas que eu passei no quartel não foram moles. Antes de partir fui pra frente do espelho e disse: "Olha, cara, se você acha que é tão espertinho, vá pro Rio de Janeiro, sozinho, sem depender de ninguém". Fui com isso na cabeça. Sabia, no entanto, que com o pacote de canções alguma coisa iria acontecer. Disso eu tinha plena certeza, senão não viria.
Você já tinha essas músicas no bolso?
Zé Ramalho - O Augusto Cesar Vanucci fez muito esforço pra me colocar na Som Livre, só que não houve como. Percorri um longo caminho. O Durval Ferreira, após ouvir a letra de "Avôhai", fez uma cara de quem não gostou e a atirou no chão. Ele dizia que uma letra daquelas nunca iria funcionar. Talvez, apenas, se eu a mudasse. "Se você mudar para uma coisa mais comercial..." Sempre eles faziam uma proposta. Eu nunca aceitei. Passei pela Odeon, Fonogram, depois Polygram. Até que cheguei na CBS. Era final de 1977. Raimundo Fagner tinha um disco que havia saído pela gravadora e começava a fazer sucesso para um artista nordestino. Na CBS só existia o Roberto Carlos que vendia. Notaram que havia uma coisa expressiva: os nordestinos vendiam discos. Foi o que aconteceu. Alceu já estava despontando.
Vanusa gravou "Avôhai" antes de você, não é?
Zé Ramalho - Gravou. Não chegou a estourar, mas eu participo da gravação, por conta do Vanucci. Ele chegou pra mim: "Tem uma pessoa que eu gostaria que gravasse uma canção sua. Você autoriza? Quer participar?" Eu: "Claro que quero". Os arranjos de viola sou eu que faço. O fato é que a minha gravação teve uma magia pessoal que a Vanusa não tinha como passar, afinal era uma experiência muito pessoal. Mais a participação de músicos como Dominguinhos passando pelo estúdio, com sua sanfona, foi um feitiço. Altamiro Carrilho, sumidade de flauta da época de ouro do choro. E também Paulo Moura. Havia uma configuração de músicos. Tudo acontecia de maneira muito espontânea. Pela primeira vez, tive a chance de ficar no Rio de Janeiro, confortavelmente, sem precisar dormir ao relento. Me colocaram num hotel. Ô, como adorei! Foi maravilhoso poder comer e dormir.
Sua geração revelou um Nordeste musical moderno ao Brasil.
Zé Ramalho - Certamente, sem aquela coisa tradicionalista-purista do Nordeste. Essa reciclagem da música nordestina aconteceu por aquela geração – ou seja, o forró elétrico, como chamavam, os "violétricos", mistura dos violeiros com o rock de guitarras. As pessoas estavam acostumadas com a música nordestina por causa da dimensão muito forte que Gonzaga, Jackson, Martinez e Genival Lacerda cravaram. Historicamente, algo bem pouco referendado. Verdade. Nunca tive vergonha de dizer minhas influências, meus mestres. Quem são meus mestres? Começando pela primeira camada que veio: aqueles astros de Woodstock, Jovem Guarda, Renato & Seus Blue Caps, Roberto e Erasmo. Aí entra a descoberta do Nordeste: Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, os violeiros Otacílio Batista e Oliveira de Panelas, que foram mestres profundos que tiveram paciência e uma generosidade muito grande pra me passar as leis e obrigações da cantoria. Isto é, onde a rima entra. Doze modalidades da cantoria de viola que me foram ministradas por esses dois mestres, um já falecido. O Oliveira de Panelas ainda está vivo. O Otacílio me permitiu musicar: [recita] "Mulher Nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor". Depois Beatles, Stones, Dylan, Santana. Tudo isso absorvi profundamente. Não só de botar um disco e ficar ouvindo. Eu procurava tirar a harmonia das canções, queria entender a arquitetura musical. E olhe só: estou falando do privilégio da minha geração que era o de comprar esses discos quando eles estavam saindo. No tempo real desses discos. Este é o caldeirão que estou mexendo até hoje. Quando lanço, vira Zé Ramalho. Não faço cópia de nada.
E a canção "Mistérios da Meia-Noite"?
Zé Ramalho - Novela Roque Santeiro, 1985. Eu tinha me separado do segundo casamento. Morava em Fortaleza, na época, e voltei pro Rio de Janeiro. Me instalo num apartamento no Leblon e recebo um telefonema do Mariozinho Rocha falando dessa novela, que precisava de uma música pra um personagem do Professor Astromar. À meia-noite ele virava lobisomem. Essas crenças populares. Desliguei o telefone, fui pro quarto e fiz a música em meia hora. Liguei de volta: "Tá pronto”. E ele: "Ficou maluco?" E eu: "Escuta aí pra você ver". Daí ele: "Tá ducaralho!" Tem barbado que, até hoje, vem me dizer que quando era menino ouvia a introdução e saía da sala correndo porque ficava com medo. O videoclipe foi ao ar pelo Fantástico. Eu apareço tocando. E tem Luiza Brunet também, esperando. Era um luxo, extremamente sofisticado pra época, o cenário feito no Teatro Fênix. Adorei fazer aquilo.
Você cursou dois anos de medicina em João Pessoa. Se alguém tiver um troço na sua frente, ainda sabe o que tem de fazer?
Zé Ramalho - Até um determinado limite. Dr. Ramalho! [risos]. No 2º ano de medicina minha cabeça latejava de música. Eu tinha que tomar uma atitude. Não suportava mais viver daquele jeito. Fui pra casa e comuniquei: "Vou abandonar a faculdade". Tem que ter muita coragem. Foi a decisão de minha vida."Estou abandonando a faculdade, vou me dedicar só à minha carreira de músico e compositor." Foi um escândalo, mas foi a decisão certa. Eu iria passar mais três anos da faculdade aprendendo cada vez menos e me frustrando cada vez mais. No fim, minha família me deu a passagem pro Rio. Só de ida. "É só o que preciso", disse a eles. Meu avô quase morreu, o velho Avôhai. Quase teve um ataque quando viu que eu estava decidido. Algumas horas na vida você tem que decidir o que quer fazer.
Você enfrentou problemas com a liberação das músicas de Raul Seixas e Paulo Coelho para o disco Zé Ramalho Canta Raul. Como foi com o Dylan?
Zé Ramalho - No disco sobre o Raul houve aquela polêmica toda: o escritor não autorizou que eu gravasse as músicas que ele também assinava. Não sei se foi algum tipo de inveja – inveja de magos, de entidades... Seja como for, a atitude antipática, com certeza, não foi a minha. De qualquer maneira, tive que recomeçar outro álbum. O disco já estava gravado quando houve essa decisão final, irrevogável, dele. Mas eu jamais recuaria. A gravadora quis cancelar o projeto. Eu disse: "Que nada! Vamos fazer o seguinte: 'Vou fazer um disco só de músicas assinadas pelo Raul'". Peguei a discografia inteira dele e escolhi.
É irônico que você não tenha conseguido a autorização do Paulo Coelho, mas tenha conseguido a do Bob Dylan.
Zé Ramalho - Pois é. Foi uma surpresa. O Aluizio Reis, da minha equipe, levou esse pacote de versões, pessoalmente, pra explicar à equipe do Dylan quem era Jackson do Pandeiro, o que é candomblé, o que são "balas perdidas". Tem várias situações brasileiras encaixadas nas versões. Levaram pra Dylan, que lê tudinho e dá uma aprovada geral – sem tirar nada. Pelo contrário, aprovado com louvor.
Como escolher as canções de Dylan, entre as milhares que ele gravou?
Zé Ramalho - Você olha pra cima, fecha os olhos e a lembrança do que gosta de Dylan vem à cabeça. É preciso se apoderar de um canal de sentimento pra colocar num trabalho desses que, certamente, vai bater em vários lugares. Pelo mundo todo, porque os fãs de Dylan vão querer ouvir. Eles ouvem tudo.
Você conheceu a Joan Baez. Como foi?
Zé Ramalho - Com ela, tive um encontro polêmico em 1980, em São Paulo, quando ela estava visitando o Brasil. Eu estava lançando meu disco, A Terceira Lâmina, e a gravadora propôs: "A Baez está em São Paulo. Está fazendo um documentário sobre direitos humanos na América Latina. Você quer fazer uma apresentação do seu show com ela?" Fui pessoalmente ao hotel onde ela estava. Muito simples, ela me recebeu em seu apartamento. Ensaiei eu e essa mulher, sozinho, com um violão. A gente ensaiou a música de Geraldo Vandré, "Vou Caminhando", em português. Mas a censura não liberou. Veio um documento da Polícia Federal impedindo a apresentação dela nesse show: "Proibida de cantar". Isso eu tenho guardado no meu arquivo. Ela estava aqui pra se encontrar com Lula, sindicalista. O Senador Eduardo Suplicy, ainda vereador, foi quem a levou. Com Baez tive a sensação de estar muito próximo ao universo de Dylan. Tenho no meu arquivo uma gravação, eu cantando com ela essa música do Vandré e "Imagine", no quarto do Hotel. Ela foi impedida de cantar, mas subiu ao palco e disse apenas: "Não posso cantar...". A platéia delirando. Ela entrou sem me avisar. Entrou em "Admirável Gado Novo", dançando, e disse: "Não posso cantar. Estoy proibida". Depois que acabou o show filmamos, em seu camarim, essas duas canções. Depois mandamos uma cópia do VHS pra ela. Já faz quase 30 anos. Se eu botar esse vídeo no YouTube pega fogo. Está guardado. Isso não morreu.
Como foi sua experiência com a cocaína?
Zé Ramalho - Como experiência, durou 12 anos de minha vida, até esgotar. Houve um período, no início, que a cocaína me despertou muita criatividade. Por exemplo: "Frevo Mulher", hit há 30 anos. No carnaval de Salvador, não existe uma banda que não toque. Essa música foi feita numa madrugada, num quarto de hotel. De repente dá aquela chispa. Eu estava tão agoniado, a cabeça latejando de tanto pó que tinha entrado, e fui tomar um banho para relaxar. Quando saí do banho, a música saiu junto. E fiz rapidamente. Foi feita para a Amelinha gravar. Eu estava tão excitado, a energia era tanta que eu poderia fazer muito mais músicas nessa madrugada. Mas tem o velho problema: você bebe e fuma muito. No meu caso, sempre teve mais música envolvida. Adorava ficar cantando, tinha essas viradas violentas, ficava a noite inteira e emendava no dia seguinte. Agora, quando você começa a ficar embotado, lhe tira o brilho. Celso Blues Boy, que é a sublimação blues no Brasil, tem uma música que diz: "Cantarei na escuridão / Nessa treva sem fim / As coisas são assim / Pra que se lamentar / Se dentro de nós sempre brilhará". Eu escutava isso e achava uma coisa tão bem-feita. Me identificava. Nessa época, o Rio vivia um inferno de cocaína no ar. A Colômbia colocando pó de grande qualidade a preço de banana, o Cartel de Medellín investindo pesado pra todo mundo gostar e querer mais.
Você se sentia viciado?
Zé Ramalho - Não, me sentia preso. As últimas sensações que eu tive com cocaína foram muito ruins, organicamente falando. O day after era uma coisa cada vez pior. Ao ponto de, na última vez que tentei pegar num canudo, veio um pensamento: "Olhe, cara, você vai começar de novo. Você sabe bem o que sentirá amanhã!" Quando lembrei disso, joguei o canudo fora e nem comecei. Era tão ruim a sensação que deu medo. Depois tive que "desempoeirar" minha carreira. Não havia ninguém sentado no meu lugar. Ele permanecia ali. Empoeirado, mas ainda ali.
Por que você não quer mais falar sobre o álbum Paêbirú?
Zé Ramalho - As coisas são muito simples. Não vou citar aqui razões pessoais, particulares. A minha recusa em falar é assim: quando Paêbirú foi lançado, há mais de 30 anos, na época em que saiu, apesar da cheia que aconteceu, ninguém falou nada sobre ele. Alguns álbuns foram mandados aqui pro Rio de Janeiro. Por que tantos anos depois? Deviam ter falado sobre isso naquela época! Eu acho apenas incrível que se vislumbre tudo isso em torno de um trabalho que já foi feito há muito tempo.
Qual sua relação hoje com a Pedra do Ingá?
Zé Ramalho - De vez em quando faço visitas à Pedra do Ingá. É uma relação curiosa porque ela me dá projeções de como imagino certas coisas: a criação do mundo, os primeiros habitantes da terra, as criaturas do espaço que vieram aqui. Eu sou agnóstico, como John Lennon: imagino o mundo sem religiões. Aceito a explicação, que cada vez é mais permanente, que foram criaturas do espaço que vêm nos visitar. Faço parte dessa legião de ufólogos que têm grande esperança numa revelação. A experiência de "Avôhai", que contei sobre a viagem de cogumelos, "as cortinas", tem uma presença alienígena. A visão que tive das cortinas, na verdade, foi uma nave gigantesca que estava em cima de mim, enorme. Por entre as nuvens dava pra ver a sombra da nave – imensa, gigantesca. Havia uma presença alienígena, com certeza, naquele momento. E, quando olhei pro chão, estava repleto de olhos de gente a me observar. Isso aconteceu perto de Recife, num pasto chamado Rio Botafogo, uma fazenda enorme onde os malucos descobriram as amanitas que nasciam por lá. Essa experiência lisérgicafoi definitiva pra toda minha vida.
sábado, 2 de março de 2013
sexta-feira, 1 de março de 2013
[...] BIKINI GIRL WITH A MACHINE GUN
:: psy :: Júlio Freitas ::
Estava tudo muito bem
até que ela puxou da gaveta
uma pistola automática
Eu a havia conhecido
no Circus,
bar frequentado
por toda espécie de junkies,
marginais e psicopatas
injetava heroína
numa mesa cheia de garrafas
sob o vermelho do neon
ofereceu-me um pouco
e lá estava eu
em seu apartamento
Quer minha grana, perguntei,
não, ela disse, só quero te ver morrer.
Oh merda, pensei, essa com certeza
é a mulher mais maluca que já
encontrei
Tudo tem seu limite
e louco de amilas que eu estava
cheguei bem perto
mandei-a que atirasse
no meio da minha testa
a vadia titubeou
desferi-lhe um soco no rosto
um disparo se fez
acertando
uma imitação vagabunda de Monet
apagou
Achei melhor ir embora
vesti minhas roupas
peguei sua pistola
Sirenes tocavam
e no rádio
uma canção insuportável,
alguém tocando trombeta
cherei um pouco de éter
cuspí-lhe a buceta.
Estava tudo muito bem
até que ela puxou da gaveta
uma pistola automática
Eu a havia conhecido
no Circus,
bar frequentado
por toda espécie de junkies,
marginais e psicopatas
injetava heroína
numa mesa cheia de garrafas
sob o vermelho do neon
ofereceu-me um pouco
e lá estava eu
em seu apartamento
Quer minha grana, perguntei,
não, ela disse, só quero te ver morrer.
Oh merda, pensei, essa com certeza
é a mulher mais maluca que já
encontrei
Tudo tem seu limite
e louco de amilas que eu estava
cheguei bem perto
mandei-a que atirasse
no meio da minha testa
a vadia titubeou
desferi-lhe um soco no rosto
um disparo se fez
acertando
uma imitação vagabunda de Monet
apagou
Achei melhor ir embora
vesti minhas roupas
peguei sua pistola
Sirenes tocavam
e no rádio
uma canção insuportável,
alguém tocando trombeta
cherei um pouco de éter
cuspí-lhe a buceta.
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