O kodu é a base agrícola da auto-suficiência e independência do bolo. O tipo de agricultura, a escolha do plantio e dos métodos são influenciados pela bagagem cultural de cada bolo. Um Vege-bolo se especializaria em vegetais, frutas, etc., em vez de criar gado. Um Islã-bolo nunca lidaria com porcos. Um Franco-bolo precisaria de um grande galinheiro, ervas frescas e muito queijo. Um Hash-bolo plantaria cannabis, um Bebum-bolo, malte e lúpulo (com uma destilaria no celeiro), um Ítalo-bolo precisaria de tomates, alho e orégano, um Macrô-bolo precisaria de arroz integral, tofu, misso, shoyu e seitan. Certos bolos dependeriam mais de trocas, por terem uma dieta muito diversificada. Outros, com uma cozinha mais monótona, poderiam contar quase que inteiramente consigo mesmos.
Agricultura faz parte da cultura geral de um bolo. Define a sua maneira de lidar com a natureza e a comida. Sua organização não pode ser descrita de modo geral. Podem haver bolos onde a agricultura apareça como um tipo de trabalho, porque outras ocupações, lá, seriam consideradas mais importantes. Mesmo nesse caso, o trabalho agrícola não traria limites graves à liberdade individual de cada ibu: seria dividido entre todos os membros do bolo. Isso talvez significasse um mês de trabalho agrícola por ano, ou 10 % do tempo ativo. Se a agricultura é um elemento central na identidade cultural de um bolo, não há problema nenhum: será um prazer. De qualquer forma, todo mundo tem que adquirir um pouco de conhecimento agrícola, mesmo os que não consideram isso crucial para sua identidade cultural, porque esta é a condição para a independência de qualquer bolo. Não existirão lojas de comida, nem supermercados, nem (infelizmente) pechinchas importadas de países chantageados economicamente. Também não haverá qualquer distribuição centralizada por um aparato de Estado (por exemplo, sob forma de racionamento). Os bolos realmente terão que contar consigo mesmos.¹
O kodu abole a separação entre produtores e consumidores no domínio mais importante da vida: a produção de comida. Mas kodu não é só isso, é o todo da relação do ibu com a natureza – ou seja, agricultura e natureza não podem ser compreendidas como duas noções distintas. A noção de natureza apareceu no mesmo momento em que perdemos nosso contato direto com ela, quando nos tornamos dependentes da agricultura, da economia e do Estado. Sem uma base agrícola para auto-suficiência, os ibus e bolos ficam praticamente expostos à chantagem – podem ter quantas garantias, direitos ou acordos quiserem, mas é tudo escrito no vento. O poder do Estado se baseia sobretudo no controle do abastecimento de comida. Somente com base num certo grau de autarquia os bolos podem participar de uma rede de trocas sem serem explorados.
Como todo bolo tem sua própria terra, a divisão entre rural e urbano não é mais tão pronunciada. O conflito de interesses entre produtores batalhando preços mais altos e consumidores exigindo comida barata não existe mais. Além disso, ninguém está interessado em desperdício, escassez artificial, deterioração, distribuição ruim ou obsolescência planejada de produtos agrícolas. Todos os ibus se interessam diretamente pela produção de comida boa e saudável, porque eles mesmos produzem e comem e são completamente responsáveis por sua própria assistência médica (ver bete). Cuidados com o solo, com os animais e consigo mesmos se tornam óbvios, já que cada bolo se interessa pela fertilidade a longo prazo e pela preservação dos recursos naturais.
O uso da terra ou de outros recursos e sua distribuição entre os bolos precisam ser cautelosamente discutidos e adaptados. Há um monte de soluções possíveis, conforme a situação. Para legítimos bolos rurais (agro-bolos) não tem problema, já que podem usar a terra adjacente. Para bolos urbanos seria útil ter canteirinhos em volta das casas, nos telhados, nos pátios, etc. Em torno da cidade poderia haver uma zona verde onde cada bolo tivesse uma área maior para vegetais, frutas, lagos de peixes, etc., ou seja, para produzir o que se precisa que seja fresco todos os dias. Essas plantações seriam alcançadas a pé ou de bicicleta em poucos minutos, e relativamente poucos produtos exigiriam transporte especial. A zona realmente agrícola, de grandes fazendas de mais de 80 hectares ou várias fazendas menores, poderia estar a uns 15 quilômetros da cidade-bolo. (Particularmente no caso de certas culturas que usam lagos, picos, vinhas, campos de caça, etc.) Essas bolo-fazendas se especializariam na produção em larga escala de comidas duráveis: cereais, inhames, feijões, soja, laticínios, carne, etc. O transporte se daria na escala das toneladas (de charrete, caminhão, barco, etc.). Para o kodu de cidades grandes, um sistema de três zonas poderia ser prático²:
Para facilitar o funcionamento do kodu, a despopulação de cidades com mais de 200.000 habitantes deve ser encorajada pelos bolos. Em certas áreas, isso poderia vir a dar na repopulação de aldeias desertas. Podem existir Agro-bolos puros, mas em geral o ibu não vai ter que escolher entre a vida rural e a urbana. As fazenda-bolos ou aldeias também têm a função de casas de campo, e ao mesmo tempo cada fazendeiro teria um bolo de casas na cidade. Com o sistema kodu o isolamento e a negligência cultural das regiões rurais poderiam ser compensados, de modo que o êxodo rural que hoje arruina o equilíbrio da maior parte do mundo seria paralisado e invertido. Os aspectos positivos da vida de fazenda podem ser combinados com o intenso estilo de vida urbano. As cidades se tornariam mais civilizadas, vivíveis, e os campos estariam protegidos contra a poluição vinda das auto-estradas, agroindústrias, etc. Nenhuma fazendeiro precisaria criar raízes e ser escravizado por suas vacas. Todo ser urbano teria uma casinha no campo, sem ficar confinado em colônias de férias ou hotéis monótonos.
¹A catástrofe atual e permanente da fome planetária é causada pelo fato de que a produção e a distribuição de alimentos não são controladas pelas populações locais. A fome não decorre de problemas de produção e sim do sistema econômico internacional. Mesmo nas condições atuais existem 3.000 calorias em grãos de cereais por dia para todo mundo, e adicionalmente a mesma quantidade em forma de carne, peixe, feijões, vegetais, leite, etc. O problema é que a grande massa de pobres não tem condições de comprar a comida (depois que suas bases de auto-suficiência foram destruídas).
A monocultura, a indústria agrícola de larga escala e a produção animal mecanizada parecem ser mais eficientes e produtivas, mas a longo prazo levam à erosão do solo e ao desperdício de energia, e usam para a produção de proteína animal muitos alimentos vegetais necessários à nutrição humana. A auto-suficiência local (junto com acordos de troca moderados) é possível em praticamente toda parte, e é também mais segura, já que trata a terra com mais cuidado. É óbvio que isso não significa simplesmente o retorno aos métodos tradicionais (que falharam em muitas regiões). Novas conquistas no campo dos métodos biodinâmicos e uma combinação intensa de muitos fatores (colheitas + animais, animais + produção de metano, plantios alternados, etc.) são completamente indispensáveis para um novo começo.
²Esse modelo de três zonas se apoia no trabalho da eco-urbanista alemã Merete Mattern. Uma zona agrícola de 15 quilômetros de largura poderia alimentar uma cidade do tamanho de Munich. Ela propõe a criação de duas zonas florestais (para garantir um microclima favorável) e um sistema intensivo de compostagem. Isso significa que a auto-suficiência agrícola também é possível em áreas densamente povoadas. Mas isso implicaria usar cada metro quadrado, deixando de ter espaços vazios, parques e áreas experimentais. Um sistema mais flexível de três zonas complementadas por fazendas seria mais prático, pois daria para combinar de maneira ótima a distância, a disponibilidade de produtos frescos e o ciclo das colheitas. (Você não vai plantar arroz no quintal ou cultivar salsinha fora da cidade...)