#CADÊ MEU CHINELO?

domingo, 3 de agosto de 2014

[nem te conto] TER DE ACREDITAR

:: txt :: Carlos Castañeda ::

- Lembra-se da história que você me contou uma vez a respeito de uma amiga sua e os gatos dela? - perguntou, com displicência.
Ele olhou para o céu e encostou-se no banco, esticando as pernas. Pôs as mãos atrás da cabeça e contraiu os músculos do corpo todo. Como acontece sempre, seus ossos estalaram alto.
Ele se referia a uma história que eu lhe contara um dia sobre uma amiga minha que encontrou dois gatinhos quase mortos dentro de uma secadeira, numa lavanderia automática. Ela os reanimou, e, com muitos cuidados e ótima alimentação, criou-os até eles virarem dois gatos gigantescos, um preto e um avermelhado.
Dois anos depois ela vendeu a casa. Como não podia levar os gatos e não conseguisse encontrar outro lar para eles, nas circunstâncias só o que podia fazer era levá-los para uma clínica veterinária e sacrificá-los.
Ajudei-a a levá-los. Os gatos nunca tinham entrado num carro; da procurou acalmá-los, mas eles a arranharam e morderam, especialmente o avermelhado, que ela chamava de Max. Quando afinal chegamos à clínica, ela levou primeiro o gato preto; pegando-o no colo, e sem dizer uma palavra, ela saltou do carro. O gato brincou com ela, dando-lhe patadas delicadas enquanto ela abria a porta de vidro para entrar na clínica.

Olhei para Max; ele estava sentado no banco de trás. O movimento de minha cabeça deve tê-lo assustado, pois ele pulou para debaixo do assento do motorista. Fiz o assento deslizar para trás. Não queria pôr a mão embaixo, de medo que o gato me mordesse ou arranhasse minha mão. O gato estava deitado dentro de uma depressão no fundo do carro. Parecia muito agitado, sua respiração, ofegante. Ele olhou para mim; nossos olhos se encontraram e fui dominado por uma sensação de opressão. Alguma coisa se apoderou de meu corpo, uma forma de apreensão, desespero, ou talvez constrangimento por tomar parte no que estava ocorrendo.
Senti uma necessidade de explicar a Max que a decisão fora de minha amiga, e que eu só a estava ajudando. O gato ficou me olhando como se entendesse minhas palavras.
Olhei para ver se ela já vinha de volta. Eu a via através da porta de vidro. Ela estava falando com a recepcionista. Meu corpo teve um choque estranho e automaticamente abri a porta do carro.
"Corra, Max, corra!", disse eu ao gato.
Ele saltou para fora do carro e deu uma corrida para o outro lado da rua, o corpo rente ao chão, como um autêntico felino. Aquele lado da rua estava vazio; não havia carros parados e eu via Max correndo, junto à sarjeta. Ele chegou à esquina de uma grande avenida e depois se meteu por um cano de esgoto.
Minha amiga voltou. Contei-lhe que Max tinha fugido. Ela entrou no carro e nós fomos embora sem dizer uma palavras.

Nos meses que se seguiram, o incidente passou a ser um símbolo para mim. Imaginei, ou talvez tivesse visto, um brilho estranho nos olhos de Max quando olhou para mim antes de saltar do carro. E acreditei que por um momento aquele bichinho de estimação, castrado e obeso e inútil, tornou-se um gato.
Eu disse a Dom Juan que estava convencido de que, quando Max correu para o outro lado da rua e mergulhou no esgoto, o seu "espirito de gato" estava impecável, e que talvez em nenhum outro momento de sua vida o seu "gatismo" fora tão evidente. A impressão que o incidente deixou em mim foi inesquecível.
Contei a história a todos os meus amigos; depois de contá-la e recontá-la, minha identificação com o gato tornou-se muito agradável.
Achei que eu era como Max, mimado demais domesticado em muitos sentidos, e no entanto não podia deixar de pensar que havia sempre a possibilidade de um momento em que o espírito do homem poderia apossar-se de todo o meu ser, assim como o espírito de "gatismo" se apossou do corpo flácido e inútil de Max.
Dom Juan gostara da história e tecera alguns comentários sobre ela. Dissera que não era assim tão difícil deixar que o espírito do homem fluísse e se apossasse; mas que mantê-lo era coisa que somente um guerreiro poderia fazer.

- O que é que tem a história dos gatos? - perguntei.
- Você me disse que acreditava que se está arriscando, como Max - disse ele.
- Acredito nisso, sim.
- O que estive tentando dizer-lhe é que, como guerreiro, você não pode simplesmente acreditar nisso e deixar a coisa correr. Com Max, ter de acreditar significa que você aceita o fato de que a fuga dele pode ter sido uma explosão inútil. Ele pode ter saltado para o esgoto e morrido instantaneamente. Pode ter-se afogado ou morrido de fome, ou pode ter sido devorado pelos ratos. Um guerreiro considera todas essas possibilidades e depois resolve acreditar de acordo com suas predileções íntimas. Como guerreiro, você tem de acreditar que Max conseguiu salvar-se, que ele não apenas fugiu, mas que manteve seu poder. Você tem de acreditar nisso. Digamos que sem essa crença você nada tem.

A distinção tornou-se muito clara. Achei que eu realmente tinha preferido acreditar que Max sobrevivera, sabendo que ele estava levando a desvantagem de uma vida inteira de mimos e bons tratos.
- Acreditar é fácil - continuou Dom Juan. - Ter de acreditar é outra coisa.
Neste caso, por exemplo, o poder lhe deu uma lição esplêndida, mas você preferiu só usar a metade dela. Se você tem de acreditar, porém, tem de utilizar o fato todo.
- Entendo o que quer dizer - disse eu.
Meu espírito estava num estado de lucidez e achei que estava entendendo os conceitos dele sem esforço algum.
- Acho que você ainda não entendeu - disse, quase cochichando.
Ele me ficou fitando. Sustentei seu olhar por um momento.
- E o outro gato? - perguntou ele.
- Hem? O outro gato? - repeti, involuntariamente.

Eu esquecera a respeito. O meu símbolo girava em tomo de Max. O outro gato não me interessava.
- Mas interessa, sim! - exclamou Dom Juan, quando exprimi meus pensamentos. - Ter de acreditar significa que você também tem de explicar o outro gato. O que saiu lambendo as mãos que o levavam a sua execução. Aquele foi o gato que se dirigiu para a morte, confiante, cheio de seus conceitos de gato. Você acha que se parece com Max, de modo que já se esqueceu do outro gato. Nem sabe o nome dele. Ter de acreditar significa que você tem de considerar tudo, e antes de resolver que você se parece com Max, você deve considerar que pode parecer com o outro gato; em vez de fugir para salvar a vida e se arriscar, pode estar caminhando feliz para seu destino, cheio de seus conceitos.

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