:: txt :: Bruno Azevêdo ::
Nunca levei um tiro, mas a bala, seu barulho, seu formato de pica necrosada, o barulho que ela faz ao sair e o estrago ao entrar fazem parte do meu imaginário e da minha formação como fazem o amor romântico e as boas prendas para a maioria das meninas.
A bala é uma coisa linda, e aprendi a admirar seu poder de decisão, e sua distância. Afinal, era a terra da pexeira e um corte fundo, uma xuxada ou uma queda (e quedas me quebraram dois braços e uma perna) seriam causas mais prováveis de parar no hospital Djalma Marques, o Socorrão.
Eu não pensava na bala como uma possibilidade concreta, mas fazia shurikens com tampas amassadas de refrigerante e atirava loucamente no guarda-roupas de casa, e imaginava lasers e phasers de cabos de vassoura e pedaços de ripa.
Não tinha a bala como uma possibilidade, nem Rambo defumando as costelas pra cauterizar um balaço tinha concretude. Era o fogo ali que amedrontava, não a bala, que essa, no mundo maniqueísta da ficção “pra macho” que eu consumi avidamente sempre pega de raspão nos homens de bem. No Tex não deve ter pego nem assim.
Já ouvi tanto barulho de tiro virtual e já atirei tanto em videogames que me vejo incapaz de distinguir, no meio dos barulhos do mundo, o que deve ser efetivamente um estampido de pólvora comprimida -- nos gibis é sempre bang, mas bala de verdade não é onomatopeia --; foi mal, Black Alien, mas é assim pra mim.
Não conhecia ninguém que morreu de tiro até muito tarde na vida, e a experiência da bala só veio mesmo recentemente, pelo processo imaginativo da escrita -- matar em papel é bem real pra mim -- e pela percepção do tiro profissionalizado enquanto tradição local, a bala construindo um arremedo de lugar, costurando como a Thompson do Dick Tracy do MegaDrive. A bala começa a se aproximar, a ter cheiro, nome, rg, afetividade.
Até que me apontaram um trezoitão.
Achei engraçado da primeira vez, e pensei, enquanto o sujeito subia a ladeira com algo que agora ela dele por direito, dizendo que me mataria se eu fosse atrás dele: “tem gente que leva as coisas muito à sério”. Nas vezes seguintes já não teve tanta graça, porque você se toca que é só aquele cara atirar e pronto, algo muito especial pode acontecer; vá lá que tem uma curiosidade da experiência da violência, que chega nessa idade como a experiência do sexo era urgente na puberdade, “como é que é isso de verdade?”, ao menos seria bom pra me lembrar, como disse o John, que todo esse sangue que vejo por aí, está por aqui também.
Mas não a curiosidade da experiência domestica da violência, que há mil bandêids espalhados pela casa. E se um desses caras tivesse atirado? A bala saindo do papel, da tela, da caixa de som. Será que a dor impede ou é parte da experiência? No que se pensa? A consciência posta num ponto fudido da anatomia ou expandida através dele? Penso que gostaria de ler relatos de gente que levou tiro, mas isso é também uma traição, o tiro de um não deve servir pra outro.
Daí você vira um Owen Sack, do Dashiell Hammet, um sujeito capaz de formular e reformular a própria vida pela possibilidade de ser alvejado. Era a bala que dizia pronde Owen ia e o que ele ia fazer. O medo de tiro era o medo mesmo de viver, de experimentar seu tempo, e qualquer desentendimento pra ele era motivo pra mudar de cidade.
Até que lhe meteram um balaço e ele alcançou algum tipo de momento crucial.
O desejo de não levar virou a punção de atirar. “Preciso dar muito tiro”, ele emendava, muito tiro, muito tiro, que se as balas voam como borboletas, vá lá, não adianta de muita coisa de encazular.
A se você engole essa fácil é como se engolisse uma bala. Volta-se prum tipo de "ficção de macho" com patrocínio estatal.
A pergunta já não é quem vai levar a próxima bala, mas quem vai começar a atirar.
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