:: txt :: Guga Azevedo ::
A conversa durou a tarde inteira. Lula tinha acabado de sair do
hospital e estava retomando as atividades normais. Passou por algumas
complicações cardíacas durante uma apresentação e foi internado. “O meu
peito apertou no meio do show! Os músicos começaram a tirar sarro. Eu
desci do palco e fui até o bar. Tomei uma dose e não melhorou…. fiquei
sentado em uma calçada do Recife Antigo até ser ajudado por uma menina”.
Foi mais ou menos isso que ele disse. Coloquei as aspas por educação,
já que o único registro daquela conversa ficou em minha memória.
Essa lembrança voltou com força depois da notícia de sua morte. Lula
Côrtes se foi. O último suspiro do real período psicodélico que o Brasil
viveu.
Morei em Recife entre 1997 e 2002. Dos 15 aos 21 anos. Vivi muita
coisa ali… e sempre esbarrava com essa figura magra, bronzeada e com os
cabelos brancos queimados pelo sol. Podia ser em algum show gratuito no
Recife Antigo ou na praça de alimentação do Shopping Guararapes. Sabia, e
não sabia, de sua importância para a música brasileira. Fui conhecer a
história depois que mudei para Curitiba e entrei no mundo do vinil.
Acompanhava os leilões virtuais do disco “Paêbirú” e me lamentava por
não ter parado para conversar com ele. Sentar e tomar uma cerveja.
O gringos sempre deram mais valor a este disco gravado por Côrtes e
Zé Ramalho em 1975. Clássico absoluto da psicodelia brasileira e
misturas de ritmos. Quando eu lia as resenhas e comentários, só
aumentava a angústia.
Lá por 2003 (ou 2004?) fui passar as férias em Recife e aproveitei
para fazer algumas entrevistas. Lula Côrtes na cabeça… Marquei uma
conversa inicial antes de partir para a entrevista. Ele queria mais
informações e eu precisava sentir um pouco do terreno que iria encarar. O
papo começou em uma creche que ele mantinha no bairro de Candeias.
Finalmente, consegui sentar e tomar uma cerveja com ele.
O pensamento bagunçado e a mistura de emoções eram explícitas. Ele
falava sobre a felicidade em retomar a rotina com as crianças enquanto
mostrava fortes desenhos produzidos no período hospitalar. Era um
artista plástico de mão cheia. Traços marcantes que delineavam os
companheiros de quarto. Pacientes em estado terminal, médicos,
familiares e camas vazias.
Continuamos em um boteco ali próximo. Lula tirou um maço de Hollywood
e pediu uma dose de uísque. Cowboy. Enquanto esperava a bebida,
reclamava dos incômodos da recuperação física e arrancava os filtros de
todos os cigarros. Fumou todos, com a mesma vontade de aproveitar a vida
e contar sua história. “Ficam fazendo festa para o Chico Science até
hoje. Gosto de seus discos e não tenho nada contra… mas eu fui o
primeiro a misturar sons estrangeiros com ritmos nordestinos. Ninguém
lembra disso… só falam que eu era um loucão que aparecia nas festas
distribuindo baldes de ácidos. Porra! Se eu tivesse um balde de ácido
naquela época, estaria muito rico hoje… ou morto”, e dava risadas.
A crítica é verdadeira. Mas o caminho seguido por Chico Science foi
um pouco diferente. Outros tempos, outro público. A antena fincada no
mangue servia, também, para reverberar os sons de Côrtes. Críticos
deslumbrados esqueciam disso.
Resolvemos deixar a entrevista para o dia seguinte. Liguei para
confirmar o horário e ele me diz, “velho! Foi mal. Esqueci da
entrevista. Tô em um barco indo para Fernando de Noronha. Deixa para
quando eu voltar. Em quinze dias a gente senta e conversa”.
Não rolou.
Fiquei puto na época. Mas carrego essa conversa até hoje…
Ele mudou. Se acalmou e concentrou os esforços na luta contra a
doença. As últimas notícias que tive era sobre seu trabalho como
assessor cultural da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes e na possível
reedição de “Paêbirú” com ajuda internacional. Lula continuou no meio
cultural, nos palcos, quadros, livros e crianças. Um artista completo
que merece ser lembrado por toda sua obra.
Em meus devaneios, guardo a imagem dele livre, no meio do mar, cabelos ao vento e o celular na mão.
Um brinde, Lula. Boa viagem.
#CADÊ MEU CHINELO?
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Um comentário:
Muito legal saber isso!!! Abraço do Pedra
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