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txt: Wladymir Ungaretti
“Para a sociedade de consumo, a pobreza é o que pode ser reduzido em termos de consumo. Do ponto de vista do espetáculo a redução do homem a consumidor é um enriquecimento: quanto mais coisas e papéis temos, mais somos. Mas, do ponto de vista da realidade vivida, aquilo que se ganha em poder é o quanto se perde em vontade de realização autêntica. Aquilo que se ganha em parecer se perde em ser e em se tornar.”
Sofremos uma derrota no dia oito de abril de 1994. O corpo de Kurt Cobain é achado por um eletricista que iria realizar consertos na casa onde ele costumava dormir. Um bilhete de adeus é encontrado ao lado do corpo. Acabava de se dissolver o Nirvana. Em 1985 Cobain organizava sua primeira banda, a Fecal Matter (matéria fecal). Teve uma curta existência. É, em abril de 1987, acompanhado por mais dois caras, se apresentava ao vivo na Rádio Comunitária Kaos. Desta apresentação saiu a primeira fita demo da banda. É preciso criticar as revoluções e exaltar as rebeliões.
A editora Conrad, a mesma da coleção Bardena – a arte da subversão para as novas gerações, lançou recentemente “Fragmentos de uma Autobiografia de Kurt Cobain”, de Marcelo Orozo. O autor é um jornalista formado em 1989. Já passou por várias redações em São Paulo. Estes fragmentos são construídos a partir, basicamente, de um outro livro. Estamos falando de “Mais pesado que o Céu – uma biografia de Kurt Cobain”, de Charle R. Cross, da editora Globo. Charle Cross é um jornalista que foi durante algum tempo editor da The Rocket, uma das mais importantes revistas da região noroeste dos EUA, tendo sido a primeira a sacar a importância do Nirvana e a dar uma matéria sobre o grupo com chamada de capa. Ele é autor dos livros “Le Zeppelin: Heaven and Hell”, “Backstreets: Springsteen”, entre outros. Seus textos são seguidamente publicados na Rolling Stone, Esquire e Spy. Cross mora em Seattle. O cara conhece o assunto. Como li em algum lugar, recentemente, o enterro prematuro é a lei do consumismo. Pena que o tema não seja estudado nos cursinhos de publicidade.
Não há nenhuma razão para que se estabeleçam comparações entre os dois livros. São idéias diferentes. O livro do brasileiro, sem qualquer juízo de valor, é de leitura rápida. Traz as letras das músicas em inglês com uma tradução ao lado, o que facilita o entendimento. Com uma contextualização. Enquanto que o livro do jornalista de Seattle é uma biografia no seu sentido mais tradicional. Não são fragmentos. A leitura de um não invalida a leitura do outro.
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Em 23 de janeiro de 1988, numa sessão demo, no Reciprocal Studios, em Seattle, o Nivarna num dos climas mais pesados de toda a carreira do grupo gravava “Paper Cuts”, cuja tradução é “retalhos de jornal”.
A letra da música foi escrita a partir de um episódio real. Uma família mantinha os filhos isolados em um quarto escuro, com as janelas pintadas de preto. A porta só era aberta para empurrar pratos de comida e para retirar os jornais espalhados pelo chão para absorver urina e fezes. A letra de Retalhos de jornal diz: “Na hora da refeição/ela empurrava comida pela porta/E eu me arrasto rumo à brecha de luz/às vezes não consigo achar o caminho/Jornais espalhados em volta/Sugando tudo que podem/ Está na hora de nova faxina/ Uma boa lavada/ A senhora que amo como mãe/Não consegue me olhar nos olhos/Mas eu vejo os delas e eles são azuis/ E se erguem e se torcem e se masturbam/ É o que disse/Nirvana/.
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Kurt encerra letra apontando para a solidariedade com os excluídos e condenando aqueles que apenas ridicularizam a situação: E bem depois eu aprendi/A aceitar alguns companheiros de ridículo/Toda a minha existência é para sua diversão/E é por isso que eu estou aqui com vocês!/ Para levá-los comigo/Direto para o Nirvana/.
O progressivo abandono de todo o radicalismo, o abandono de todos os elementos, de fato insurrecionais, em todos os planos, nos joga no reformismo. Nos tempos atuais, este abandono de todas as tradições radicais nos empurra, crescentemente, para a idéia de que as reformas são salvadoras. Nos empurra na manutenção (apenas) das formas de sobrevivência. Sobreviver é a palavra de ordem. Até quando a vida será apenas a luta pela sobrevivência?
Busco a vida. Agradeço aos meus alunos por aprender, por me possibilitarem descobertas: a história de Kurt Cobain e do Nirvana é recente. Peço desculpas (é verdadeiro o que estou dizendo) não consigo escrever de forma mais anárquica. Cada vez mais tenho dificuldades para encenar o papel de professor. É um paradoxo.
“A violência mudou de sentido. Não que o rebelde tenha se cansado de combater a exploração, o tédio, a pobreza e a morte: o rebelde simplesmente resolveu não combatê-los mais com as armas da exploração, do tédio, da pobreza e da morte. Já que a primeira vítima de tal luta é aquele que se compromete em desprezar sua própria vida. O comportamento suicida se inscreve na lógica do sistema que tira seu proveito do esgotamento gradual da natureza terrestre e da natureza humana.”
Nem revolução, nem reforma. Rebelião sempre.
Em um muro de Chiapas está escrito: somos um exército de sonhadores, por isso somos invencíveis.
Mesmo quando perdemos Kurt Cobain.
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2 comentários:
"Sofremos uma derrota no dia oito de abril de 1994". Isso sintetiza tudo. Admiro ainda mais o Ungaretti por ter tido esssa sensibilidade. Valeu por colocar este texto aqui, provavelmente naum encontraria em outro lugar. Abraço!
Ale Lucchese
pod cre, galo. este txt o Ungaretti fez especialmente pra edição #05 da revista O DILÚVIO, na época que se faziam 10 anos sem Kurt.
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